Entre o Segundo e o Terceiro Setor, um novo tipo de negócio ganha fôlego no Brasil, unindo características empresariais com as das ONGs
“Gerir e restaurar 60 mil hectares de Mata Atlântica da América do Sul e criar mais de mil postos de trabalho até 2020.” Embora pareça uma típica missão de organização não governamental, ela está no coração dos negócios de uma empresa de erva-mate orgânica. Quando, em 1996, dois amigos de universidade, o argentino Alex Pryor e o americano David Karr, idealizaram o negócio, queriam dividir com mais pessoas o prazer de tomar chimarrão e tereré (versões quente e fria da bebida com o mate). Não desejavam, no entanto, abrir um negócio comum. Ambicionavam uma empresa com uma estratégia de uso sustentável dos recursos naturais e que fosse operada sob a filosofia do comércio justo.
A ideia ganhou forma há 16 anos na Guayakí, hoje uma das principais referências do conceito de negócio social. A empresa vende erva-mate cultivada por comunidades rurais da Argentina, Paraguai e Brasil a consumidores dos Estados Unidos e do Canadá – e, em 2014, pretende aportar no mercado brasileiro.
Além de gerar emprego e renda, a empresa oferece projetos de capacitação para que as comunidades cultivem novas áreas de floresta nativa. A erva-mate precisa da sombra de árvores mais altas para se desenvolver e, por isso, é necessário ter no mesmo terreno outras espécies nativas. Nos projetos da Guayakí, plantam-se principalmente espécies frutíferas, como jabuticaba e pitanga. “Nosso modelo permite restaurar mais hectares de Mata Atlântica, na medida em que cresce a demanda pelo mate. É o contrário do modelo da soja, por exemplo, no qual o aumento de consumo gera um resultado negativo sobre os recursos naturais”, diz Pryor, em entrevista a Página22, por e-mail.
O mate que produzem é orgânico, certificado pela California Certified Organic Farmers (CCOF), creditado pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. E o comércio justo, pela Fair for Life.
NOVOS FORMATOS
A Guayakí integra um grupo de empresas que tem como propósito lucrar apoiando-se na lógica da competitividade e eficiência do mercado ao mesmo tempo em que gera impacto positivo, contribuindo para a solução problemas ambientais e sociais. São os chamados negócios ou empreendimentos sociais. Por unir características do Segundo e do Terceiro Setor (mais em glossário), é também chamado de “Setor 2,5”.
Essas empresas não têm características homogêneas, porque se propõem a gerar o impacto social de diferentes formas. Como afirma Célia Cruz, diretora-executiva do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), o Setor 2,5 tem 50 tons de cinza. “Há ONGs que abrem um negócio para gerar renda, há empresas que vendem serviços ou produtos destinados à população de baixa renda e que, por isso, têm preços acessíveis e há empresas que se parecem mais com as tradicionais: geram lucro e destinam parte (ou tudo) para uma causa social”, explica.
“Estão nesse rol os empreendedores que querem fazer algo de bom pela sociedade, mas por meio dos negócios e não de uma ONG”, explica Henrique Bussacos, sócio-fundador do HUB São Paulo e diretor do HUB Global [1]. Para ele, é difícil traçar uma linha e definir com clareza onde começa e onde termina o Setor 2,5.
[1] O HUB é uma comunidade global de empreendedores, prestadores de serviços, organizações e empresas voltadas para o impacto positivo. É uma rede de contatos, mas há também sedes fixas que funcionam como escritórios de trabalho cooperativo (conhecido pelo jargão em inglês co-working)
“Os Estados, a sociedade civil e a filantropia, sozinhos, não dão conta de resolver a magnitude dos problemas sociais e ambientais que compartilhamos em nível global e local”, diz Pedro Tarak, advogado argentino e conselheiro da Guayakí. Em um mundo com 4 bilhões de pessoas vivendo com menos de US$ 3 por dia, faz sentido que esse setor encontre espaço para crescer. Nos países emergentes, por exemplo, essas empresas são caracterizadas pelo alto poder de ganho de escala e centram-se principalmente em saúde e educação.
Foi justamente em um país emergente, Bangladesh, que surgiu uma das mais famosas instituições do Setor 2,5: o Grameen Bank [2]. Já no Brasil, um serviço para a população que depende do Sistema Único de Saúde (SUS) é o Saútil, uma espécie de “Google da saúde”. No site de busca sautil.com.br é possível encontrar informações de como e onde acessar remédios, produtos e serviços médicos. A base de dados são os diversos portais governamentais.
[2] Banco que concede microcrédito à população de baixa renda. Por conta disso, seu fundador, o economista bengali Muhammad Yunus, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2006
ALTERNATIVA DE GESTÃO
Esse setor também emerge como uma forma de suprir necessidades e resolver os problemas dos dois setores que o cercam. De um lado, há o maior engajamento do lado empresarial, como mostra o caso dos amigos que fundaram a Guayakí. Do outro, estão organizações do Terceiro Setor com dificuldade de acessar verba dos governos.
Para Renato Kiyama, diretor da Artemisia, muitas ONGs encaram esse tipo de empreendedorismo como alternativa de gestão. “As arrecadações de verba do governo são feitas sob um excesso de burocracia. As ONGs precisam perder muito tempo e trabalho só para prestar contas de como usam os recursos. Por exemplo, nem sempre podem pagar pessoas que prestam serviços, porque toda a verba deve ir só para um projeto específico”, explica. Como decorrência, as organizações estão abrindo braços de negócios sociais para que possam ter mais liberdade de acessar e manejar o dinheiro que entra. (leia mais sobre as organizações do terceiro setor em “Em busca de uma receita própria”)
O Comitê pela Democratização da Informática (CDI) é um exemplo. Nasceu como organização não governamental com a missão de promover o acesso a tecnologias de informação em comunidades de baixa renda e da periferia do Brasil. Em 2009, criou uma unidade de negócios: a CDI Lan, que já afiliou 6,5 mil LAN houses e capacitou seus donos e funcionários para que os locais se transformassem em centros de prestação de serviços. Alguns estabelecimentos, por exemplo, tornaram-se correspondentes bancários do Banco do Brasil que fazem transações, pagamentos, consultas no Serasa e até abertura de conta corrente. A população acessa essas facilidades e os donos das LAN houses ganham mais clientes, além de ser remunerados pelos diversos tipos de serviço.
CENÁRIO NACIONAL
No Brasil, as primeiras empresas sociais foram criadas entre os anos de 2006 e 2007. Estiveram entre as pioneiras o HUB São Paulo e a Tekoha, também cofundada por Bussacos. Em seu primeiro modelo de negócio, a Tekoha era uma loja virtual de artesanato e objetos produzidos por comunidades espalhadas pelo Brasil e que dificilmente chegariam ao mercado consumidor das grandes cidades sem um mediador. A cada venda, metade do valor era dos produtores, 25% cobriam custos e despesas, e o restante ficava como lucro da empresa.
No segundo semestre de 2012, a Tekoha transformou-se em uma consultoria para instituições, como secretarias e governos, interessadas em capacitar comunidades com produções locais. A empresa se deu conta de que a maioria das famílias já estava amadurecida a ponto de seguir seus negócios sem intermediários. “Preparamos as comunidades para que caminhassem sozinhas. A mudança no nosso modelo só aconteceu porque somos um negócio social. Se não fôssemos, continuaríamos intermediando as vendas, porque davam lucro”, diz Bussacos.
Enquanto a Tekoha era criada, as informações sobre o Setor 2,5 começavam a chegar ao Brasil. Crucial nesse momento foi a Artemisia, primeira aceleradora de negócios sociais do País. Duas vezes por ano, cerca de dez empresas em início de operação são selecionadas para passar seis meses sob os cuidados de um time especializado que estuda e redesenha o modelo de negócio, capacita os envolvidos e até ajuda a selecionar novos profissionais recém-formados nas melhores universidades para ser contratados.
Segundo Renato Kiyama, a maior mudança até hoje foi no perfil dos empreendedores apoiados pela Artemisia. Nos primeiros anos, a maioria eram jovens em início de carreira. Desde 2010, no entanto, 80% deles já trabalharam em grandes corporações, mostrando um amadurecimento do setor. Até 2012, 45 empresas haviam passado pelo processo e, neste semestre, outras dez estão sendo aceleradas. De todas, apenas cinco faliram. “As outras, mesmo que não sejam grandes corporações, estão se pagando e crescendo”, pondera Kiyama. Contribui para isso o fato de que a maioria já sai de lá com um impulso financeiro, uma vez que fundos de investimento voltados para os negócios de impacto social ficam de olho nesses novos empreendimentos. Sete negócios que passaram pela Artemisia receberam de início mais de R$ 1 milhão de investidores.
Os chamados fundos de investimento de impacto social crescem acompanhando o Setor 2,5. O ano de 2012 começou com apenas três empresas desse modelo no mercado nacional: a Vox Capital, a First e a Pragma. Atualmente, já existem dez. “Isso mostra uma nova mentalidade. Faz sentido que pessoas queiram investir em um negócio de impacto social, mas que também esperem retorno financeiro”, diz Célia Cruz.
FORAS DA LEI
Aceleradoras e investidoras cumprem papel fundamental para o surgimento e o desenvolvimento das empresas sociais que ainda não contam com ajuda do governo ou regulamentação, como acontece em alguns países, na opinião de Kiyama. Na maior parte dos casos, tais empresas enquadram-se como pequenas e médias, visto que, como ONGs que comercializam algum produto, teriam de pagar impostos mais altos.
O Brasil encontra-se ao lado dos outros emergentes, no grupo dos países sem regulamentação para o Setor 2,5. Já na Europa, definem-se como social enterprise os negócios que comercializam produtos ou serviços, mas destinam todo o lucro para a causa social ou ambiental – ou seja, não dividem nada entre acionistas. Entre outras obrigações para obter isenções fiscais, esses negócios precisam ter uma cota estabelecida de mão de obra voluntária e representantes dos grupos beneficiados no conselho.
O então Ministério da Indústria e do Comércio do Reino Unido estabeleceu em 2004 o conceito de negócios sociais e sua forma legal, chamada Community Interest Company (CIC). Essas empresas são um tipo de sociedade limitada cujo objetivo é operar em benefício da comunidade (provendo serviços, inclusão social, preservação ambiental etc.) e não dos seus proprietários. Por isso, destina todo o lucro para a própria causa, e também sem dividi-lo entre acionistas. Foram regulamentadas para que se diferenciassem das instituições de caridade que têm mais vantagens fiscais, porém estão sujeitas a uma regulamentação mais custosa do que as CICs.
Renato Kiyama, da Artemisia, é pessimista quanto ao surgimento de uma legislação brasileira no futuro próximo. “É difícil regular um setor que no Brasil é muito jovem. Com o tempo, esses negócios vão se definir e consolidar suas características. Teremos mais casos e histórias – boas e ruins. Aí, sim, será hora de ter legislação própria”, afirma. Forçar direitos e deveres agora, para ele, poderia até mesmo limitar a capacidade de inovação e o desenvolvimento do setor em seu maior potencial.
EMPRESA LADO B
Enquanto nem todos os países regulam o Setor 2,5, a organização americana sem fins lucrativos B Lab criou uma certificação para as companhias que usam o seu poder de mercado para criar benefícios sociais e ambientais. As chamadas empresas benfeitoras, ou empresas B, do inglês benefit corporations (B corps), que dá nome ao selo. [3] A Guayakí é uma das empresas certificadas.
A adesão ao certificado é voluntária, porém paga – cerca de US$ 500 anuais para pequenas empresas e US$ 25 mil para grandes. Para obtê-lo, é necessário fazer uma avaliação que meça os impactos que o negócio pode gerar no meio ambiente e na sociedade – como os relacionados à mão de obra – e passar por uma consultoria que indique como minimizá-los. Atravessadas essas duas etapas, o empresário assina um termo de compromisso [4] pelo qual assume os deveres de uma empresa B. Uma vez assinado, o documento passa a ter força legal e os responsáveis podem ser processados pelo seu não cumprimento.
[3] As B Corps foram assunto na seção Economia Verde da edição 64 de PÁGINA22 e no blog De Lá Pra Cá
[4] A chamada “Declaração de Interdependência” diz: “Consideramos que essas verdades são evidentes: (…) Que todo negócio deve se conduzir como se as pessoas e o meio ambiente importassem. Que por meio de seus produtos, práticas e lucros os negócios devem aspirar não causar danos e beneficiar a todos”
O crescimento do número de empresas que aderem ao selo mostra o potencial do setor. Em novembro de 2011, havia 300 B corps nos Estados Unidos, 2 no Canadá e 1 no México. Hoje, são 715, espalhadas por 24 países. A América do Sul conta com 42, das quais 3 no Brasil [5]. E o número só vai crescer. Desde o ano passado, opera no Chile o primeiro braço da B Lab na América Latina, denominado Sistema B. Pedro Tarak, que também é um dos coordenadores da iniciativa, conta que o Sistema B e a CDI já estão estudando a entrada da organização no País.
[5] Ouro Verde Amazônia, CDI Ventures (da CDI Lan) e Abramar
Tarak credita o crescimento dos negócios sociais ao atual momento histórico e econômico, que, segundo ele, pede “a gritos” novas formas de nos organizarmos economicamente e inclui, cada vez mais, a busca pela melhora das condições sociais e do meio ambiente nos negócios.
“Assim como a Revolução Industrial levou ao surgimento de formas de proteger a empresa capitalista – como a Sociedade Anônima (S/A) e a Limitada (Ltda.) –, e assim como a preocupação com a exploração dos trabalhadores impulsionou a formação de cooperativas, nesta era da sustentabilidade precisamos de novas opções empresariais. Opções que combinem a busca pelo lucro com a geração de bens públicos para todos”, diz.
Henrique Bussacos concorda com o raciocínio de Tarak. “A lógica de mercado vigente exagera ao estabelecer que a empresa deve apenas gerar valor para seus acionistas.” Mas Bussacos não considera o Setor 2,5 a única solução para os problemas do mundo. “Sempre haverá espaço para o Segundo e o Terceiro Setor tradicionais. O melhor do Setor 2,5 é influenciar ambos.”[:en]Entre o Segundo e o Terceiro Setor, um novo tipo de negócio ganha fôlego no Brasil, unindo características empresariais com as das ONGs
“Gerir e restaurar 60 mil hectares de Mata Atlântica da América do Sul e criar mais de mil postos de trabalho até 2020.” Embora pareça uma típica missão de organização não governamental, ela está no coração dos negócios de uma empresa de erva-mate orgânica. Quando, em 1996, dois amigos de universidade, o argentino Alex Pryor e o americano David Karr, idealizaram o negócio, queriam dividir com mais pessoas o prazer de tomar chimarrão e tereré (versões quente e fria da bebida com o mate). Não desejavam, no entanto, abrir um negócio comum. Ambicionavam uma empresa com uma estratégia de uso sustentável dos recursos naturais e que fosse operada sob a filosofia do comércio justo.
A ideia ganhou forma há 16 anos na Guayakí, hoje uma das principais referências do conceito de negócio social. A empresa vende erva-mate cultivada por comunidades rurais da Argentina, Paraguai e Brasil a consumidores dos Estados Unidos e do Canadá – e, em 2014, pretende aportar no mercado brasileiro.
Além de gerar emprego e renda, a empresa oferece projetos de capacitação para que as comunidades cultivem novas áreas de floresta nativa. A erva-mate precisa da sombra de árvores mais altas para se desenvolver e, por isso, é necessário ter no mesmo terreno outras espécies nativas. Nos projetos da Guayakí, plantam-se principalmente espécies frutíferas, como jabuticaba e pitanga. “Nosso modelo permite restaurar mais hectares de Mata Atlântica, na medida em que cresce a demanda pelo mate. É o contrário do modelo da soja, por exemplo, no qual o aumento de consumo gera um resultado negativo sobre os recursos naturais”, diz Pryor, em entrevista a Página22, por e-mail.
O mate que produzem é orgânico, certificado pela California Certified Organic Farmers (CCOF), creditado pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. E o comércio justo, pela Fair for Life.
NOVOS FORMATOS
A Guayakí integra um grupo de empresas que tem como propósito lucrar apoiando-se na lógica da competitividade e eficiência do mercado ao mesmo tempo em que gera impacto positivo, contribuindo para a solução problemas ambientais e sociais. São os chamados negócios ou empreendimentos sociais. Por unir características do Segundo e do Terceiro Setor (mais em glossário), é também chamado de “Setor 2,5”.
Essas empresas não têm características homogêneas, porque se propõem a gerar o impacto social de diferentes formas. Como afirma Célia Cruz, diretora-executiva do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE), o Setor 2,5 tem 50 tons de cinza. “Há ONGs que abrem um negócio para gerar renda, há empresas que vendem serviços ou produtos destinados à população de baixa renda e que, por isso, têm preços acessíveis e há empresas que se parecem mais com as tradicionais: geram lucro e destinam parte (ou tudo) para uma causa social”, explica.
“Estão nesse rol os empreendedores que querem fazer algo de bom pela sociedade, mas por meio dos negócios e não de uma ONG”, explica Henrique Bussacos, sócio-fundador do HUB São Paulo e diretor do HUB Global [1]. Para ele, é difícil traçar uma linha e definir com clareza onde começa e onde termina o Setor 2,5.
[1] O HUB é uma comunidade global de empreendedores, prestadores de serviços, organizações e empresas voltadas para o impacto positivo. É uma rede de contatos, mas há também sedes fixas que funcionam como escritórios de trabalho cooperativo (conhecido pelo jargão em inglês co-working)
“Os Estados, a sociedade civil e a filantropia, sozinhos, não dão conta de resolver a magnitude dos problemas sociais e ambientais que compartilhamos em nível global e local”, diz Pedro Tarak, advogado argentino e conselheiro da Guayakí. Em um mundo com 4 bilhões de pessoas vivendo com menos de US$ 3 por dia, faz sentido que esse setor encontre espaço para crescer. Nos países emergentes, por exemplo, essas empresas são caracterizadas pelo alto poder de ganho de escala e centram-se principalmente em saúde e educação.
Foi justamente em um país emergente, Bangladesh, que surgiu uma das mais famosas instituições do Setor 2,5: o Grameen Bank [2]. Já no Brasil, um serviço para a população que depende do Sistema Único de Saúde (SUS) é o Saútil, uma espécie de “Google da saúde”. No site de busca sautil.com.br é possível encontrar informações de como e onde acessar remédios, produtos e serviços médicos. A base de dados são os diversos portais governamentais.
[2] Banco que concede microcrédito à população de baixa renda. Por conta disso, seu fundador, o economista bengali Muhammad Yunus, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2006
ALTERNATIVA DE GESTÃO
Esse setor também emerge como uma forma de suprir necessidades e resolver os problemas dos dois setores que o cercam. De um lado, há o maior engajamento do lado empresarial, como mostra o caso dos amigos que fundaram a Guayakí. Do outro, estão organizações do Terceiro Setor com dificuldade de acessar verba dos governos.
Para Renato Kiyama, diretor da Artemisia, muitas ONGs encaram esse tipo de empreendedorismo como alternativa de gestão. “As arrecadações de verba do governo são feitas sob um excesso de burocracia. As ONGs precisam perder muito tempo e trabalho só para prestar contas de como usam os recursos. Por exemplo, nem sempre podem pagar pessoas que prestam serviços, porque toda a verba deve ir só para um projeto específico”, explica. Como decorrência, as organizações estão abrindo braços de negócios sociais para que possam ter mais liberdade de acessar e manejar o dinheiro que entra. (leia mais sobre as organizações do terceiro setor em “Em busca de uma receita própria”)
O Comitê pela Democratização da Informática (CDI) é um exemplo. Nasceu como organização não governamental com a missão de promover o acesso a tecnologias de informação em comunidades de baixa renda e da periferia do Brasil. Em 2009, criou uma unidade de negócios: a CDI Lan, que já afiliou 6,5 mil LAN houses e capacitou seus donos e funcionários para que os locais se transformassem em centros de prestação de serviços. Alguns estabelecimentos, por exemplo, tornaram-se correspondentes bancários do Banco do Brasil que fazem transações, pagamentos, consultas no Serasa e até abertura de conta corrente. A população acessa essas facilidades e os donos das LAN houses ganham mais clientes, além de ser remunerados pelos diversos tipos de serviço.
CENÁRIO NACIONAL
No Brasil, as primeiras empresas sociais foram criadas entre os anos de 2006 e 2007. Estiveram entre as pioneiras o HUB São Paulo e a Tekoha, também cofundada por Bussacos. Em seu primeiro modelo de negócio, a Tekoha era uma loja virtual de artesanato e objetos produzidos por comunidades espalhadas pelo Brasil e que dificilmente chegariam ao mercado consumidor das grandes cidades sem um mediador. A cada venda, metade do valor era dos produtores, 25% cobriam custos e despesas, e o restante ficava como lucro da empresa.
No segundo semestre de 2012, a Tekoha transformou-se em uma consultoria para instituições, como secretarias e governos, interessadas em capacitar comunidades com produções locais. A empresa se deu conta de que a maioria das famílias já estava amadurecida a ponto de seguir seus negócios sem intermediários. “Preparamos as comunidades para que caminhassem sozinhas. A mudança no nosso modelo só aconteceu porque somos um negócio social. Se não fôssemos, continuaríamos intermediando as vendas, porque davam lucro”, diz Bussacos.
Enquanto a Tekoha era criada, as informações sobre o Setor 2,5 começavam a chegar ao Brasil. Crucial nesse momento foi a Artemisia, primeira aceleradora de negócios sociais do País. Duas vezes por ano, cerca de dez empresas em início de operação são selecionadas para passar seis meses sob os cuidados de um time especializado que estuda e redesenha o modelo de negócio, capacita os envolvidos e até ajuda a selecionar novos profissionais recém-formados nas melhores universidades para ser contratados.
Segundo Renato Kiyama, a maior mudança até hoje foi no perfil dos empreendedores apoiados pela Artemisia. Nos primeiros anos, a maioria eram jovens em início de carreira. Desde 2010, no entanto, 80% deles já trabalharam em grandes corporações, mostrando um amadurecimento do setor. Até 2012, 45 empresas haviam passado pelo processo e, neste semestre, outras dez estão sendo aceleradas. De todas, apenas cinco faliram. “As outras, mesmo que não sejam grandes corporações, estão se pagando e crescendo”, pondera Kiyama. Contribui para isso o fato de que a maioria já sai de lá com um impulso financeiro, uma vez que fundos de investimento voltados para os negócios de impacto social ficam de olho nesses novos empreendimentos. Sete negócios que passaram pela Artemisia receberam de início mais de R$ 1 milhão de investidores.
Os chamados fundos de investimento de impacto social crescem acompanhando o Setor 2,5. O ano de 2012 começou com apenas três empresas desse modelo no mercado nacional: a Vox Capital, a First e a Pragma. Atualmente, já existem dez. “Isso mostra uma nova mentalidade. Faz sentido que pessoas queiram investir em um negócio de impacto social, mas que também esperem retorno financeiro”, diz Célia Cruz.
FORAS DA LEI
Aceleradoras e investidoras cumprem papel fundamental para o surgimento e o desenvolvimento das empresas sociais que ainda não contam com ajuda do governo ou regulamentação, como acontece em alguns países, na opinião de Kiyama. Na maior parte dos casos, tais empresas enquadram-se como pequenas e médias, visto que, como ONGs que comercializam algum produto, teriam de pagar impostos mais altos.
O Brasil encontra-se ao lado dos outros emergentes, no grupo dos países sem regulamentação para o Setor 2,5. Já na Europa, definem-se como social enterprise os negócios que comercializam produtos ou serviços, mas destinam todo o lucro para a causa social ou ambiental – ou seja, não dividem nada entre acionistas. Entre outras obrigações para obter isenções fiscais, esses negócios precisam ter uma cota estabelecida de mão de obra voluntária e representantes dos grupos beneficiados no conselho.
O então Ministério da Indústria e do Comércio do Reino Unido estabeleceu em 2004 o conceito de negócios sociais e sua forma legal, chamada Community Interest Company (CIC). Essas empresas são um tipo de sociedade limitada cujo objetivo é operar em benefício da comunidade (provendo serviços, inclusão social, preservação ambiental etc.) e não dos seus proprietários. Por isso, destina todo o lucro para a própria causa, e também sem dividi-lo entre acionistas. Foram regulamentadas para que se diferenciassem das instituições de caridade que têm mais vantagens fiscais, porém estão sujeitas a uma regulamentação mais custosa do que as CICs.
Renato Kiyama, da Artemisia, é pessimista quanto ao surgimento de uma legislação brasileira no futuro próximo. “É difícil regular um setor que no Brasil é muito jovem. Com o tempo, esses negócios vão se definir e consolidar suas características. Teremos mais casos e histórias – boas e ruins. Aí, sim, será hora de ter legislação própria”, afirma. Forçar direitos e deveres agora, para ele, poderia até mesmo limitar a capacidade de inovação e o desenvolvimento do setor em seu maior potencial.
EMPRESA LADO B
Enquanto nem todos os países regulam o Setor 2,5, a organização americana sem fins lucrativos B Lab criou uma certificação para as companhias que usam o seu poder de mercado para criar benefícios sociais e ambientais. As chamadas empresas benfeitoras, ou empresas B, do inglês benefit corporations (B corps), que dá nome ao selo. [3] A Guayakí é uma das empresas certificadas.
A adesão ao certificado é voluntária, porém paga – cerca de US$ 500 anuais para pequenas empresas e US$ 25 mil para grandes. Para obtê-lo, é necessário fazer uma avaliação que meça os impactos que o negócio pode gerar no meio ambiente e na sociedade – como os relacionados à mão de obra – e passar por uma consultoria que indique como minimizá-los. Atravessadas essas duas etapas, o empresário assina um termo de compromisso [4] pelo qual assume os deveres de uma empresa B. Uma vez assinado, o documento passa a ter força legal e os responsáveis podem ser processados pelo seu não cumprimento.
[3] As B Corps foram assunto na seção Economia Verde da edição 64 de PÁGINA22 e no blog De Lá Pra Cá
[4] A chamada “Declaração de Interdependência” diz: “Consideramos que essas verdades são evidentes: (…) Que todo negócio deve se conduzir como se as pessoas e o meio ambiente importassem. Que por meio de seus produtos, práticas e lucros os negócios devem aspirar não causar danos e beneficiar a todos”
O crescimento do número de empresas que aderem ao selo mostra o potencial do setor. Em novembro de 2011, havia 300 B corps nos Estados Unidos, 2 no Canadá e 1 no México. Hoje, são 715, espalhadas por 24 países. A América do Sul conta com 42, das quais 3 no Brasil [5]. E o número só vai crescer. Desde o ano passado, opera no Chile o primeiro braço da B Lab na América Latina, denominado Sistema B. Pedro Tarak, que também é um dos coordenadores da iniciativa, conta que o Sistema B e a CDI já estão estudando a entrada da organização no País.
[5] Ouro Verde Amazônia, CDI Ventures (da CDI Lan) e Abramar
Tarak credita o crescimento dos negócios sociais ao atual momento histórico e econômico, que, segundo ele, pede “a gritos” novas formas de nos organizarmos economicamente e inclui, cada vez mais, a busca pela melhora das condições sociais e do meio ambiente nos negócios.
“Assim como a Revolução Industrial levou ao surgimento de formas de proteger a empresa capitalista – como a Sociedade Anônima (S/A) e a Limitada (Ltda.) –, e assim como a preocupação com a exploração dos trabalhadores impulsionou a formação de cooperativas, nesta era da sustentabilidade precisamos de novas opções empresariais. Opções que combinem a busca pelo lucro com a geração de bens públicos para todos”, diz.
Henrique Bussacos concorda com o raciocínio de Tarak. “A lógica de mercado vigente exagera ao estabelecer que a empresa deve apenas gerar valor para seus acionistas.” Mas Bussacos não considera o Setor 2,5 a única solução para os problemas do mundo. “Sempre haverá espaço para o Segundo e o Terceiro Setor tradicionais. O melhor do Setor 2,5 é influenciar ambos.”