Eles estavam por toda parte. Era difícil distinguir os vivos dos mortos. Homens, mulheres, crianças, todos se pareciam. Sua idade era também algo insondável. Os velhos tinham aspecto de criança, as crianças, de velho (Yunus, 2004 pág. 13).
A relação entre a redução da pobreza e a paz, reconhecida com o Prêmio Nobel concedido a Muhammad Yunus este ano, está longe de ser unânime. A celebrada revista The Economist, por exemplo, defendeu que não houvesse laureado em 2006. Entre outros argumentos, a revista cita o estudo de um think tank canadense, segundo o qual “guerras e genocídios se tornaram menos freqüentes desde 1991, e o valor do comércio internacional de armas caiu em um terço entre 1999 e 2003”. No Brasil, onde oficialmente não há guerra nem genocídio, cerca de 40 mil pessoas são assassinadas por ano e sabe-se que os índices de pobreza não estão entre os melhores.
O Estado do Mundo, compilação de indicadores sociais e ambientais feita pelo Worldwatch Institute, revela uma fotografia de degradação e futuro sombrio, com implicações severas sobre a segurança econômica e social em todo o planeta. Nesse cenário, o uso em escala de políticas de geração de renda e redução da pobreza é urgente, o que joga luz sobre os programas de microfinanças, em geral, e de microcrédito, em particular. Embora eles não sejam a panacéia que acabará com a pobreza, para quem tem contato diário com microempreendedores, agentes de crédito e coordenadores de programas fica claro o impacto positivo do crédito.
Yunus recebeu o Nobel da Paz por “seus esforços para criar o desenvolvimento econômico e social a partir da base”. Segundo o Instituto Nobel da Noruega, “a paz permanente não pode ser atingida a menos que grandes camadas da população encontrem meios de sair da pobreza. O microcrédito é um desses meios. E o desenvolvimento a partir da base serve para aprofundar a democracia e os direitos humanos”.
Foi em Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo, que ocorreu a mais importante experiência de microcrédito já relatada. Em 1974, o país foi atingido pela “Terrível Fome”, que agravou a miséria e gerou imenso êxodo rural para a capital, Daca. Yunus, então professor da universidade local, passou a buscar uma solução para o grave problema que abalava Bangladesh.
Uma das percepções de Yunus era que barreiras ao acesso a fontes de recursos financeiros excluíam os mais necessitados da economia formal, agravando a miséria em que o país estava mergulhado. Aquele era um período fértil para agiotas, que emprestavam dinheiro a juros abusivos para a compra de matéria-prima e ferramentas.
Yunus detectou a incapacidade de apresentar garantias reais por parte da população mais carente, o que a impedia de receber crédito das instituições financeiras. Ele iniciou, então, um programa de concessão de empréstimos, começando com o valor médio de US$ 27, para pequenos grupos formados a partir de um universo de 42 pessoas. Para ultrapassar a barreira da garantia, o modelo de negócio do professor Yunus desprezou as regras convencionais dos bancos, normalmente carregadas de burocracia, e adotou o “aval solidário” — os grupos, de 3 a 5 pessoas, se responsabilizam por solucionar eventuais dificuldades individuais e pelo pagamento do empréstimo, mantendo-se solventes.
O modelo também introduziu a figura do agente de crédito, profissional capacitado para analisar e acompanhar pessoalmente os empréstimos. Os poucos dólares iniciais se multiplicaram e se transformaram no Grameen Bank, que em abril de 2006 contava com 2.121 filiais e atendia 6,23 milhões de clientes, dos quais 97% mulheres, em 67.670 vilarejos de Bangladesh.
O Grameen Bank premia suas agências com até cinco estrelas: três relacionadas ao seu desempenho financeiro e duas a medidas de impacto social, sendo estas últimas: (i) se crianças em idade escolar da família dos empreendedores participantes do programa estão na escola e (ii) se estas
Famílias cruzaram a linha de pobreza. Para facilitar o monitoramento, o Grameen desenvolveu dez indicadores que mostram se a família deixou, ou não, o limite da pobreza. O banco acompanha o progresso de seus clientes e relata que 55% dos participantes estabelecidos — com pelo menos cinco anos de adesão ao programa — cruzaram a linha de pobreza de 1999 até o fim de 2004.
Inspirado por Yunus, o país tornou-se um centro de melhores práticas em novos serviços, produtos e modelos de negócios para a população de baixa renda. Surgiram, e consolidaram-se, várias instituições de microfinanças, que hoje apresentam números impressionantes.
Uma delas é a organização não governamental Association for Social Advancement (ASA). Fundada em 1979 por um grupo de ativistas que lutava contra a opressão no Paquistão, a ASA mobilizava, conscientizava e organizava a população mais carente para resistir à injustiça e lutar por seus direitos.
Em 1985, já sob outro ambiente político, passou a operar programas de desenvolvimento social, com investimentos nas áreas de saúde, educação, irrigação para os sem-terra e camponeses marginalizados, principalmente mulheres. O programa de microcrédito começou, de fato, em 1991 e hoje é o principal foco da organização, que atua em toda a região do sul da Ásia e do Pacífico. Hoje conta com 4,2 milhões de clientes e movimenta cerca de US$ 255 milhões.
Em 1972, outra importante instituição de microfinanças foi fundada: o Bangladesh Rural Advancement Committee (Brac). Criado para operar projetos de reabilitação após a luta de libertação de Bangladesh, o Brac é hoje a maior instituição de microfinanças do planeta, independente e auto-sustentável.
Emprega 97 mil pessoas, que trabalham para reduzir a pobreza em todos os 64 distritos do país, além de operar no Afeganistão e no Sri Lanka. A mulher é reconhecida como a principal garantia de saúde e educação para as crianças e a conseqüente sustentabilidade de gerações futuras: da carteira de 4,2 milhões de clientes do Brac, 97% são mulheres.
Em boa parte do mundo em desenvolvimento, em especial no Sudeste da Ásia e na América Latina de língua espanhola, as microfinanças são vistas como instrumento poderoso de geração de renda e redução da pobreza e desfrutam de alta relevância na agenda de políticas públicas. Não é à toa que 2005 foi escolhido pelas Nações Unidas como o Ano Internacional do Microcrédito.
No Brasil, embora haja atores dedicados a inserir as microfinanças, e em particular o microcrédito, como instrumentos protagonistas nas políticas sociais, o tema ainda é marginalizado no debate sobre as alternativas de ação pública, como comprovam indicadores como a oferta de microcrédito sobre demanda potencial, os volumes envolvidos, e até espaço na mídia.
Segundo dados do Banco Central, no melhor dos cenários, o microcrédito produtivo conta hoje no Brasil com uma carteira de pouco mais de 300 mil clientes ativos para mais de 9 milhões de microempreendedores potencialmente demandantes desse serviço. Ou seja, a taxa de penetração é da ordem de 3%. Os clientes ativos carregam uma carteira de pouco mais de R$ 300 milhões, montante ridiculamente baixo para o tamanho da economia brasileira. Tanto absoluta quanto relativamente, os números revelam um mercado totalmente inexplorado no País.
Entretanto, uma investigação empírica realizada com base em dados coletados entre os clientes de três unidades da cidade de São Paulo (Brasilândia, Jardim Helena e Heliópolis) do Crédito Popular Solidário (São Paulo Confia) demonstrou que o impacto do microcrédito na geração de renda é significativo: em dois anos, em média, as vendas dos microempresários cresceram dois terços e sua renda — o lucro líquido — dobrou de R$ 1.100 para R$ 2.200.
Os resultados revelam que os microempreendedores em bairros de baixa renda em São Paulo são tão carentes de capital que qualquer injeção, principalmente na forma de capital de giro, provoca alavancagens financeiras espetaculares. Em outras palavras, o fator trabalho está disponível, mas falta o fator capital para que haja produção.
Com a injeção de recursos, ambulantes, camelôs, feirantes, chaveiros, quitandeiras, vendedores de doces, salgados, cosméticos, roupas, ferragens, artesanato e bijuterias, sucateiros, borracheiros, manicures, donos de pequenas mercearias, bicicleteiros, sapateiros, costureiras, entre outros microempresários e suas famílias, são alçados a um novo patamar de renda. Um patamar que pode, inclusive, transformá-los em clientes do sistema bancário tradicional.
No estado atual do mundo, o microcrédito dificilmente solucionará todas as questões de pobreza que afligem muitas partes do globo. Mas, como mostram os dados, quando usado como instrumento dentro de uma política pública coerente, pode se transformar em um bom semeador de paz.
*Mario Monzoni é Coordenador do Gvces e autor da tese de doutorado “Impacto em Renda do Microcrédito”.