Depois de crescer gerando degradação ambiental e exclusão social por 70 anos, Cubatão tenta se converter em modelo de desenvolvimento sustentável. Para isso, terá de lidar com a ocupação da população de baixa renda em área de proteção
Por Alessandra Pereira – Fotos: Bruno Bernardi
Versão
em PDF
Por sete décadas, Cubatão, na Baixada Santista, foi exemplo de crescimento insustentável, uma péssima referência para as outras cidades. As indústrias de grande porte instaladas na região geraram riqueza para os cofres públicos e o setor privado, mas transformaram Cubatão no município mais poluído do País. Em paralelo à industrialização, a construção da Rodovia Anchieta e da primeira pista da Imigrantes — que ligam São Paulo ao Porto de Santos, o maior corredor de exportação brasileiro — trouxe pessoas de todos os cantos do Brasil para trabalhar em suas obras e, como impacto, o avanço de moradias sobre a Serra do Mar, maior remanescente nacional de Mata Atlântica.
Alguns dos moradores que hoje habitam áreas de preservação ambiental do Parque Estadual da Serra do Mar são filhos e netos de operários que construíram a Anchieta. Ao fim das obras, no início da década de 60, o Departamento de Estradas e Rodagem (DER-SP) os autorizou a permanecer com suas famílias no local.
De acordo com cadastro socioeconômico realizado em junho do ano passado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), órgão ligado à Secretaria de Estado da Habitação, 21.204 moradores de Cubatão vivem em zonas de risco, de proteção ambiental — mangue e manancial — ou em áreas pertencentes ao Parque Estadual da Serra do Mar. As famílias de baixa renda estão instaladas nas favelas Pinhal de Miranda, Pilões, Água Fria e Vila Esperança e nos chamados bairros-cota 95/100, 200, 400 e 500 — que levam esse nome por conta da altura em que se encontram em relação ao nível do mar.
Parte da população reage com ceticismo
ao programa de reordenação proposto pelo
governo. Bill (abaixo), líder dos moradores, diz
que a falta de comunicação gera ansiedade
Em diversas vezes, o poder público buscou equacionar o problema da ocupação desordenada em áreas de proteção ambiental, com remoção da população para conjuntos habitacionais. E diversas foram as razões para que as tentativas resultassem em fracasso. Trinta anos após a criação do Parque Estadual da Serra do Mar, o governo do estado lançou um programa de recuperação socioambiental, que, desta vez, apresenta um diferencial: induzir o desenvolvimento sustentável na região, respeitando as características sociais da comunidade. Parte da população, escaldada com os insucessos de planos anteriores, reage com desconfiança.
Mas o que diferencia este projeto dos já apresentados nas últimas décadas pelos governos estadual e municipal? “Antes as pessoas das favelas eram removidas, mas sempre retornavam às áreas ocupadas porque os conjuntos habitacionais eram inadequados”, reconhece Luis Augusto Kehl, arquiteto da CDHU.
As favelas, aponta Kehl, possuem uma estrutura física e social que sustenta o modo de vida de seus moradores: a proximidade dos vizinhos, a possibilidade de cuidar dos filhos que brincam na rua enquanto a dona de casa faz cocada para vender e o marido conserta a bicicleta no fundo do quintal. Ao tirar as pessoas de suas casas e vielas, como consertar uma bicicleta ou montar um pequeno salão de beleza dentro de um apartamento? Como vigiar as crianças entre escadas e corredores? Além disso, os moradores passam a ter de pagar a prestação do imóvel e as contas de luz, água e condomínio e a conviver de forma à qual não estão habituados. “Por essa razão não projetamos mais conjuntos habitacionais tradicionais, e sim bairros que oferecem habitação, comércio, serviços e espaços de lazer”, conta o arquiteto.
Ao levar em conta esses aspectos, o programa de recuperação socioambiental tem como objetivo proteger os mananciais e a biodiversidade, recuperar as encostas e os manguezais de Cubatão, além de reurbanizar as áreas das cotas 95/100 e 200 desmembradas do parque em 1994 e ainda não regularizadas do ponto de vista fundiário.
As outras metas são remover as famílias instaladas às margens das rodovias e as que vivem em áreas de proteção ambiental, com risco de deslizamento e de inundações, para novas moradias, em áreas mais seguras. “Até 2010 cerca de 20 mil pessoas deverão ser realocadas”, afirma Rubens Lara, assessor especial do governo paulista e diretor-executivo da Agência Metropolitana da Baixada Santista. “Planejamos a construção de 5 mil novas unidades habitacionais.” Boa parte dos moradores das Cotas 400, 500 e de áreas de risco das Cotas 200, 95/100, Água Fria, Pilões e Vila Esperança deverá ser removida. “É um modelo pioneiro de construções populares”, acredita Lara.
A previsão é construir as novas moradias nas áreas chamadas de Bolsão 7, Bolsão 9 e Jardim Casqueiro, com recursos do governo estadual, da Prefeitura de Cubatão, do Banco Mundial, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal e de empresas concessionárias. Pelas contas do governo estadual, cerca de R$ 700 milhões devem ser investidos nos próximos três anos em projetos de cunho socioambiental. A publicação do edital para licitação das obras da primeira etapa do programa estava agendada para o fim de janeiro.
Além de prédios, é prevista a construção de casas com dois e três dormitórios e aquecimento solar, sobrados com áreas residencial e comercial sobrepostas, centro de comércio e um parque nos moldes do Ibirapuera na área de transição entre o mangue — atualmente ocupado por casas sustentadas por palafitas no núcleo da Vila Esperança — e uma área já aterrada.
Valor ambiental
Conciliar a presença de pessoas e a preservação ambiental é um desafio e tanto, especialmente quando se fala neste remanescente florestal. O Parque Estadual da Serra do Mar é a maior unidade de conservação da Mata Atlântica no País. Com quase 315 mil hectares, vai da divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro até o sul do litoral paulista, e reúne a maior diversidade de árvores do planeta — o palmito-juçara, alimento de mais de 70 espécies animais, é a que corre maior risco de desaparecer. Ali se encontra também um quinto das aves brasileiras: são 373 espécies, 131 exclusivas da Mata Atlântica (42 delas estão ameaçadas de extinção).
O parque abriga ainda 111 espécies de mamíferos, quase a metade das existentes na Mata Atlântica, e 144 espécies de anfíbios. Segundo o Atlas da Mata Atlântica, produzido pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 56% das florestas de Cubatão são nativas.
“A pressão para a ocupação da Serra do Mar é conhecida”, comenta Mário Mantovani, diretor de mobilização da SOS Mata Atlântica. “A atuação dos políticos na cidade durante as campanhas eleitorais foi um dos motivos que mais dificultaram a conservação da floresta”, analisa. “A cada eleição municipal, eles estimulavam famílias de baixa renda a ocupar áreas de mangue, do parque e de encosta para reforçar suas bases eleitorais.” Agora Mantovani está otimista com o programa estadual. “Ainda que tardia, é uma boa solução. O projeto parece bem elaborado. Vamos ver se é para valer”, diz ele, que classifica 2008, ano de eleições municipais, como decisivo para os rumos de Cubatão.
Nem todo mundo está convencido. Entre alguns moradores da Cota 200 e da Cota 400 reina o ceticismo. Com renda mensal oscilando entre R$ 3 mil e R$ 6 mil, o casal Aristides Rodrigues Amorim, supervisor de manutenção, e sua mulher, Joana Silva Santos, mora com outras seis pessoas da família em uma casa de dois andares na Cota 400, construída ao longo de 20 anos. O bairro fica entre os quilômetros 46 e 48, margeando as duas pistas da Anchieta. Nele vivem aproximadamente 636 moradores, de acordo com o cadastro da CDHU. Aristides acredita na manutenção do status quo. “Passadas as eleições, acho difícil nos tirarem. Os políticos da cidade chegam aqui e prometem que vamos continuar.”
No vale, área de manancial é tomada
por casas (acima). Nas famílias, o apego
ao velho jeito de morar divide espaço
com a disposição de abraçar um novo
modelo de ocupação
“Toda eleição a gente escuta que vai ter de sair daqui”, conta a sergipana Maria Neves dos Santos, 35 anos, há sete em Cubatão com os três filhos adolescentes e o marido. Maria e sua família moram em uma casa simples, numa encosta da Cota 200, sem sistema de tratamento de esgoto. Sobrevivem com renda mensal de menos de dois salários mínimos, proveniente da aposentadoria do marido, afastado do trabalho por problemas de saúde, e da venda de artesanato. Da janela de casa, avistam a mata, exuberante.
O bairro, onde vivem cerca de 5.700 pessoas, segundo a CDHU, fica no quilômetro 50 da pista ascendente da Rodovia Anchieta, a 7 quilômetros do centro de Cubatão. Uma parte das casas será removida por questões de segurança de tráfego e outra porção do bairro passará por urbanização. Maria participou em dezembro de uma reunião com representantes das diversas secretarias de governo envolvidas no programa, na qual foram abordadas as dificuldades do bairro, os anseios da comunidade e os planos do poder público. “Mas existem muitas perguntas sem respostas”, diz.
Severino Ferreira da Silva, o Bill, morador do bairro desde 1979 e há três anos presidente da Sociedade de Melhoramento da Cota 200, a associação local, concorda com Maria. “O governo já fez 15 reuniões no bairro, mas não temos um canal de resposta para as dúvidas da comunidade”, afirma. “Queremos saber quem vai ter de sair e quando isso vai acontecer. A falta de respostas gera expectativa e ansiedade nas pessoas.” Os moradores pretendem reivindicar indenização por suas casas e cartas de crédito. “Sou favorável ao projeto, desde que dê às pessoas o direito à cidadania e à dignidade”, afirma. Severino é dono de uma pequena loja de material de construção no bairro.
Em abril do ano passado, a Polícia Ambiental entrou em todos os bairros-cota para coibir novas construções e permitir que a CDHU fizesse o cadastramento das já existentes, evitando mais ocupações — foram identificados 3.378 domicílios. Mas na Vila Esperança, que concentra o maior número de moradias (5.474, grande parte erguida sobre o mangue) e é considerada uma área problemática, novas casas não pararam de subir.
Há quem questione a maneira como o contato entre os membros do governo e as lideranças comunitárias vem sendo conduzido. “Não estão nos ouvindo e, sim, nos empurrando as decisões goela abaixo”, opina Roque Bispo Costa, idealizador de um criativo sistema de captação de água de nascentes no alto da serra (altura da Cota 500) e de distribuição dessa água, já tratada, que abastece os bairros de Cota 200, Cota 400, Mantiqueira, Samarco e Vale Verde e lhe garante um convênio com a prefeitura local.
O governo paulista refuta a idéia de ausência de diálogo. Rubens Lara menciona que foram feitas muitas reuniões em todos os bairros e que todos os encontros pedidos foram realizados. Afirma também que os envolvidos com o programa têm prestado contas ao Comitê da Agenda 21 de Cubatão, que reúne representantes da sociedade civil, do setor privado e do poder público para projetos estabelecidos pela população para melhorar a cidade até 2020. Alega que ainda não é possível informar quais famílias terão de deixar suas casas, pois isso depende dos laudos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que devem ser concluídos em breve. “Temos atendido a algumas solicitações das famílias. A proposta de construção de casas com três dormitórios é um exemplo disso”, afirma Lara.
Lógica perversa
A expansão das ocupações irregulares em Cubatão deu um salto na década de 90. A tese de doutorado do economista Joaquim Miguel Couto, defendida em 2003 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), indica que, segundo dados do Censo de 1991, havia 26.856 pessoas vivendo em favelas no município, ao passo que em 1980 elas somavam 15.038. O número de moradores nas favelas aumentou 79% em uma década, enquanto a população de Cubatão cresceu cerca de 16%.
A explosão habitacional em áreas de manancial causa problemas ambientais e também para a saúde humana. Em 1994 havia quatro casas na Água Fria, às margens do Rio Cubatão, que abastece 70% da região da Baixada Santista. Com a inação do poder público, essas quatro casas transformaram-se em 1.389 moradias ao longo de 13 anos.
Reportagem do jornal Folha de S.Paulo, publicada em 27 de janeiro, revela que a Sabesp tem distribuído na Baixada Santista água imprópria para consumo, com excesso de coliformes fecais — a ingestão de água contaminada pode causar febre tifóide, diarréia, verminoses e hepatite A. A Sabesp diz que a qualidade da água retirada dos mananciais vem caindo nos últimos anos devido às ocupações irregulares e ao lançamento de esgoto nos mananciais da Serra do Mar.
O modelo de crescimento na cidade segue uma lógica perversa que favorece a pobreza. “Em Cubatão, as favelas crescem tanto em períodos de aquecimento da economia quanto nos momentos de crise”, observa Kehl. Em épocas de desenvolvimento econômico as favelas incham porque as empresas do pólo industrial não costumam contratar mão-de-obra local, sob a alegação de que esta não é suficientemente qualificada. Assim, trazem pessoas de outras cidades e, como a oferta de moradia é pequena, os empregados das indústrias acabam indo para as favelas. “Já em períodos de crise da economia e de desemprego, várias pessoas que moravam na cidade perdem seus postos de trabalho e se mudam para as favelas”, diz.
Bill, presidente da Sociedade de Melhoramento da Cota 200, foi um dos que se mudaram para a região. Trabalhou para a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) até 1983 e morava na Vila Parisi, encravada entre várias indústrias e célebre pela tragédia do nascimento de bebês anencéfalos e pelos casos de doenças ligadas à miséria, à falta de saneamento básico e à poluição. “As invasões aconteceram por causa das indústrias, que demitiam seus funcionários e não pensavam na questão habitacional”, acredita Bill. “Como o aluguel era caro no centro de Cubatão, fomos nos instalando próximo à Anchieta.”
Segundo estimativa da própria prefeitura, atualmente cerca de 64 mil pessoas — 53% dos 120 mil moradores da cidade — residem em favelas ou em áreas como encostas e mangues. Embora Cubatão seja uma das cidades mais ricas de São Paulo, os indicadores sociais de longevidade e escolaridade do município estão bem abaixo da média estadual, de acordo com o Índice Paulista de Responsabilidade Social, elaborado pela Fundação Seade.
Falta capacitação
Um sistema criativo de captação de
água abastece bairros (acima), em
convênio com a prefeitura. O improviso
dribla a necessidade, assim como
no futebol das crianças
A qualificação dos habitantes da cidade preocupa a comunidade. Maria Neves dos Santos, da Cota 200, sonha em criar uma cooperativa com os moradores do bairro. “A gente quer projetos de geração de renda para ter condições de cuidar do próprio desenvolvimento. Mas precisamos de capacitação”, afirma Maria. “Como a gente vai sair (com a remoção) sem uma renda para pagar impostos?”, questiona. “Sem dinheiro, voltaríamos para o mesmo lugar. Hoje, sem pagar aluguel, às vezes já passamos dificuldades”, conta.
O sucesso do programa de recuperação socioambiental depende da capacidade de reduzir a situação de miséria excludente e de buscar melhores condições de vida. Quase todos os programas habitacionais implantados no Brasil fracassaram, porque o problema não era apenas a condição precária das moradias. “Não existe erradicação de favela, e sim erradicação da pobreza”, defende Kehl.
O programa da Serra do Mar promete pôr em prática em Cubatão o tripé da sustentabilidade: desenvolvimento econômico, bem-estar social e preservação ambiental. “Já começamos oficinas de capacitação da mão-de-obra local para dar alternativas de emprego e renda à população. E 20% da carga horária dos cursos foi reservada para noções de educação ambiental”, afirma Pedro Ubiratan de Azevedo, secretário adjunto estadual de Meio Ambiente.
Em dezembro de 2007, 263 moradores de Cubatão concluíram a primeira turma do curso de educação ambiental e qualificação profissional. Destes, um grupo de 118 jovens recebeu treinamento básico sobre rotinas administrativas, atendimento ao cliente, logística portuária, logística em terminais de contêineres e logística em transporte multimodal. E também informações sobre poluição, consumo consciente da água, resíduos sólidos e a importância da preservação da Serra do Mar.
Os outros 145 participantes da turma, composta de jovens e idosos, aprenderam a confeccionar pufes com material reciclável, além de receber formação como educadores ambientais — numa iniciativa conjunta da Secretaria do Meio Ambiente, a Prefeitura de Cubatão, o Senai e o Ciesp da cidade.
Outras ações ambientais programadas para a região são recuperar áreas do Parque Estadual da Serra do Mar e promover o ecoturismo na região. “Pretendemos envolver os moradores de Cubatão na gestão e na preservação do parque”, diz Azevedo. A proposta, que partiu da própria comunidade, é qualificar os habitantes para que se tornem guias turísticos. Na altura da Cota 200, a mata forma trilhas que vão até Paranapiacaba, em Santo André. O mesmo bairro concentra duas cachoeiras, que hoje recebem esgoto, lixo e animais mortos.
“Mas queremos a preservação. A gente tem de pensar no amanhã e no futuro de nossos filhos”, diz Maria, moradora do bairro. À sua maneira, ela tenta transmitir o mesmo conceito de desenvolvimento sustentável formulado pela Comissão Brundtland nos anos 1980: satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades.
Depois de crescer gerando degradação ambiental e exclusão social por 70 anos, Cubatão tenta se converter em modelo de desenvolvimento sustentável. Para isso, terá de lidar com a ocupação da população de baixa renda em área de proteção
Por Alessandra Pereira – Fotos: Bruno Bernardi
Versão
em PDF
Por sete décadas, Cubatão, na Baixada Santista, foi exemplo de crescimento insustentável, uma péssima referência para as outras cidades. As indústrias de grande porte instaladas na região geraram riqueza para os cofres públicos e o setor privado, mas transformaram Cubatão no município mais poluído do País. Em paralelo à industrialização, a construção da Rodovia Anchieta e da primeira pista da Imigrantes — que ligam São Paulo ao Porto de Santos, o maior corredor de exportação brasileiro — trouxe pessoas de todos os cantos do Brasil para trabalhar em suas obras e, como impacto, o avanço de moradias sobre a Serra do Mar, maior remanescente nacional de Mata Atlântica.
Alguns dos moradores que hoje habitam áreas de preservação ambiental do Parque Estadual da Serra do Mar são filhos e netos de operários que construíram a Anchieta. Ao fim das obras, no início da década de 60, o Departamento de Estradas e Rodagem (DER-SP) os autorizou a permanecer com suas famílias no local.
De acordo com cadastro socioeconômico realizado em junho do ano passado pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), órgão ligado à Secretaria de Estado da Habitação, 21.204 moradores de Cubatão vivem em zonas de risco, de proteção ambiental — mangue e manancial — ou em áreas pertencentes ao Parque Estadual da Serra do Mar. As famílias de baixa renda estão instaladas nas favelas Pinhal de Miranda, Pilões, Água Fria e Vila Esperança e nos chamados bairros-cota 95/100, 200, 400 e 500 — que levam esse nome por conta da altura em que se encontram em relação ao nível do mar.
Parte da população reage com ceticismo
ao programa de reordenação proposto pelo
governo. Bill (abaixo), líder dos moradores, diz
que a falta de comunicação gera ansiedade
Em diversas vezes, o poder público buscou equacionar o problema da ocupação desordenada em áreas de proteção ambiental, com remoção da população para conjuntos habitacionais. E diversas foram as razões para que as tentativas resultassem em fracasso. Trinta anos após a criação do Parque Estadual da Serra do Mar, o governo do estado lançou um programa de recuperação socioambiental, que, desta vez, apresenta um diferencial: induzir o desenvolvimento sustentável na região, respeitando as características sociais da comunidade. Parte da população, escaldada com os insucessos de planos anteriores, reage com desconfiança.
Mas o que diferencia este projeto dos já apresentados nas últimas décadas pelos governos estadual e municipal? “Antes as pessoas das favelas eram removidas, mas sempre retornavam às áreas ocupadas porque os conjuntos habitacionais eram inadequados”, reconhece Luis Augusto Kehl, arquiteto da CDHU.
As favelas, aponta Kehl, possuem uma estrutura física e social que sustenta o modo de vida de seus moradores: a proximidade dos vizinhos, a possibilidade de cuidar dos filhos que brincam na rua enquanto a dona de casa faz cocada para vender e o marido conserta a bicicleta no fundo do quintal. Ao tirar as pessoas de suas casas e vielas, como consertar uma bicicleta ou montar um pequeno salão de beleza dentro de um apartamento? Como vigiar as crianças entre escadas e corredores? Além disso, os moradores passam a ter de pagar a prestação do imóvel e as contas de luz, água e condomínio e a conviver de forma à qual não estão habituados. “Por essa razão não projetamos mais conjuntos habitacionais tradicionais, e sim bairros que oferecem habitação, comércio, serviços e espaços de lazer”, conta o arquiteto.
Ao levar em conta esses aspectos, o programa de recuperação socioambiental tem como objetivo proteger os mananciais e a biodiversidade, recuperar as encostas e os manguezais de Cubatão, além de reurbanizar as áreas das cotas 95/100 e 200 desmembradas do parque em 1994 e ainda não regularizadas do ponto de vista fundiário.
As outras metas são remover as famílias instaladas às margens das rodovias e as que vivem em áreas de proteção ambiental, com risco de deslizamento e de inundações, para novas moradias, em áreas mais seguras. “Até 2010 cerca de 20 mil pessoas deverão ser realocadas”, afirma Rubens Lara, assessor especial do governo paulista e diretor-executivo da Agência Metropolitana da Baixada Santista. “Planejamos a construção de 5 mil novas unidades habitacionais.” Boa parte dos moradores das Cotas 400, 500 e de áreas de risco das Cotas 200, 95/100, Água Fria, Pilões e Vila Esperança deverá ser removida. “É um modelo pioneiro de construções populares”, acredita Lara.
A previsão é construir as novas moradias nas áreas chamadas de Bolsão 7, Bolsão 9 e Jardim Casqueiro, com recursos do governo estadual, da Prefeitura de Cubatão, do Banco Mundial, do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal e de empresas concessionárias. Pelas contas do governo estadual, cerca de R$ 700 milhões devem ser investidos nos próximos três anos em projetos de cunho socioambiental. A publicação do edital para licitação das obras da primeira etapa do programa estava agendada para o fim de janeiro.
Além de prédios, é prevista a construção de casas com dois e três dormitórios e aquecimento solar, sobrados com áreas residencial e comercial sobrepostas, centro de comércio e um parque nos moldes do Ibirapuera na área de transição entre o mangue — atualmente ocupado por casas sustentadas por palafitas no núcleo da Vila Esperança — e uma área já aterrada.
Valor ambiental
Conciliar a presença de pessoas e a preservação ambiental é um desafio e tanto, especialmente quando se fala neste remanescente florestal. O Parque Estadual da Serra do Mar é a maior unidade de conservação da Mata Atlântica no País. Com quase 315 mil hectares, vai da divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro até o sul do litoral paulista, e reúne a maior diversidade de árvores do planeta — o palmito-juçara, alimento de mais de 70 espécies animais, é a que corre maior risco de desaparecer. Ali se encontra também um quinto das aves brasileiras: são 373 espécies, 131 exclusivas da Mata Atlântica (42 delas estão ameaçadas de extinção).
O parque abriga ainda 111 espécies de mamíferos, quase a metade das existentes na Mata Atlântica, e 144 espécies de anfíbios. Segundo o Atlas da Mata Atlântica, produzido pela Fundação SOS Mata Atlântica e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 56% das florestas de Cubatão são nativas.
“A pressão para a ocupação da Serra do Mar é conhecida”, comenta Mário Mantovani, diretor de mobilização da SOS Mata Atlântica. “A atuação dos políticos na cidade durante as campanhas eleitorais foi um dos motivos que mais dificultaram a conservação da floresta”, analisa. “A cada eleição municipal, eles estimulavam famílias de baixa renda a ocupar áreas de mangue, do parque e de encosta para reforçar suas bases eleitorais.” Agora Mantovani está otimista com o programa estadual. “Ainda que tardia, é uma boa solução. O projeto parece bem elaborado. Vamos ver se é para valer”, diz ele, que classifica 2008, ano de eleições municipais, como decisivo para os rumos de Cubatão.
Nem todo mundo está convencido. Entre alguns moradores da Cota 200 e da Cota 400 reina o ceticismo. Com renda mensal oscilando entre R$ 3 mil e R$ 6 mil, o casal Aristides Rodrigues Amorim, supervisor de manutenção, e sua mulher, Joana Silva Santos, mora com outras seis pessoas da família em uma casa de dois andares na Cota 400, construída ao longo de 20 anos. O bairro fica entre os quilômetros 46 e 48, margeando as duas pistas da Anchieta. Nele vivem aproximadamente 636 moradores, de acordo com o cadastro da CDHU. Aristides acredita na manutenção do status quo. “Passadas as eleições, acho difícil nos tirarem. Os políticos da cidade chegam aqui e prometem que vamos continuar.”
No vale, área de manancial é tomada
por casas (acima). Nas famílias, o apego
ao velho jeito de morar divide espaço
com a disposição de abraçar um novo
modelo de ocupação
“Toda eleição a gente escuta que vai ter de sair daqui”, conta a sergipana Maria Neves dos Santos, 35 anos, há sete em Cubatão com os três filhos adolescentes e o marido. Maria e sua família moram em uma casa simples, numa encosta da Cota 200, sem sistema de tratamento de esgoto. Sobrevivem com renda mensal de menos de dois salários mínimos, proveniente da aposentadoria do marido, afastado do trabalho por problemas de saúde, e da venda de artesanato. Da janela de casa, avistam a mata, exuberante.
O bairro, onde vivem cerca de 5.700 pessoas, segundo a CDHU, fica no quilômetro 50 da pista ascendente da Rodovia Anchieta, a 7 quilômetros do centro de Cubatão. Uma parte das casas será removida por questões de segurança de tráfego e outra porção do bairro passará por urbanização. Maria participou em dezembro de uma reunião com representantes das diversas secretarias de governo envolvidas no programa, na qual foram abordadas as dificuldades do bairro, os anseios da comunidade e os planos do poder público. “Mas existem muitas perguntas sem respostas”, diz.
Severino Ferreira da Silva, o Bill, morador do bairro desde 1979 e há três anos presidente da Sociedade de Melhoramento da Cota 200, a associação local, concorda com Maria. “O governo já fez 15 reuniões no bairro, mas não temos um canal de resposta para as dúvidas da comunidade”, afirma. “Queremos saber quem vai ter de sair e quando isso vai acontecer. A falta de respostas gera expectativa e ansiedade nas pessoas.” Os moradores pretendem reivindicar indenização por suas casas e cartas de crédito. “Sou favorável ao projeto, desde que dê às pessoas o direito à cidadania e à dignidade”, afirma. Severino é dono de uma pequena loja de material de construção no bairro.
Em abril do ano passado, a Polícia Ambiental entrou em todos os bairros-cota para coibir novas construções e permitir que a CDHU fizesse o cadastramento das já existentes, evitando mais ocupações — foram identificados 3.378 domicílios. Mas na Vila Esperança, que concentra o maior número de moradias (5.474, grande parte erguida sobre o mangue) e é considerada uma área problemática, novas casas não pararam de subir.
Há quem questione a maneira como o contato entre os membros do governo e as lideranças comunitárias vem sendo conduzido. “Não estão nos ouvindo e, sim, nos empurrando as decisões goela abaixo”, opina Roque Bispo Costa, idealizador de um criativo sistema de captação de água de nascentes no alto da serra (altura da Cota 500) e de distribuição dessa água, já tratada, que abastece os bairros de Cota 200, Cota 400, Mantiqueira, Samarco e Vale Verde e lhe garante um convênio com a prefeitura local.
O governo paulista refuta a idéia de ausência de diálogo. Rubens Lara menciona que foram feitas muitas reuniões em todos os bairros e que todos os encontros pedidos foram realizados. Afirma também que os envolvidos com o programa têm prestado contas ao Comitê da Agenda 21 de Cubatão, que reúne representantes da sociedade civil, do setor privado e do poder público para projetos estabelecidos pela população para melhorar a cidade até 2020. Alega que ainda não é possível informar quais famílias terão de deixar suas casas, pois isso depende dos laudos do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que devem ser concluídos em breve. “Temos atendido a algumas solicitações das famílias. A proposta de construção de casas com três dormitórios é um exemplo disso”, afirma Lara.
Lógica perversa
A expansão das ocupações irregulares em Cubatão deu um salto na década de 90. A tese de doutorado do economista Joaquim Miguel Couto, defendida em 2003 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), indica que, segundo dados do Censo de 1991, havia 26.856 pessoas vivendo em favelas no município, ao passo que em 1980 elas somavam 15.038. O número de moradores nas favelas aumentou 79% em uma década, enquanto a população de Cubatão cresceu cerca de 16%.
A explosão habitacional em áreas de manancial causa problemas ambientais e também para a saúde humana. Em 1994 havia quatro casas na Água Fria, às margens do Rio Cubatão, que abastece 70% da região da Baixada Santista. Com a inação do poder público, essas quatro casas transformaram-se em 1.389 moradias ao longo de 13 anos.
Reportagem do jornal Folha de S.Paulo, publicada em 27 de janeiro, revela que a Sabesp tem distribuído na Baixada Santista água imprópria para consumo, com excesso de coliformes fecais — a ingestão de água contaminada pode causar febre tifóide, diarréia, verminoses e hepatite A. A Sabesp diz que a qualidade da água retirada dos mananciais vem caindo nos últimos anos devido às ocupações irregulares e ao lançamento de esgoto nos mananciais da Serra do Mar.
O modelo de crescimento na cidade segue uma lógica perversa que favorece a pobreza. “Em Cubatão, as favelas crescem tanto em períodos de aquecimento da economia quanto nos momentos de crise”, observa Kehl. Em épocas de desenvolvimento econômico as favelas incham porque as empresas do pólo industrial não costumam contratar mão-de-obra local, sob a alegação de que esta não é suficientemente qualificada. Assim, trazem pessoas de outras cidades e, como a oferta de moradia é pequena, os empregados das indústrias acabam indo para as favelas. “Já em períodos de crise da economia e de desemprego, várias pessoas que moravam na cidade perdem seus postos de trabalho e se mudam para as favelas”, diz.
Bill, presidente da Sociedade de Melhoramento da Cota 200, foi um dos que se mudaram para a região. Trabalhou para a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) até 1983 e morava na Vila Parisi, encravada entre várias indústrias e célebre pela tragédia do nascimento de bebês anencéfalos e pelos casos de doenças ligadas à miséria, à falta de saneamento básico e à poluição. “As invasões aconteceram por causa das indústrias, que demitiam seus funcionários e não pensavam na questão habitacional”, acredita Bill. “Como o aluguel era caro no centro de Cubatão, fomos nos instalando próximo à Anchieta.”
Segundo estimativa da própria prefeitura, atualmente cerca de 64 mil pessoas — 53% dos 120 mil moradores da cidade — residem em favelas ou em áreas como encostas e mangues. Embora Cubatão seja uma das cidades mais ricas de São Paulo, os indicadores sociais de longevidade e escolaridade do município estão bem abaixo da média estadual, de acordo com o Índice Paulista de Responsabilidade Social, elaborado pela Fundação Seade.
Falta capacitação
Um sistema criativo de captação de
água abastece bairros (acima), em
convênio com a prefeitura. O improviso
dribla a necessidade, assim como
no futebol das crianças
A qualificação dos habitantes da cidade preocupa a comunidade. Maria Neves dos Santos, da Cota 200, sonha em criar uma cooperativa com os moradores do bairro. “A gente quer projetos de geração de renda para ter condições de cuidar do próprio desenvolvimento. Mas precisamos de capacitação”, afirma Maria. “Como a gente vai sair (com a remoção) sem uma renda para pagar impostos?”, questiona. “Sem dinheiro, voltaríamos para o mesmo lugar. Hoje, sem pagar aluguel, às vezes já passamos dificuldades”, conta.
O sucesso do programa de recuperação socioambiental depende da capacidade de reduzir a situação de miséria excludente e de buscar melhores condições de vida. Quase todos os programas habitacionais implantados no Brasil fracassaram, porque o problema não era apenas a condição precária das moradias. “Não existe erradicação de favela, e sim erradicação da pobreza”, defende Kehl.
O programa da Serra do Mar promete pôr em prática em Cubatão o tripé da sustentabilidade: desenvolvimento econômico, bem-estar social e preservação ambiental. “Já começamos oficinas de capacitação da mão-de-obra local para dar alternativas de emprego e renda à população. E 20% da carga horária dos cursos foi reservada para noções de educação ambiental”, afirma Pedro Ubiratan de Azevedo, secretário adjunto estadual de Meio Ambiente.
Em dezembro de 2007, 263 moradores de Cubatão concluíram a primeira turma do curso de educação ambiental e qualificação profissional. Destes, um grupo de 118 jovens recebeu treinamento básico sobre rotinas administrativas, atendimento ao cliente, logística portuária, logística em terminais de contêineres e logística em transporte multimodal. E também informações sobre poluição, consumo consciente da água, resíduos sólidos e a importância da preservação da Serra do Mar.
Os outros 145 participantes da turma, composta de jovens e idosos, aprenderam a confeccionar pufes com material reciclável, além de receber formação como educadores ambientais — numa iniciativa conjunta da Secretaria do Meio Ambiente, a Prefeitura de Cubatão, o Senai e o Ciesp da cidade.
Outras ações ambientais programadas para a região são recuperar áreas do Parque Estadual da Serra do Mar e promover o ecoturismo na região. “Pretendemos envolver os moradores de Cubatão na gestão e na preservação do parque”, diz Azevedo. A proposta, que partiu da própria comunidade, é qualificar os habitantes para que se tornem guias turísticos. Na altura da Cota 200, a mata forma trilhas que vão até Paranapiacaba, em Santo André. O mesmo bairro concentra duas cachoeiras, que hoje recebem esgoto, lixo e animais mortos.
“Mas queremos a preservação. A gente tem de pensar no amanhã e no futuro de nossos filhos”, diz Maria, moradora do bairro. À sua maneira, ela tenta transmitir o mesmo conceito de desenvolvimento sustentável formulado pela Comissão Brundtland nos anos 1980: satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades.
PUBLICIDADE