Na corrida da bioengenharia
Maria Clara e o pai, Spartaco Astolfi, junto com a equipe de pesquisadores da Ufam
À primeira vista, como manauara da gema, deixar o tesouro ecológico da Amazônia em troca do sonho em terra ianque seria uma atitude inesperada para quem não apenas ama, mas vive da natureza – ou melhor, do que tem dentro dela e ninguém vê. Mas por trás dessa história há um senão que faz todo sentido. Na cidade de Boston, Estados Unidos, o propósito da bióloga Maria Clara Astolfi, 23 anos, é preparar-se com munição tecnológica de ponta exatamente para conhecer melhor e conservar a floresta que tanto defende. E a estratégia é levada a cabo por um meio nada convencional: redesenhando moléculas de seres vivos com apoio de inteligência artificial e robôs para o mercado fazer insumos de novos produtos de saúde, agricultura e soluções de energia e alimentos.
Em troca da oportunidade nos EUA, os planos do mestrado e doutorado, para seguir na carreira acadêmica, foram adiados. Por uma boa causa: a pesquisadora sabe que a matéria-prima biotecnológica da Amazônia, representada pela microfauna de vírus, bactérias, fungos, protozoários e outros organismos, não existiria sem a floresta de pé. E lá fora, conectada ao que há de mais moderno no front, as chances de dominar as armas da biologia sintética para vencer essa batalha são bem maiores.
No caso de Maria Clara, o apreço pela natureza vai além da beleza da floresta, dos banhos de rio ou do convívio com populações tradicionais – como é para muitos que se aventuram na Amazônia. O interesse da bióloga está no mundo desconhecido por entre árvores e igarapés, alvo de tecnologias que debulham códigos da vida, campo do conhecimento que a cativa desde os tempos do Ensino Médio, em 2012, quando iniciou estágio na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Não faltou incentivo do pai, o pesquisador Spartaco Astolfi, pioneiro na formação de pesquisadores na região (leia na reportagem “A riqueza oculta da floresta”, nesta plataforma).
Em Manaus, a bióloga desenhou moléculas produtoras de proteínas de uso farmacêutico, com pedido de patente, mas a velocidade da tecnologia no mundo a fez arrumar as malas para voar mais longe: “Empresas mais inovadoras do mundo já usavam biologia como método de manufatura”.
O plano de estabelecer trincheira acima da Linha do Equador se mostrava promissor, a contar pela estirpe do lugar que a acolheu: a Ginkgo Bioworks, startup unicórnio de US$ 7 bilhões, uma das mais famosas do mundo em bioengenharia, com sede em Boston e equipe de 400 millenials especializados na automação de design e delivery de microrganismo para diferentes mercados.
O passaporte de Maria Clara para a transferência foi a medalha de prata conquistada, em 2017, no desafio global The International Genetically Engineered Machine Competition (iGEM), criada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA, reunindo jovens pesquisadores à frente de inovações biotecnológicas que solucionam problemas regionais. A equipe de Manaus concorreu com uma novíssima tecnologia de edição genômica, desenvolvida pela Ufam com base no que já existia em países mais avançados – ferramenta capaz de tornar a engenharia de moléculas mais fácil e acessível a laboratórios de pesquisa brasileiros.
No evento da competição, um dos fundadores da empresa americana, Tom Knight, assistiu à apresentação da brasileira e a convidou para enviar o currículo e possivelmente fazer parte da equipe, após se formar na universidade em Manaus. “Ele ficou fascinado por termos criado um núcleo de biologia sintética na Amazônia, aproveitando o potencial da região”, diz a pesquisadora.
Não foi a primeira vez que Maria Clara frequentou aquela competição internacional. Em 2014, recebeu ouro pela tecnologia de biossensores, desenvolvida na universidade amazonense com bactérias que tiveram o código genético reprogramado para emitir um sinal luminoso verde quando em contato com o mercúrio, liberado por garimpos em rios da Amazônia. Além de detectar o poluente, o microrganismo é capaz de degradá-lo no ambiente, o que inspirou outros projetos para tratamento de água e testes para aumento de escala dos resultados na Ufam.
“A trajetória nas novas tecnologias não tinha mais volta”, ressalta Maria Clara, que antes de decolar para Boston concluiu uma nova pesquisa baseada em microrganismo da Amazônia: o sequenciamento genético de bactéria isolada de um igarapé da região – a Enterobacter amazonenses, que pode potencialmente se somar a estratégias de tratamento de efluentes.
Carne vegana em laboratório
Na startup americana, a bióloga acompanha projetos que aplicam robôs e inteligência artificial para automatizar a engenharia molecular, viabilizando produtos inovadores. Um dos exemplos é a carne vegana fabricada em laboratório por microrganismos que reproduzem as moléculas (proteínas) presentes no produto de origem animal. Neste caso, diferentemente dos similares já existentes no mercado, obtém-se igual consistência e textura – sem adição de soja. “A meta é fazer o mesmo com ovos, leite e outras carnes para aumentar o portfólio de produtos veganos à população”, revela Maria Clara.
A ideia, segundo ela, é conviver alguns anos com esse intenso ambiente de novas tecnologias e levá-las para a Amazônia. “Mas, para isso, o País precisa rever caminhos e investir mais em ciência e tecnologia”, observa a bióloga, desde o apartamento de Boston, onde vive ao lado de outros jovens pesquisadores garimpados pela empresa no mundo. Nas paredes, quadros de arte indígena dividem espaço com pinturas que lembram células humanas. Tudo a ver quando o tema da conversa é biotecnologia amazônica.
“Quando assistem ao desmatamento e queimadas pela televisão, as pessoas aqui não entendem como o Brasil é grande fornecedor de produtos agrícolas e etanol da cana e não aproveita a biodiversidade da Amazônia”, completa Maria Clara. Além do cabelo esverdeado nas pontas, a fã do Boi Caprichoso carrega no estilo vistosos brincos de semente de açaí e palha de buriti. São pequenas amostras levadas da terrinha e usadas quase como um alento na “dificuldade de explicar porque temos só potencial e não produtos”.
Biossensores de bactérias detectam a presença de contaminantes pela cor
Genoma sequenciado da nova linhagem de bactéria Enterobacter amazonensis, na Ufam. Foi obtida de um igarapé da Amazônia e é altamente resistente a metais pesados, podendo ser utilizada como tecnologia para biorremedição de contaminantes nos rios