Instituições financeiras em geral ignoram o risco potencial das mudanças climáticas em suas carteiras de crédito
O processo de aquecimento global já é amplamente visto como um risco para a Terra e seus habitantes. A questão não se restringe a se o fenômeno deve ou não ocorrer. As discussões hoje estão relacionadas a quanto o planeta vai esquentar, quando determinado patamar de temperatura será atingido, e o que é necessário fazer para minimizar o problema. A análise vai além da probabilidade binária e já envolve uma gama de variáveis relacionadas a tempo e escala (leia mais na entrevista).
Apesar disso, a avaliação de risco das carteiras de crédito realizada pelos bancos ainda não contempla a questão climática na proporção da crise que se apresenta. É o que se pode depreender de um relatório elaborado pela EcoSecurities, em parceria com a Iniciativa Financeira do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), sobre a relação entre mudança climática e risco para as carteiras de empréstimos dos bancos na América do Norte.
O estudo, divulgado recentemente, mostra que os bancos americanos e canadenses de forma geral consideram que as mudanças climáticas pouco afetam seus negócios. E que o assunto ainda não figura entre as principais preocupações de seus analistas de crédito.
Essa postura em relação às mudanças climáticas é curiosa, uma vez que os bancos são especialistas em avaliar riscos associados a tempo (ou fluxo) e escala (ou volume) financeiros. O estudo indica que vários setores da economia americana têm alto potencial para registrar problemas relacionados às mudanças climáticas. Mas o perfil de curto prazo das carteiras de crédito avaliadas – como as do Bank of America, Citigroup e Scotiabank – colocam os bancos em uma razoável zona de conforto.
O horizonte de curto prazo das instituições – pelo menos no que tange a suas operações de empréstimo – levanta uma questão: a sustentabilidade, que pressupõe preocupação com as gerações futuras, estaria mais no discurso do que na prática?
Embora o risco atual seja considerado baixo pelos bancos avaliados no estudo, o relatório aponta que alguns setores importantes para as carteiras de crédito devem ficar especialmente expostos no futuro. Um desses segmentos é o de energia, pois envolve contratos de financiamento por prazos mais longos. Os fabricantes de alumínio também foram enquadrados nesse grupo, em conseqüência dos altos níveis de emissões de gases de efeito estufa decorrentes de seus processos produtivos.
O risco de alteração do clima seria muito mais significativo, caso o período de tempo analisado fosse superior aos dez anos observados no estudo. Segundo o relatório, os bancos americanos devem fazer uma avaliação mais profunda sobre os impactos físicos e políticos relacionados às mudanças climáticas, para se assegurar de que os empréstimos de longo prazo feitos no futuro não estejam expostos a esses riscos.
A maior prova de que os bancos da América do Norte estariam cometendo um equívoco de avaliação já pode ser observada. Trata-se do processo movido pelo governo do estado da Califórnia contra seis montadoras de veículos – General Motors, Ford, Toyota, DaimlerChrysler, Honda e Nissan -, sob a alegação de que contribuem para o aquecimento global. Esse é um exemplo de risco ao qual as empresas estão sujeitas e que, provavelmente, não foi considerado pelos bancos. Eventuais perdas com pagamentos de multas e processos milionários podem causar danos ao balanço das companhias com reflexos para seus financiadores, à semelhança das ações judiciais contra a indústria do tabaco.
Abaixo da linha do Equador, o tema da mudança climática é visto mais como sinônimo de oportunidade do que de risco. Os países em desenvolvimento – ao menos no primeiro período de compromisso do Protocolo de Kyoto (de 2008 a 2012) – estão fora das metas de redução das emissões de gases de efeito estufa, que estão restritas aos países desenvolvidos, chamados de Anexo-1.
Riscos agrícolas
No Brasil, a idéia de aquecimento global remete a créditos de carbono. O País é um dos principais campos para implantação de projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), instrumento de flexibilização do Protocolo de Kyoto, por meio do qual empreendimentos que contribuam para a redução de emissões podem vender Certificados de Emissões Reduzidas (CER) para empresas do Anexo-1 cumprirem seus compromissos.
Apesar disso, os prováveis prejuízos no Brasil associados às mudanças climáticas começam a se fazer sentir. Um estudo recente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mapeou o estrago causado pelo aquecimento global na área de cultivo dos principais produtos agrícolas brasileiros.
De acordo com os pesquisadores dessas entidades, o aumento de apenas 1 grau na temperatura causaria a redução de 23% na produção de café no estado de São Paulo, enquanto um de 3 graus ampliaria essa perda para 58%. No caso da soja, que tem maior impacto na economia e exportação brasileiras, 1 grau a mais causaria uma queda de 10% na produção e, para uma variação de 3 graus, a perda chegaria a 39%.
Documento divulgado pelo Greenpeace em meados de agosto, intitulado Mudanças do Clima, Mudanças de Vida, também traz a realidade das mudanças climáticas para mais perto dos brasileiros. O relatório relaciona as recentes secas na Amazônia, a elevação da temperatura no Sul do País e o aumento da desertificação no Semi-Árido aos desmatamentos e às queimadas que fazem do Brasil um dos maiores emissores mundiais de gases de efeito estufa, que lança na atmosfera cerca de 300 milhões de toneladas de gás carbônico ao ano.
“Tenho a convicção de que os bancos estão mais atentos ao assunto”, afirma Giovanni Barontini, sócio da consultoria Fábrica Éthica Brasil. “A questão da mudança climática entrou no bojo dos princípios socioambientais que os bancos começam a adotar”, completa. Um exemplo concreto, segundo Barontini, é a inclusão do tema na recente revisão dos Princípios do Equador.
Segundo esse pacto de adesão voluntária assinado por 42 bancos no mundo – cinco deles brasileiros -, as instituições se comprometem a adotar critérios socioambientais na avaliação de project finance, ou seja, programas financiados pela receita gerada pelo próprio empreendimento. Na avaliação de Barontini, em vez de uma postura punitiva, os bancos estão partindo para uma abordagem de incentivo, premiando com juros menores os empreendimentos voltados à sustentabilidade.
“Não temos, tecnicamente, como isolar a contribuição de uma empresa para a mudança climática, mas essa questão está contida na avaliação socioambiental que realizamos”, diz João Carlos de Gênova, diretor de crédito e projetos do banco Itaú-BBA. Segundo ele, o banco possui há quatro anos um sistema de administração de risco socioambiental. Por meio de uma metodologia própria de classificação de risco, o Itaú-BBA estabelece um ranking em que a empresa tomadora de crédito tem direito a taxas decrescentes de acordo com sua política relacionada ao meio ambiente.
Linda Murasawa, diretora da área de produtos socioambientais do Banco ABN Amro Real, afirma que a mudança climática é mais um entre vários indicadores de sustentabilidade que o banco leva em conta para avaliar seu cliente. Segundo ela, apesar dos avanços tecnológicos, a humanidade ainda usa os parâmetros da economia tradicional, cujas bases estão “lá atrás”, na Revolução Industrial. “O risco que uma empresa não sustentável representa para a carteira de crédito do banco somente agora começa a ser quantificado”, diz.
O ABN Amro Real começou a avaliar seus clientes empresariais sob os pontos de vista financeiro, ambiental e social a partir de 2003. Pela lógica do sistema, uma empresa preocupada com a questão socioambiental tem risco menor em relação a outra sem os mesmos parâmetros porque está menos sujeita a multas e acidentes que possam comprometer o resultado e a capacidade de pagamento ao banco. E também porque tende a ser mais bem administrada, já que procurou se adequar a uma série de procedimentos e legislações.
Além de proteger a carteira de empréstimos do banco, a área de análise de risco também prospecta oportunidades de negócios. Ao fornecer subsídios para o desenvolvimento de produtos financeiros que levem o cliente a investir em processos mais limpos, reforça o ciclo de sustentabilidade que o banco pretende estimular. “Nessas linhas de crédito, o banco aperta um pouco seu spread (diferença entre o custo de captação do dinheiro e o juro cobrado do tomador), pois sabe que, ao investir em produção mais limpa, o empresário torna-se mais próximo da sustentabilidade e, com isso, seu risco de crédito torna-se menor”, afirma a diretora.
Cássio Trunkl, analista do projeto Eco-Finanças, da Amigos da Terra-Amazônia Brasileira, avalia que a mudança climática é um fato ainda visto como distante pela sociedade, e o setor financeiro reflete isso. “Os bancos que saírem na frente na correta avaliação do risco da mudança climática em suas carteiras de crédito terão benefício de imagem e de redução do risco”, diz.
No entanto, um estudo realizado pelo instituto de pesquisa Market Analysis, em parceria com o instituto canadense GlobeScan, mostra que a percepção dos brasileiros sobre as mudanças climáticas é maior do que os bancos parecem perceber. Segundo a pesquisa, o efeito estufa é um problema muito grave para 78% dos entrevistados brasileiros, ante 74% em 2003. O estudo coloca o Brasil em sétimo lugar entre os mais atentos ao tema, dentre 30 países consultados.
Sidney Wang, executivo-sênior de crédito sustentável do HSBC, afirma que o grupo considera a questão da mudança climática muito importante, tanto que a instituição se tornou em 2005 o primeiro grande banco a atingir a neutralidade de carbono. Segundo Wang, o banco “zerou” suas emissões de carbono investindo em três frentes: reduziu seu uso de energia, passou a comprar eletricidade de fontes renováveis, e investiu em projetos geradores de créditos de carbono para compensar as emissões remanescentes.
Além disso, o banco tem linhas de crédito destinadas a fomentar economias de “baixo carbono”, com políticas específicas para os clientes dos setores de energia, florestal, infra-estrutura de água doce e indústria química. “Essas políticas têm por objetivo dar suporte aos nossos clientes, buscando torná-los mais eficientes em termos de uso de energia e na adoção de novas tecnologias.”
O Carbon Disclosure Project (CDP) é outro exemplo de iniciativa do setor financeiro relacionada à mudança climática. Trata-se de um projeto internacional, lançado em 2003 e patrocinado por grandes bancos e investidores, com o objetivo de conhecer o que as principais empresas do mundo estão fazendo em relação às mudanças climáticas.
Este ano a pesquisa foi realizada pela primeira vez com empresas brasileiras, com patrocínio do Banco ABN Amro Real e da Abrapp, a associação dos fundos de pensão brasileiros. As 50 maiores companhias negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) foram convidadas a participar. “É uma sinalização importante para as empresas o fato de um grande banco e uma associação de grandes investidores de longo prazo estarem interessados na sua estratégia para o aquecimento global”, afirma Barontini, da Fábrica Éthica Brasil, que coordenou a pesquisa no Brasil.
Perdas bilionárias
Talvez pela característica de trabalhar com prazos mais longos e ser diretamente afetada por variações da natureza a área de seguros mostra-se mais atenta ao tema do que a de crédito bancário. Há tempos o setor monitora as mudanças climáticas e os riscos e oportunidades que elas representam para os negócios – na forma deperdas patrimoniais causadas, por exemplo, por queda de raios, enchentes, tempestades e furacões.
Estudo realizado pela Munich Re, a maior resseguradora do mundo, que acompanha o assunto há mais de três décadas, mostra que esses fenômenos estão se tornando mais destruidores a cada ano e a principal causa é o aquecimento global. Mostra também que a expansão da população humana em áreas de maior incidência de tempestades contribuiu para elevar os prejuízos com os eventos.
O estudo revela que as catástrofes naturais provocaram nos últimos dez anos prejuízos superiores a 300 bilhões de euros, volume eis vezes maior que há 50 anos.
Essa intensificação também afeta o Brasil. A Região Sul, por exemplo, está mais sujeita a ciclones devido ao aquecimento global, o que elevou o custo do seguro patrimonial em relação a outras áreas do País, afirma Glaucio Nogueira Toyama, superintendente de seguros agrícolas e riscos financeiros da Seguradora Mapfre.
Tempestade na horta
Alterações no clima também atingem os seguros rurais, que protegem o produtor em caso de quebra de safra. “A seca em locais onde não era comum, como no Mato Grosso, cujo microclima é composto pela Bacia Amazônica, é um fenômeno recente, com implicações na economia, pois é uma região produtora de soja”, observa.
Alguns bancos já pedem ao produtor que faça seguro para proteger o financiamento.”Depois da grande seca da safra 2004/2005, as instituições passaram a se preocupar com a proteção ao financiamento, o que tem muito a ver com a mudança climática”, conta.
Além do risco de seca, o seguro agrícola tem várias coberturas para problemas associados à mudança climática (geada, granizo, vendaval, incêndio), mas ainda é pouco desenvolvido no Brasil. De acordo com Toyama, apenas 2,5% da área total dos grandes cultivos tem seguro, o que corresponde a prêmios entre R$ 12 milhões e R$ 15 milhões ao ano nos últimos cinco anos.
O tamanho reduzido da carteira e o aumento do risco podem encarecer o custo para o produtor. “Diante do maior impacto das mudanças climáticas sobre a lavoura, e caso a carteira não ganhe escala, é natural que o preço suba com o alta do risco”, diz Toyama. Segundo ele, o seguro agrícola é um mercado razoavelmente novo e sofre com a falta de dados estatísticos de longo prazo para estabelecer um padrão para o risco, fundamental na definição das tarifas.
Embora os riscos climáticos sejam cada vez mais considerados nas atividades das seguradoras, Henry Arima, responsável pela área de seguro ambiental da Unibanco AIG, afirma que a maioria dos clientes contrata o seguro para se proteger de eventuais acidentes ou poluição por resíduos líquidos. “O risco da mudança climática é de difícil precificação, pois as seguradoras trabalham com estatísticas para montar modelos a partir dos quais é calculado o prêmio (o preço do seguro), e os dados sobre esse tema são ainda recentes”, afirma.