Além de questionar “o quanto basta?”, em relação ao consumo, o líder indiano seguia o princípio da ausência do medo e aliava-se à maioria deserdada
Por Ignacy Sachs*
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Em 30 de janeiro de 1948, Gandhi, o apóstolo da luta não violenta e o pai da nação indiana recém-independente, foi assassinado por um fanático. Sessenta anos depois desse trágico evento, convém destacar três legados de Gandhi que continuam a interpelar o mundo.
Ahimsa
Com base no conceito de ahimsa — ausência do medo —, Gandhi aperfeiçoou ao longo de sua longa e movimentada vida os métodos de luta não violenta, primeiro na África do Sul, onde batalhou pelos direitos dos imigrantes indianos, e depois na sua pátria, onde desafiou com sucesso o poderio do império britânico. Inspirado por um ideário religioso no qual o hinduísmo converge com os ensinamentos de Buddha e de Cristo, herdeiro do conceito da desobediência civil de Thoreau e admirador de Tolstoi, Gandhi influenciou Luther King nos EUA e Mandela na África do Sul.
Esse aspecto do pensamento gandhiano continua a atrair a atenção dos autores dos numerosos livros a ele consagrados.
Crítica radical do capitalismo
À sua maneira, Gandhi foi um crítico radical do capitalismo ao condenar a concupiscência e a corrida desenfreada pela posse de bens materiais e ao pregar a simplicidade voluntária, exaltando as virtudes de uma vida rural idealizada que pouco tem a ver com a miséria das aldeias indianas. Não obstante essa limitação, teve o mérito de levantar a questão ética “o quanto basta?”, colocando no centro do debate o autocontrole sobre o consumo.
Em artigo recente, Jared Diamond, autor do livro Colapso, observa que os habitantes do Primeiro Mundo consomem 32 vezes mais recursos naturais e produzem 32 vezes mais resíduos e gases de efeito estufa do que os do Terceiro Mundo.
Em outras palavras, os 300 milhões de americanos pesam o equivalente a 9,6 bilhões de quenianos.
Obviamente, o padrão de consumo americano não poderá ser generalizado em escala mundial. Vamos permitir que as desigualdades abissais, que caracterizam o mundo hoje, aprofundem-se em benefício de uma minoria cada vez mais opulenta e às custas de uma maioria excluída? Ou, ao contrário, devemos impor limites ao consumismo desenfreado, buscando o bom uso da natureza aliado à repartição mais equilibrada da renda, o que poderia assegurar uma vida decente para todos os passageiros da Nave-Terra, sem cair na pregação de um ascetismo exagerado?
Gandhi foi um dos pioneiros nesse debate, estreitamente relacionado com o conceito de “necessidades básicas”.
A importância do mundo rural
A maior contribuição de Gandhi, no que diz respeito ao desenvolvimento, reside na sua empatia com a maioria deserdada da humanidade — os camponeses pobres. Como mencionado, há convergência entre o pensamento de Gandhi e o de Tolstoi e dos populistas russos. Mas Gandhi não se limita à compaixão, sua visão é tão pragmática a ponto de lembrar a de Benjamin Franklin. Ambos recomendaram aos habitantes das aldeias que varressem as ruas para diminuir a poeira e, assim, evitar distúrbios respiratórios.
Ambos, sobretudo Gandhi, tinham grande sensibilidade ecológica.
Partindo do conceito da “auto-suficiência”, que não se deve confundir com autarquia (o termo é “self-reliance”, que Fernando Henrique Cardoso traduziu por “autoconfiança”), Gandhi considerava que cada um deveria produzir por si mesmo todos os bens necessários para sua frugal vida material e dispor para tanto de um conjunto de tecnologias simples. Assim, antecipou o debate sobre as tecnologias intermediárias (à maneira de E. F. Schumacher, que se converteu ao budismo) e, mais generalizadamente, sobre as tecnologias apropriadas.
Uma ressalva. No pensamento de Gandhi não há lugar para o conceito de produtividade do trabalho; vale o serviço que os homens prestam uns aos outros, o dom e o contra-dom, a generosidade e a intenção. A dimensão ética é a única importante. É verdade que Gandhi se entusiasmou pela roda de fiar melhorada — a ambar charka —, quatro vezes mais produtiva do que a tradicional. Transformou seu uso cotidiano no símbolo da independência com relação aos tecidos importados da Inglaterra e em manifestação do apoio à luta nacional. Porém, nunca lhe passou pela cabeça que a produtividade da ambar charka era tão baixa que, apesar do custo módico, a relação capital/produto era muito elevada.
A ênfase no ético levou Gandhi a posições ingênuas, exortando os ricos a administrar seus bens em proveito dos pobres e os latifundiários a distribuir voluntariamente suas terras. Os marxistas reagiram violentamente e a Enciclopédia soviética chegou a qualificar Gandhi de agente do imperialismo britânico. Porém, um discípulo de Gandhi, Vinoba Bhave, conseguiu persuadir alguns proprietários a doar terras para a reforma agrária.
Mais importante, não obstante as diferenças com as idéias de Marx, vários marxistas indianos prestaram tributo à ação e ao pensamento de Gandhi, à sua empatia com os pobres e os excluídos, à sua cruzada contra a discriminação de castas. Hiren Mukherjee e E. M. S. Namboodiripad, dirigentes do Partido Comunista Indiano, consagraram-lhe dois livros altamente respeitosos.
De maneira geral, não só a figura histórica, mas os ensinamentos de Gandhi permearam profundamente a sociedade indiana. Enquanto uma seita de gandhianos ortodoxos se fechava numa exegese estéril dos textos de Mahatma — mais de 100 volumes de escritos ocasionais e artigos diários, onde se podem encontrar tudo e seu contrário —, vários intelectuais indianos produziram uma síntese feliz e fecunda entre o legado ético de Gandhi e o modernismo de Nehru.
* Ecossocioeconomista da École des Hautes Études en Sciences Sociales
Além de questionar “o quanto basta?”, em relação ao consumo, o líder indiano seguia o princípio da ausência do medo e aliava-se à maioria deserdada
Por Ignacy Sachs*
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Em 30 de janeiro de 1948, Gandhi, o apóstolo da luta não violenta e o pai da nação indiana recém-independente, foi assassinado por um fanático. Sessenta anos depois desse trágico evento, convém destacar três legados de Gandhi que continuam a interpelar o mundo.
Ahimsa
Com base no conceito de ahimsa — ausência do medo —, Gandhi aperfeiçoou ao longo de sua longa e movimentada vida os métodos de luta não violenta, primeiro na África do Sul, onde batalhou pelos direitos dos imigrantes indianos, e depois na sua pátria, onde desafiou com sucesso o poderio do império britânico. Inspirado por um ideário religioso no qual o hinduísmo converge com os ensinamentos de Buddha e de Cristo, herdeiro do conceito da desobediência civil de Thoreau e admirador de Tolstoi, Gandhi influenciou Luther King nos EUA e Mandela na África do Sul.
Esse aspecto do pensamento gandhiano continua a atrair a atenção dos autores dos numerosos livros a ele consagrados.
Crítica radical do capitalismo
À sua maneira, Gandhi foi um crítico radical do capitalismo ao condenar a concupiscência e a corrida desenfreada pela posse de bens materiais e ao pregar a simplicidade voluntária, exaltando as virtudes de uma vida rural idealizada que pouco tem a ver com a miséria das aldeias indianas. Não obstante essa limitação, teve o mérito de levantar a questão ética “o quanto basta?”, colocando no centro do debate o autocontrole sobre o consumo.
Em artigo recente, Jared Diamond, autor do livro Colapso, observa que os habitantes do Primeiro Mundo consomem 32 vezes mais recursos naturais e produzem 32 vezes mais resíduos e gases de efeito estufa do que os do Terceiro Mundo.
Em outras palavras, os 300 milhões de americanos pesam o equivalente a 9,6 bilhões de quenianos.
Obviamente, o padrão de consumo americano não poderá ser generalizado em escala mundial. Vamos permitir que as desigualdades abissais, que caracterizam o mundo hoje, aprofundem-se em benefício de uma minoria cada vez mais opulenta e às custas de uma maioria excluída? Ou, ao contrário, devemos impor limites ao consumismo desenfreado, buscando o bom uso da natureza aliado à repartição mais equilibrada da renda, o que poderia assegurar uma vida decente para todos os passageiros da Nave-Terra, sem cair na pregação de um ascetismo exagerado?
Gandhi foi um dos pioneiros nesse debate, estreitamente relacionado com o conceito de “necessidades básicas”.
A importância do mundo rural
A maior contribuição de Gandhi, no que diz respeito ao desenvolvimento, reside na sua empatia com a maioria deserdada da humanidade — os camponeses pobres. Como mencionado, há convergência entre o pensamento de Gandhi e o de Tolstoi e dos populistas russos. Mas Gandhi não se limita à compaixão, sua visão é tão pragmática a ponto de lembrar a de Benjamin Franklin. Ambos recomendaram aos habitantes das aldeias que varressem as ruas para diminuir a poeira e, assim, evitar distúrbios respiratórios.
Ambos, sobretudo Gandhi, tinham grande sensibilidade ecológica.
Partindo do conceito da “auto-suficiência”, que não se deve confundir com autarquia (o termo é “self-reliance”, que Fernando Henrique Cardoso traduziu por “autoconfiança”), Gandhi considerava que cada um deveria produzir por si mesmo todos os bens necessários para sua frugal vida material e dispor para tanto de um conjunto de tecnologias simples. Assim, antecipou o debate sobre as tecnologias intermediárias (à maneira de E. F. Schumacher, que se converteu ao budismo) e, mais generalizadamente, sobre as tecnologias apropriadas.
Uma ressalva. No pensamento de Gandhi não há lugar para o conceito de produtividade do trabalho; vale o serviço que os homens prestam uns aos outros, o dom e o contra-dom, a generosidade e a intenção. A dimensão ética é a única importante. É verdade que Gandhi se entusiasmou pela roda de fiar melhorada — a ambar charka —, quatro vezes mais produtiva do que a tradicional. Transformou seu uso cotidiano no símbolo da independência com relação aos tecidos importados da Inglaterra e em manifestação do apoio à luta nacional. Porém, nunca lhe passou pela cabeça que a produtividade da ambar charka era tão baixa que, apesar do custo módico, a relação capital/produto era muito elevada.
A ênfase no ético levou Gandhi a posições ingênuas, exortando os ricos a administrar seus bens em proveito dos pobres e os latifundiários a distribuir voluntariamente suas terras. Os marxistas reagiram violentamente e a Enciclopédia soviética chegou a qualificar Gandhi de agente do imperialismo britânico. Porém, um discípulo de Gandhi, Vinoba Bhave, conseguiu persuadir alguns proprietários a doar terras para a reforma agrária.
Mais importante, não obstante as diferenças com as idéias de Marx, vários marxistas indianos prestaram tributo à ação e ao pensamento de Gandhi, à sua empatia com os pobres e os excluídos, à sua cruzada contra a discriminação de castas. Hiren Mukherjee e E. M. S. Namboodiripad, dirigentes do Partido Comunista Indiano, consagraram-lhe dois livros altamente respeitosos.
De maneira geral, não só a figura histórica, mas os ensinamentos de Gandhi permearam profundamente a sociedade indiana. Enquanto uma seita de gandhianos ortodoxos se fechava numa exegese estéril dos textos de Mahatma — mais de 100 volumes de escritos ocasionais e artigos diários, onde se podem encontrar tudo e seu contrário —, vários intelectuais indianos produziram uma síntese feliz e fecunda entre o legado ético de Gandhi e o modernismo de Nehru.
* Ecossocioeconomista da École des Hautes Études en Sciences Sociales
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