O homem inventou o lixo quando adotou um modelo linear de produção, em vez de cíclico. A ideia de lixo é impraticável na natureza: esta não permitiria que algo perdesse a finalidade e ficasse depositado em um canto qualquer.
O lixo é uma característica da ação humana. O homem o criou quando começou a fazer combinações moleculares, alterando a matéria-prima – da areia fez o vidro, do petróleo fez o plástico. Nunca se preocupou em traçar um caminho de volta, isto é, do vidro fazer areia e do plástico, petróleo. A solução foi seguir em frente, sempre inovando. Inventaram-se latas de lixo, aterros sanitários, coletas domiciliares, usinas de reciclagem, trituradores, incineradores. Criaram-se profissões: gari, faxineiro, coletor, catador e, mais recentemente, gestor e engenheiro ambiental com especialização em resíduos. Hoje existe um (sub)mundo para além das latas de lixo que muitos preferem não olhar, uns por omissão, outros por desprezo.
Uma folha descartada de um galho de árvore não perde seu valor na natureza. Transforma-se em nutriente para a própria árvore ou plantas vizinhas e, a seu modo, faz o caminho de volta à copa. Essa dinâmica, circular e integrada, a sociedade humana perdeu em algum momento da história, provavelmente a partir das mudanças de paradigmas decorrentes da Revolução Industrial. “Até ali era impossível não ter um olhar sistêmico do mundo”, reflete a bióloga Maluh Barciotte, pesquisadora do Nupens-USP[1], da Universidade de São Paulo. Os processos do cotidiano eram visíveis. Via-se o nascer e via-se o morrer. Hoje, em sua opinião, as visões são fragmentadas. “Nas grandes cidades não se sabe de onde vem a maior parte dos insumos e muito menos para onde e por quem são levados os seus rejeitos.”
[1] Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo
Do ponto de vista do sistema econômico, assumimos que a natureza está a disposição do nosso uso, segundo interpreta a economista Maria Auxiliadora Amiden Robinson, diretora de educação da Symnetics Consultoria. Com a industrialização, construiu-se um modelo mental, chamado “modelo linear de produção”, que consiste em extrair matéria bruta, transformá-la, usá-la e descartá-la. Concebeu-se a ideia de lixo, algo impraticável na natureza. “O sistema circular da natureza não permitiria que algo perdesse a finalidade e ficasse depositado em um canto qualquer.”
O mundo já chegou à casa do bilhão de tonelada de lixo ao ano e segue aumentando. Mesmo assim, as reações contra esse quadro são meramente pontuais. Maria Auxiliadora tenta analisar o comportamento passivo da sociedade diante desse problema a partir da teoria do inglês Giles Hutchins, que aplica a biomimética[2] na solução de questões socioambientais corporativas. Entre os seis princípios da natureza que o homem deve observar e trazer para a vida na sociedade , a “adaptação” talvez seja o que melhor consiga explicar tal conduta[3]. “Os processos de adaptação na natureza são lentos e complexos, pois envolvem mudanças de contexto. Trazer a adaptação para a nossa realidade implica mudar de hábitos e às vezes mexer com os prazeres”, esclarece.
Cuidar do próprio lixo, limpando-o, separando-o (ou, melhor ainda, impedindo que os vários tipos se misturem) e dando-lhe uma destinação correta pode não ser sinônimo de prazer, mas a sensação de “estou fazendo a minha parte para ajudar em um problemão que é de todo mundo” não fica longe. Para Maluh Barciotte, o nome disso é responsabilidade, “ou habilidade de responder”.
Por exemplo, houve um tempo em que as pessoas se adaptaram ao uso do banheiro dentro de casa e à luz elétrica, afinal, eram mudanças facilitadoras do cotidiano. Agora a situação é inversa e requer adaptação: há um problema de lixo em excesso e a coleta seletiva precisa passar a ser vista como o novo serviço de limpeza pública. “Gostem ou não, as pessoas terão de ter contato mais próximo com seus próprios resíduos.”
[2] Ciência que estuda a natureza como fonte de inspiração e modelo de imitação para processos, sistemas ou elementos
[3] Giles Hutchins trata desse assunto no livro The Nature of Business (ou A Natureza dos Negócios)
DEFINA LIXO
A psicologia sustenta que entre o objeto (lixo) e o comportamento das pessoas existe um significado que, se entendido, pode mediar a dificuldade em lidar com o problema, o que, consequentemente, valorizaria programas de coleta seletiva. Um estudo nesse sentido, intitulado O Significado Psicológico do Lixo, foi realizado pela Universidade Federal da Paraíba em três comunidades de João Pessoa, onde a prefeitura implementou programas piloto de coleta seletiva[4]. “O significado psicológico possui uma função importantíssima entre o objeto e o comportamento, já que a informação que se tem sobre algo influencia no comportamento posterior sobre esse algo”, cita o estudo.
O objetivo do trabalho foi o de analisar o peso semântico da palavra “lixo”. Para isso, os pesquisadores solicitaram aos entrevistados que dissessem as cinco primeiras palavras que lhes viessem à mente ao ouvir a “palavra estímulo” lixo. A pesquisa verificou que “sujeira” foi a principal definidora apresentada pelos entrevistados, seguida de doenças, mau cheiro, reciclagem, poluição, desorganização, imundície, educação, falta de educação e insetos. Ou seja, apenas duas (reciclagem e educação) apresentaram carga afetiva positiva. Para os pesquisadores, o grande peso negativo associado ao lixo pode ser reflexo da atual situação do tratamento dado aos resíduos no Brasil.
Por que a ideia de tomar para si a responsabilidade pelos resíduos soa tão inconveniente? Para Reinaldo Canto, jornalista especializado em sustentabilidade e consumo consciente, colunista da revista CartaCapital e do site Envolverde, esse tema talvez suscite mais perguntas que respostas. No centro de Belo Horizonte, na Praça da Liberdade, os garis fazem quatro varrições ao dia. Ao final de cada varrição, a praça já está toda suja.“É como enxugar gelo”, relata. O que fazer? Aumentar o número de varrições ou tentar fazer com que as pessoas parem de jogar lixo nas ruas[5]?
[4] Os autores do estudo são Taciano Milfont, da Universidade Federal de Alagoas, Juan Carlos Contez e Raquel Belo, da Universidade Federal da Paraíba.
[5] Em agosto, a prefeitura do Rio de Janeiro colocou em vigor o Programa Lixo Zero, que prevê multas a quem jogar lixo nas ruas
“Esse mesmo desrespeito ao espaço público estende-se aos trabalhadores das ruas, que, mesmo dando uma contribuição extraordinária à sociedade coletando resíduos deixados para trás, vivem praticamente à margem da sociedade”, diz Reinaldo Canto.
Entretanto, toda essa cadeia de desvalorização existente no espaço público, segundo ele, deverá ser revertida quando a Política Nacional de Resíduos Sólidos (ver a reportagem “Eterno Retorno”) estiver 100% em prática. Nesse dia, o “lixo” deixará de existir e haverá apenas “resíduos”, termo que seguramente terá um peso semântico positivo, pois estará associado a recursos com valor econômico definido. “Com isso, haverá uma inversão de valores e os trabalhadores que hoje estão enxugando gelo no espaço público passarão a ser valorizados pelo mercado de trabalho e pela sociedade”, estima o jornalista.
Leia mais:
Bons exemplos mostram que implantar o lixo zero é possível, em “Tapete mágico”
O maior nó da destinação correta de resíduos esta nas embalagens, em “Eterno retorno”
Catadore sprecisam ser remunerados pelo serviço prestado ao ambiente e à sociedade, em “Vale mais do que pesa“
[:en]O homem inventou o lixo quando adotou um modelo linear de produção, em vez de cíclico. A ideia de lixo é impraticável na natureza: esta não permitiria que algo perdesse a finalidade e ficasse depositado em um canto qualquer.
O lixo é uma característica da ação humana. O homem o criou quando começou a fazer combinações moleculares, alterando a matéria-prima – da areia fez o vidro, do petróleo fez o plástico. Nunca se preocupou em traçar um caminho de volta, isto é, do vidro fazer areia e do plástico, petróleo. A solução foi seguir em frente, sempre inovando. Inventaram-se latas de lixo, aterros sanitários, coletas domiciliares, usinas de reciclagem, trituradores, incineradores. Criaram-se profissões: gari, faxineiro, coletor, catador e, mais recentemente, gestor e engenheiro ambiental com especialização em resíduos. Hoje existe um (sub)mundo para além das latas de lixo que muitos preferem não olhar, uns por omissão, outros por desprezo.
Uma folha descartada de um galho de árvore não perde seu valor na natureza. Transforma-se em nutriente para a própria árvore ou plantas vizinhas e, a seu modo, faz o caminho de volta à copa. Essa dinâmica, circular e integrada, a sociedade humana perdeu em algum momento da história, provavelmente a partir das mudanças de paradigmas decorrentes da Revolução Industrial. “Até ali era impossível não ter um olhar sistêmico do mundo”, reflete a bióloga Maluh Barciotte, pesquisadora do Nupens-USP[1], da Universidade de São Paulo. Os processos do cotidiano eram visíveis. Via-se o nascer e via-se o morrer. Hoje, em sua opinião, as visões são fragmentadas. “Nas grandes cidades não se sabe de onde vem a maior parte dos insumos e muito menos para onde e por quem são levados os seus rejeitos.”
[1] Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo
Do ponto de vista do sistema econômico, assumimos que a natureza está a disposição do nosso uso, segundo interpreta a economista Maria Auxiliadora Amiden Robinson, diretora de educação da Symnetics Consultoria. Com a industrialização, construiu-se um modelo mental, chamado “modelo linear de produção”, que consiste em extrair matéria bruta, transformá-la, usá-la e descartá-la. Concebeu-se a ideia de lixo, algo impraticável na natureza. “O sistema circular da natureza não permitiria que algo perdesse a finalidade e ficasse depositado em um canto qualquer.”
O mundo já chegou à casa do bilhão de tonelada de lixo ao ano e segue aumentando. Mesmo assim, as reações contra esse quadro são meramente pontuais. Maria Auxiliadora tenta analisar o comportamento passivo da sociedade diante desse problema a partir da teoria do inglês Giles Hutchins, que aplica a biomimética[2] na solução de questões socioambientais corporativas. Entre os seis princípios da natureza que o homem deve observar e trazer para a vida na sociedade , a “adaptação” talvez seja o que melhor consiga explicar tal conduta[3]. “Os processos de adaptação na natureza são lentos e complexos, pois envolvem mudanças de contexto. Trazer a adaptação para a nossa realidade implica mudar de hábitos e às vezes mexer com os prazeres”, esclarece.
Cuidar do próprio lixo, limpando-o, separando-o (ou, melhor ainda, impedindo que os vários tipos se misturem) e dando-lhe uma destinação correta pode não ser sinônimo de prazer, mas a sensação de “estou fazendo a minha parte para ajudar em um problemão que é de todo mundo” não fica longe. Para Maluh Barciotte, o nome disso é responsabilidade, “ou habilidade de responder”.
Por exemplo, houve um tempo em que as pessoas se adaptaram ao uso do banheiro dentro de casa e à luz elétrica, afinal, eram mudanças facilitadoras do cotidiano. Agora a situação é inversa e requer adaptação: há um problema de lixo em excesso e a coleta seletiva precisa passar a ser vista como o novo serviço de limpeza pública. “Gostem ou não, as pessoas terão de ter contato mais próximo com seus próprios resíduos.”
[2] Ciência que estuda a natureza como fonte de inspiração e modelo de imitação para processos, sistemas ou elementos
[3] Giles Hutchins trata desse assunto no livro The Nature of Business (ou A Natureza dos Negócios)
DEFINA LIXO
A psicologia sustenta que entre o objeto (lixo) e o comportamento das pessoas existe um significado que, se entendido, pode mediar a dificuldade em lidar com o problema, o que, consequentemente, valorizaria programas de coleta seletiva. Um estudo nesse sentido, intitulado O Significado Psicológico do Lixo, foi realizado pela Universidade Federal da Paraíba em três comunidades de João Pessoa, onde a prefeitura implementou programas piloto de coleta seletiva[4]. “O significado psicológico possui uma função importantíssima entre o objeto e o comportamento, já que a informação que se tem sobre algo influencia no comportamento posterior sobre esse algo”, cita o estudo.
O objetivo do trabalho foi o de analisar o peso semântico da palavra “lixo”. Para isso, os pesquisadores solicitaram aos entrevistados que dissessem as cinco primeiras palavras que lhes viessem à mente ao ouvir a “palavra estímulo” lixo. A pesquisa verificou que “sujeira” foi a principal definidora apresentada pelos entrevistados, seguida de doenças, mau cheiro, reciclagem, poluição, desorganização, imundície, educação, falta de educação e insetos. Ou seja, apenas duas (reciclagem e educação) apresentaram carga afetiva positiva. Para os pesquisadores, o grande peso negativo associado ao lixo pode ser reflexo da atual situação do tratamento dado aos resíduos no Brasil.
Por que a ideia de tomar para si a responsabilidade pelos resíduos soa tão inconveniente? Para Reinaldo Canto, jornalista especializado em sustentabilidade e consumo consciente, colunista da revista CartaCapital e do site Envolverde, esse tema talvez suscite mais perguntas que respostas. No centro de Belo Horizonte, na Praça da Liberdade, os garis fazem quatro varrições ao dia. Ao final de cada varrição, a praça já está toda suja.“É como enxugar gelo”, relata. O que fazer? Aumentar o número de varrições ou tentar fazer com que as pessoas parem de jogar lixo nas ruas[5]?
[4] Os autores do estudo são Taciano Milfont, da Universidade Federal de Alagoas, Juan Carlos Contez e Raquel Belo, da Universidade Federal da Paraíba.
[5] Em agosto, a prefeitura do Rio de Janeiro colocou em vigor o Programa Lixo Zero, que prevê multas a quem jogar lixo nas ruas
“Esse mesmo desrespeito ao espaço público estende-se aos trabalhadores das ruas, que, mesmo dando uma contribuição extraordinária à sociedade coletando resíduos deixados para trás, vivem praticamente à margem da sociedade”, diz Reinaldo Canto.
Entretanto, toda essa cadeia de desvalorização existente no espaço público, segundo ele, deverá ser revertida quando a Política Nacional de Resíduos Sólidos (ver a reportagem “Eterno Retorno”) estiver 100% em prática. Nesse dia, o “lixo” deixará de existir e haverá apenas “resíduos”, termo que seguramente terá um peso semântico positivo, pois estará associado a recursos com valor econômico definido. “Com isso, haverá uma inversão de valores e os trabalhadores que hoje estão enxugando gelo no espaço público passarão a ser valorizados pelo mercado de trabalho e pela sociedade”, estima o jornalista.
Leia mais:
Bons exemplos mostram que implantar o lixo zero é possível, em “Tapete mágico”
O maior nó da destinação correta de resíduos esta nas embalagens, em “Eterno retorno”
Catadore sprecisam ser remunerados pelo serviço prestado ao ambiente e à sociedade, em “Vale mais do que pesa“