Obra que se arrasta por sete anos, a transposição do Rio São Francisco ainda gera muitas dúvidas sobre que benefícios trará e como estes serão partilhados pela população local
As máquinas estão a pleno vapor. Em ano eleitoral, mais de 10 mil operários foram convocados para trabalhar dia e noite no sertão nordestino, de modo que neste mandato o governo federal consiga ao menos acionar os explosivos para desviar parte da água do rio e encher um pequeno trecho inicial de 100 quilômetros de canal na obra da transposição do São Francisco em Cabrobó (PE).
O empreendimento arrasta-se por sete anos, envolveu protestos, ações judiciais e embate entre os estados doadores e os receptores do recurso hídrico e já consumiu R$ 4,8 bilhões. Até a conclusão, prevista para o fim de 2015, serão ao todo R$ 8,2 bilhões, 60% acima do originariamente previsto, o que turbinou críticas quanto à relação entre custo, benefícios e impactos ambientais.
Discórdias à parte, a iniciativa não é mais um projeto de intenção: mais da metade da estrutura que rasga a Caatinga para abastecer áreas vulneráveis à seca está finalizada. A empreitada é irreversível. E o debate chega agora a um novo momento: como será a gestão do recurso hídrico e em que medida promoverá o desenvolvimento local?
Após a “inauguração” do ponto de captação no rio, uma festa política provavelmente regada a bode assado e vinho fino produzido a partir de videiras irrigadas pelo Velho Chico, deve se desenhar um cenário apetitoso para a “indústria da seca”, que por décadas troca carros-pipa por votos. Só que agora os objetos de barganha se sofisticaram. São as adutoras, as tubulações que distribuem a água. Começa a disputa pela nova fonte, uma corrida a ser marcada pelo jogo de forças políticas e econômicas, envolvendo as três esferas de governo, o agronegócio e os movimentos sociais que despontam no Semiárido.
A questão atual é saber como a gestão da água extraída do São Francisco vai se integrar à nova realidade econômica e social vivida nos últimos anos pelo Nordeste, dentro de um modelo participativo, sem os problemas comuns no tempo dos “coronéis”, como superfaturamento de adutoras e até a construção de açudes com dinheiro público para embelezar fazendas de políticos. Na última década, o cenário do Semiárido mudou em razão do maior acesso da população a benefícios sociais, renda, crédito e consumo. Entre 2000 e 2010, o PIB per capita do Nordeste [1] expandiu em média 3,12% ao ano, enquanto a taxa de crescimento no Brasil foi 2,22%. O sertanejo trocou o jumento pela motocicleta e a viagem de ônibus velho e empoeirado pelo avião. Assim como a mortalidade infantil, o êxodo para o Centro-Sul diminuiu e deverá permanecer em queda caso a economia regional ganhe impulso em consequência da nova água fornecida pelo São Francisco.
[1] Em dez anos, a economia nordestina saltou de R$ 130 bilhões para R$ 446 bilhões
A maior obra hídrica em curso no País inclui a construção de 700 quilômetros de canais com estações elevatórias, túneis e reservatórios, divididos em dois eixos principais, para perenizar rios (hoje intermitentes) e encher açudes. O Eixo-Leste tem origem no município de Floresta (PE), onde se localiza o lago da Usina Hidrelétrica de Itaparica, e se destina ao abastecimento de cidades de Pernambuco e da Paraíba. De Cabrobó (PE) parte o Eixo-Norte, com seus 400 quilômetros projetados para nutrir os rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN) e Piranhas (PB).
“O governo disse que teremos três hectares irrigados para plantar cebola e tomate”, conta o sertanejo Bartolomeu Amorim, acreditando na promessa, próximo ao vaivém dos caminhões no canal em obras. No lombo do jumento, o lavrador carrega pedaços de mandacaru, o cacto típico do Sertão, para alimentar as vacas no assentamento onde vive.
Cabrobó abriga um dos núcleos de maior grau de desertificação do País, onde os solos degradados parecem não ter solução. A prefeitura planeja um cinturão verde equivalente a 50 mil campos de futebol na faixa de 2,5 quilômetros de ambos os lados do canal. A expectativa é a população dobrar em até dez anos, com mais injeção de recursos e reflexos no comércio. O fazendeiro Antônio Russo, ex-dono da propriedade por onde águas do São Francisco serão transpostas, não tem do que reclamar. Ele recebeu do governo federal uma indenização de mais de R$ 1,1 milhão para a cessão da área, um total de 600 hectares de pastagem na beira do rio. Fontes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estimam que o terreno não valia mais de R$ 700 mil, a preços da época. “Dividi o valor com os filhos, comprei um bom carro e construí dois prédios na cidade”, conta proprietário, ao lembrar que quando menino ajudava o pai a pegar água em um açude distante de casa, no interior da Paraíba.
O Exército se encarregou da obra no trecho inicial de captação da água, no município. A presença dos militares inibiu protestos e, ao longo dos anos, serviu para reduzir a violência e afugentar o tráfico de drogas que imperava nas imediações da principal rodovia da região, apelidada de “Transmaconheira”. Os indicadores sociais melhoraram, mas há desafios de gestão.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), concluído em maio deste ano, identificou a existência de R$ 32 bilhões de investimentos federais em 789 municípios da região de influência da obra da transposição, entre 2007 e 2010. Entretanto, os pesquisadores alertam que não há um plano de desenvolvimento com ações articuladas e potencializadas de modo a aproveitar a oportunidade criada por um grande projeto de infraestrutura hídrica. Perde-se a chance de obter resultados mais consistentes e duradouros para o dinheiro injetado na região.
O ministro da Integração Nacional, Francisco Teixeira, vê um horizonte mais positivo: “O projeto possibilitará o uso dos reservatórios já existentes como suprimento de indústrias, empreendimentos turísticos e irrigação agrícola”. Ele assegura que “os moradores das áreas rurais ao longo dos canais contarão com a oferta hídrica para abastecimento humano e animal e agricultura familiar”.
No entanto, em outras obras do passado, não foi bem assim. Um exemplo é o Canal da Integração, construído pelo governo do Ceará para abastecer a capital, Fortaleza, tendo como fonte o Açude do Castanhão [2], o maior do País. Por muito tempo as comunidades que viviam à beira da água não tiveram acesso a ela. O recurso hídrico é vigiado por câmeras de segurança e guardas armados. A questão só começou a ser resolvida dez anos depois, quando surgiram adutoras e projetos econômicos, como a piscicultura.
[2] Começou a ser construído em 1995 e foi inaugurado em 2002, com investimento de R$ 600 milhões. O reservatório tem volume de água equivalente a duas vezes e meia ao da Baía de Guanabara
“Está mais do que comprovado que a transposição do São Francisco é eleitoreira”, despacha Dom Luiz Cappio, bispo de Barra (BA) que se tornou nacionalmente conhecido ao fazer duas greves de fome em protesto contra o projeto, em 2005 e 2007. O gesto deu visibilidade ao debate sobre os impactos. “Toda vez a obra é acelerada perto das eleições, como ocorreu em 2010, e depois volta a parar.”
“Mais água pra quem?”, pergunta Naidison Baptista, coordenador-executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), ao considerar a transposição do São Francisco uma iniciativa de “concentração e não de democratização da água, porque na prática beneficiará mais a agricultura irrigada para exportação”. Ninguém morre mais de sede no Sertão como antigamente, graças às 915 mil cisternas [3]que acumulam água da chuva para consumo humano já existentes na região, sem a dependência da oferta de caminhões-pipa por políticos. Mais que isso: ao deixar de andar em média seis horas para pegar água, a mulher sertaneja dedica mais tempo ao lazer, à família e a atividades culturais e sociais. Em valores de hoje, o investimento total nas cis ternas se aproxima de R$ 3,3 bilhões – quase um terço do custo da transposição. Existem mais 100 mil reservatórios domésticos de maior porte, específicos para criação de animais e produção de alimentos nos quintais, o que permite ao morador pagar pela própria água – e não receber de esmola – quando o estoque acaba na seca severa.
[3] Entre os vários programas voltados à implantação de cisternas, o maior é o Água para Todos, do Ministério da Integração Nacional
A capacidade total de armazenagem das cisternas é de 68 bilhões de litros, superior a dez vezes o consumo diário da Região Metropolitana de São Paulo. “Hoje, a frente de batalha não é matar a sede, mas aumentar o volume de água para produção familiar e garantir acesso à terra”, afirma Baptista, para quem a transposição é um empreendimento desnecessário. Não faltam obras hídricas no Nordeste. Em 100 anos, foram construídas mais de 400 barragens para armazenar água e 70 mil açudes. É o maior programa de “açudagem” do mundo. Já não serve para o atendimento da atual e futura demanda?
“A obra vai acirrar os conflitos de uso de um rio que já está doente e poderá não suportar toda a carga planejada para ele pelos diversos empreendimentos”, adverte Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). Além da irrigação da lavoura, o rio é estratégico para o funcionamento das usinas hidrelétricas. Tanto assim que as geradoras de energia foram obrigadas a segurar a vazão como medida de segurança energética para a Copa do Mundo.
A questão retrata o quebra-cabeça que será a gestão do recurso hídrico quando tudo estiver funcionando. Pelo projeto da transposição, será desviada 1,4% da vazão média do São Francisco. Na época de seca, o rio fornecerá 26 metros cúbicos por segundo, apenas para o abastecimento humano. No período chuvoso, quando a represa de Sobradinho verter, a sangria aumentará para até 127 metros cúbicos, com uso na irrigação de cultivos. “Ao que tudo indica, os canais só funcionarão com a vazão mínima, devido às várias necessidades de uso do rio, aos impactos que já sofre e aos futuros efeitos das mudanças climáticas, não considerados na obra”, estima Miranda.
De acordo com decreto presidencial, a instância mais alta das decisões sobre a água da transposição é o Conselho Gestor, formado por representantes dos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, além do governo federal e dos comitês das bacias hidrográficas. Até hoje o grupo não se reuniu. “Já que a obra vai acontecer, vamos trabalhar para que os termos de outorga, ou seja, os limites de uso do rio, sejam cumpridos”, enfatiza Miranda. Para ele, “a atual situação das autorizações federais e estaduais para retirada da água está fora de controle e precisa de uma revisão ampla, base para um pacto capaz de garantir a vazão necessária aos projetos”.
Na região há 460 mil hectares de área agrícola com potencial de irrigação. E novos empreendimentos estão por vir, como o Corredor Multimodal do São Francisco, hidrovia a ser estruturada com recursos do Banco Mundial, entre Pirapora (MG) e Petrolina (PE), para reduzir os custos de logística da produção agrícola. Atualmente, devido ao assoreamento, a navegação é quase impossível. A empresa Icofort Agroindustrial demora 45 dias para fazer o comboio fluvial do algodão entre Sobradinho e Petrolina, percurso antes realizado em dez dias.
As cicatrizes do Velho Chico, como os bancos de areia e a erosão das margens, são visíveis a olho nu. Estudos indicam que o rio já perdeu 30% da vazão desde que suas margens começaram a ser desmatadas e o rio começou a ser explorado para irrigação e geração de hidreletricidade. “A promessa da revitalização, com recuperação de matas na beira do rio, dragagem e conservação da biodiversidade, ficou no discurso”, lamenta o presidente do CBHSF. Para ele, “a preocupação não deveria estar só nos usos, mas na produção e na qualidade da água”. O Ministério da Integração Nacional responde que, a cada R$ 1 investido na transposição, outros R$ 3 são aplicados em obras estruturantes. De acordo com o governo, a segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2) prevê R$ 26 bilhões em projetos hídricos, irrigação, drenagem e revitalização.
Antevendo a futura competição pelo São Francisco, os estados se apressam em anunciar investimentos na distribuição da água. O Ceará planeja construir 545 quilômetros de canais margeando a Chapada do Araripe, no sul do estado, para receber a vazão que chegará pelo Eixo-Norte da transposição. Dessa forma, ao custo de R$ 1,1 bilhão, a terra do Padre Cícero, na região de Juazeiro do Norte e do Crato, prepara-se para virar um eldorado do agronegócio, com expectativa de dobrar o número de habitantes, em cinco anos.
Em contraponto, há tímido investimento na coleta e tratamento do esgoto. Ao chegar aos rios menores e açudes próximos aos núcleos urbanos que crescem desordenadamente, a água limpa da transposição se misturará à poluição, como a existente no Rio Paraíba, no município de Monteiro (PB), na ponta final do Eixo-Leste. No Nordeste, apenas um terço da população urbana tem coleta e tratamento de esgoto, segundo dados do Ministério das Cidades. “Fornecimento de água dá mais voto e visibilidade do que saneamento”, ressalta Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil.
“A conta não fecha; falta vazão para tantos usos e a vontade política não pode estar acima das necessidades técnicas”, afirma João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, ao suspeitar que a água não chegará a quem precisa. De outro lado, há o anseio de que o desenvolvimento obtido com o recurso hídrico sirva para mudar de vez o padrão de vida no Sertão. E de que a equação final não seja de conflitos, mas de justiça pelo uso da água.
O bagre da transposição
Para colocar água nos canais e inaugurar a obra, é necessária a prévia instalação de barreiras físicas e elétricas, logo após o ponto de captação no rio, capazes de evitar o acesso de peixes e outros organismos aquáticos. A medida é uma exigência do licenciamento ambiental, porque a incursão indiscriminada de espécies pode causar severo desequilíbrio ecológico nos riachos, açudes e outros ambientes que receberão a água, muitos dos quais utilizados para piscicultura. Nos últimos anos, biólogos monitoram a biodiversidade do São Francisco e também dos locais receptores do recurso hídrico, a fim de identificar eventuais distúrbios no futuro.A iniciativa ilustra um dos principais legados da transposição: o maior conhecimento científico da Caatinga, considerado o bioma menos conhecido e um dos mais ameaçados do País, devido ao desmatamento, ao uso inadequado do solo e à destruição de fontes hídricas. Para o trabalho de resgate e monitoramento da fauna, estabelecido por um dos Planos de Controle Ambiental (PCA) da obra, foi criada uma estrutura de alto padrão no campus da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Petrolina (PE ), com laboratórios, clínicas e demais recintos para tratamento e alojamento de animais capturados no processo de desmate e operação das máquinas.
Profissionais locais são qualificados para trabalhar com licenciamento ambiental e pesquisas com os temas peculiares do Sertão. No caso da flora, o trabalho também consiste em identificar espécies e produzir mudas nativas para a restauração florestal ao longo de uma faixa de 280 quilômetros quadrados ao longo dos canais, conforme prevê o licenciamento.
[:en]Obra que se arrasta por sete anos, a transposição do Rio São Francisco ainda gera muitas dúvidas sobre que benefícios trará e como estes serão partilhados pela população local
As máquinas estão a pleno vapor. Em ano eleitoral, mais de 10 mil operários foram convocados para trabalhar dia e noite no sertão nordestino, de modo que neste mandato o governo federal consiga ao menos acionar os explosivos para desviar parte da água do rio e encher um pequeno trecho inicial de 100 quilômetros de canal na obra da transposição do São Francisco em Cabrobó (PE).
O empreendimento arrasta-se por sete anos, envolveu protestos, ações judiciais e embate entre os estados doadores e os receptores do recurso hídrico e já consumiu R$ 4,8 bilhões. Até a conclusão, prevista para o fim de 2015, serão ao todo R$ 8,2 bilhões, 60% acima do originariamente previsto, o que turbinou críticas quanto à relação entre custo, benefícios e impactos ambientais.
Discórdias à parte, a iniciativa não é mais um projeto de intenção: mais da metade da estrutura que rasga a Caatinga para abastecer áreas vulneráveis à seca está finalizada. A empreitada é irreversível. E o debate chega agora a um novo momento: como será a gestão do recurso hídrico e em que medida promoverá o desenvolvimento local?
Após a “inauguração” do ponto de captação no rio, uma festa política provavelmente regada a bode assado e vinho fino produzido a partir de videiras irrigadas pelo Velho Chico, deve se desenhar um cenário apetitoso para a “indústria da seca”, que por décadas troca carros-pipa por votos. Só que agora os objetos de barganha se sofisticaram. São as adutoras, as tubulações que distribuem a água. Começa a disputa pela nova fonte, uma corrida a ser marcada pelo jogo de forças políticas e econômicas, envolvendo as três esferas de governo, o agronegócio e os movimentos sociais que despontam no Semiárido.
A questão atual é saber como a gestão da água extraída do São Francisco vai se integrar à nova realidade econômica e social vivida nos últimos anos pelo Nordeste, dentro de um modelo participativo, sem os problemas comuns no tempo dos “coronéis”, como superfaturamento de adutoras e até a construção de açudes com dinheiro público para embelezar fazendas de políticos. Na última década, o cenário do Semiárido mudou em razão do maior acesso da população a benefícios sociais, renda, crédito e consumo. Entre 2000 e 2010, o PIB per capita do Nordeste [1] expandiu em média 3,12% ao ano, enquanto a taxa de crescimento no Brasil foi 2,22%. O sertanejo trocou o jumento pela motocicleta e a viagem de ônibus velho e empoeirado pelo avião. Assim como a mortalidade infantil, o êxodo para o Centro-Sul diminuiu e deverá permanecer em queda caso a economia regional ganhe impulso em consequência da nova água fornecida pelo São Francisco.
[1] Em dez anos, a economia nordestina saltou de R$ 130 bilhões para R$ 446 bilhões
A maior obra hídrica em curso no País inclui a construção de 700 quilômetros de canais com estações elevatórias, túneis e reservatórios, divididos em dois eixos principais, para perenizar rios (hoje intermitentes) e encher açudes. O Eixo-Leste tem origem no município de Floresta (PE), onde se localiza o lago da Usina Hidrelétrica de Itaparica, e se destina ao abastecimento de cidades de Pernambuco e da Paraíba. De Cabrobó (PE) parte o Eixo-Norte, com seus 400 quilômetros projetados para nutrir os rios Jaguaribe (CE), Apodi (RN) e Piranhas (PB).
“O governo disse que teremos três hectares irrigados para plantar cebola e tomate”, conta o sertanejo Bartolomeu Amorim, acreditando na promessa, próximo ao vaivém dos caminhões no canal em obras. No lombo do jumento, o lavrador carrega pedaços de mandacaru, o cacto típico do Sertão, para alimentar as vacas no assentamento onde vive.
Cabrobó abriga um dos núcleos de maior grau de desertificação do País, onde os solos degradados parecem não ter solução. A prefeitura planeja um cinturão verde equivalente a 50 mil campos de futebol na faixa de 2,5 quilômetros de ambos os lados do canal. A expectativa é a população dobrar em até dez anos, com mais injeção de recursos e reflexos no comércio. O fazendeiro Antônio Russo, ex-dono da propriedade por onde águas do São Francisco serão transpostas, não tem do que reclamar. Ele recebeu do governo federal uma indenização de mais de R$ 1,1 milhão para a cessão da área, um total de 600 hectares de pastagem na beira do rio. Fontes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) estimam que o terreno não valia mais de R$ 700 mil, a preços da época. “Dividi o valor com os filhos, comprei um bom carro e construí dois prédios na cidade”, conta proprietário, ao lembrar que quando menino ajudava o pai a pegar água em um açude distante de casa, no interior da Paraíba.
O Exército se encarregou da obra no trecho inicial de captação da água, no município. A presença dos militares inibiu protestos e, ao longo dos anos, serviu para reduzir a violência e afugentar o tráfico de drogas que imperava nas imediações da principal rodovia da região, apelidada de “Transmaconheira”. Os indicadores sociais melhoraram, mas há desafios de gestão.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), concluído em maio deste ano, identificou a existência de R$ 32 bilhões de investimentos federais em 789 municípios da região de influência da obra da transposição, entre 2007 e 2010. Entretanto, os pesquisadores alertam que não há um plano de desenvolvimento com ações articuladas e potencializadas de modo a aproveitar a oportunidade criada por um grande projeto de infraestrutura hídrica. Perde-se a chance de obter resultados mais consistentes e duradouros para o dinheiro injetado na região.
O ministro da Integração Nacional, Francisco Teixeira, vê um horizonte mais positivo: “O projeto possibilitará o uso dos reservatórios já existentes como suprimento de indústrias, empreendimentos turísticos e irrigação agrícola”. Ele assegura que “os moradores das áreas rurais ao longo dos canais contarão com a oferta hídrica para abastecimento humano e animal e agricultura familiar”.
No entanto, em outras obras do passado, não foi bem assim. Um exemplo é o Canal da Integração, construído pelo governo do Ceará para abastecer a capital, Fortaleza, tendo como fonte o Açude do Castanhão [2], o maior do País. Por muito tempo as comunidades que viviam à beira da água não tiveram acesso a ela. O recurso hídrico é vigiado por câmeras de segurança e guardas armados. A questão só começou a ser resolvida dez anos depois, quando surgiram adutoras e projetos econômicos, como a piscicultura.
[2] Começou a ser construído em 1995 e foi inaugurado em 2002, com investimento de R$ 600 milhões. O reservatório tem volume de água equivalente a duas vezes e meia ao da Baía de Guanabara
“Está mais do que comprovado que a transposição do São Francisco é eleitoreira”, despacha Dom Luiz Cappio, bispo de Barra (BA) que se tornou nacionalmente conhecido ao fazer duas greves de fome em protesto contra o projeto, em 2005 e 2007. O gesto deu visibilidade ao debate sobre os impactos. “Toda vez a obra é acelerada perto das eleições, como ocorreu em 2010, e depois volta a parar.”
“Mais água pra quem?”, pergunta Naidison Baptista, coordenador-executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), ao considerar a transposição do São Francisco uma iniciativa de “concentração e não de democratização da água, porque na prática beneficiará mais a agricultura irrigada para exportação”. Ninguém morre mais de sede no Sertão como antigamente, graças às 915 mil cisternas [3]que acumulam água da chuva para consumo humano já existentes na região, sem a dependência da oferta de caminhões-pipa por políticos. Mais que isso: ao deixar de andar em média seis horas para pegar água, a mulher sertaneja dedica mais tempo ao lazer, à família e a atividades culturais e sociais. Em valores de hoje, o investimento total nas cis ternas se aproxima de R$ 3,3 bilhões – quase um terço do custo da transposição. Existem mais 100 mil reservatórios domésticos de maior porte, específicos para criação de animais e produção de alimentos nos quintais, o que permite ao morador pagar pela própria água – e não receber de esmola – quando o estoque acaba na seca severa.
[3] Entre os vários programas voltados à implantação de cisternas, o maior é o Água para Todos, do Ministério da Integração Nacional
A capacidade total de armazenagem das cisternas é de 68 bilhões de litros, superior a dez vezes o consumo diário da Região Metropolitana de São Paulo. “Hoje, a frente de batalha não é matar a sede, mas aumentar o volume de água para produção familiar e garantir acesso à terra”, afirma Baptista, para quem a transposição é um empreendimento desnecessário. Não faltam obras hídricas no Nordeste. Em 100 anos, foram construídas mais de 400 barragens para armazenar água e 70 mil açudes. É o maior programa de “açudagem” do mundo. Já não serve para o atendimento da atual e futura demanda?
“A obra vai acirrar os conflitos de uso de um rio que já está doente e poderá não suportar toda a carga planejada para ele pelos diversos empreendimentos”, adverte Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF). Além da irrigação da lavoura, o rio é estratégico para o funcionamento das usinas hidrelétricas. Tanto assim que as geradoras de energia foram obrigadas a segurar a vazão como medida de segurança energética para a Copa do Mundo.
A questão retrata o quebra-cabeça que será a gestão do recurso hídrico quando tudo estiver funcionando. Pelo projeto da transposição, será desviada 1,4% da vazão média do São Francisco. Na época de seca, o rio fornecerá 26 metros cúbicos por segundo, apenas para o abastecimento humano. No período chuvoso, quando a represa de Sobradinho verter, a sangria aumentará para até 127 metros cúbicos, com uso na irrigação de cultivos. “Ao que tudo indica, os canais só funcionarão com a vazão mínima, devido às várias necessidades de uso do rio, aos impactos que já sofre e aos futuros efeitos das mudanças climáticas, não considerados na obra”, estima Miranda.
De acordo com decreto presidencial, a instância mais alta das decisões sobre a água da transposição é o Conselho Gestor, formado por representantes dos estados do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte, além do governo federal e dos comitês das bacias hidrográficas. Até hoje o grupo não se reuniu. “Já que a obra vai acontecer, vamos trabalhar para que os termos de outorga, ou seja, os limites de uso do rio, sejam cumpridos”, enfatiza Miranda. Para ele, “a atual situação das autorizações federais e estaduais para retirada da água está fora de controle e precisa de uma revisão ampla, base para um pacto capaz de garantir a vazão necessária aos projetos”.
Na região há 460 mil hectares de área agrícola com potencial de irrigação. E novos empreendimentos estão por vir, como o Corredor Multimodal do São Francisco, hidrovia a ser estruturada com recursos do Banco Mundial, entre Pirapora (MG) e Petrolina (PE), para reduzir os custos de logística da produção agrícola. Atualmente, devido ao assoreamento, a navegação é quase impossível. A empresa Icofort Agroindustrial demora 45 dias para fazer o comboio fluvial do algodão entre Sobradinho e Petrolina, percurso antes realizado em dez dias.
As cicatrizes do Velho Chico, como os bancos de areia e a erosão das margens, são visíveis a olho nu. Estudos indicam que o rio já perdeu 30% da vazão desde que suas margens começaram a ser desmatadas e o rio começou a ser explorado para irrigação e geração de hidreletricidade. “A promessa da revitalização, com recuperação de matas na beira do rio, dragagem e conservação da biodiversidade, ficou no discurso”, lamenta o presidente do CBHSF. Para ele, “a preocupação não deveria estar só nos usos, mas na produção e na qualidade da água”. O Ministério da Integração Nacional responde que, a cada R$ 1 investido na transposição, outros R$ 3 são aplicados em obras estruturantes. De acordo com o governo, a segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2) prevê R$ 26 bilhões em projetos hídricos, irrigação, drenagem e revitalização.
Antevendo a futura competição pelo São Francisco, os estados se apressam em anunciar investimentos na distribuição da água. O Ceará planeja construir 545 quilômetros de canais margeando a Chapada do Araripe, no sul do estado, para receber a vazão que chegará pelo Eixo-Norte da transposição. Dessa forma, ao custo de R$ 1,1 bilhão, a terra do Padre Cícero, na região de Juazeiro do Norte e do Crato, prepara-se para virar um eldorado do agronegócio, com expectativa de dobrar o número de habitantes, em cinco anos.
Em contraponto, há tímido investimento na coleta e tratamento do esgoto. Ao chegar aos rios menores e açudes próximos aos núcleos urbanos que crescem desordenadamente, a água limpa da transposição se misturará à poluição, como a existente no Rio Paraíba, no município de Monteiro (PB), na ponta final do Eixo-Leste. No Nordeste, apenas um terço da população urbana tem coleta e tratamento de esgoto, segundo dados do Ministério das Cidades. “Fornecimento de água dá mais voto e visibilidade do que saneamento”, ressalta Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil.
“A conta não fecha; falta vazão para tantos usos e a vontade política não pode estar acima das necessidades técnicas”, afirma João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, ao suspeitar que a água não chegará a quem precisa. De outro lado, há o anseio de que o desenvolvimento obtido com o recurso hídrico sirva para mudar de vez o padrão de vida no Sertão. E de que a equação final não seja de conflitos, mas de justiça pelo uso da água.
O bagre da transposição
Para colocar água nos canais e inaugurar a obra, é necessária a prévia instalação de barreiras físicas e elétricas, logo após o ponto de captação no rio, capazes de evitar o acesso de peixes e outros organismos aquáticos. A medida é uma exigência do licenciamento ambiental, porque a incursão indiscriminada de espécies pode causar severo desequilíbrio ecológico nos riachos, açudes e outros ambientes que receberão a água, muitos dos quais utilizados para piscicultura. Nos últimos anos, biólogos monitoram a biodiversidade do São Francisco e também dos locais receptores do recurso hídrico, a fim de identificar eventuais distúrbios no futuro.A iniciativa ilustra um dos principais legados da transposição: o maior conhecimento científico da Caatinga, considerado o bioma menos conhecido e um dos mais ameaçados do País, devido ao desmatamento, ao uso inadequado do solo e à destruição de fontes hídricas. Para o trabalho de resgate e monitoramento da fauna, estabelecido por um dos Planos de Controle Ambiental (PCA) da obra, foi criada uma estrutura de alto padrão no campus da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Petrolina (PE ), com laboratórios, clínicas e demais recintos para tratamento e alojamento de animais capturados no processo de desmate e operação das máquinas.
Profissionais locais são qualificados para trabalhar com licenciamento ambiental e pesquisas com os temas peculiares do Sertão. No caso da flora, o trabalho também consiste em identificar espécies e produzir mudas nativas para a restauração florestal ao longo de uma faixa de 280 quilômetros quadrados ao longo dos canais, conforme prevê o licenciamento.