Em escolas da rede pública de Santa Catarina, as crianças estão recebendo merendas ecológicas. Além de mais saudáveis, as merendas estimulam negócios entre pequenos produtores rurais de alimentos orgânicos e as prefeituras de cerca de 40 municípios. Trata-se de um círculo virtuoso, que permite a geração de renda e emprego no campo, a proteção do meio ambiente e a alimentação saudável. Exemplos desse tipo podem e devem ser multiplicados em todo o País em prol do desenvolvimento sustentável na esfera local.
As experiências ainda são pontuais no Brasil, mas já proliferam em outras partes do mundo. São as chamadas licitações sustentáveis, nas quais se leva em conta bem mais que preço e qualidade nas decisões de compra dos governos. Incorporam-se critérios de eficiência ambiental e respeito aos direitos humanos e sociais nas especificações de produtos adquiridos ou serviços contratados.
Mais do que reduzir os impactos socioambientais das atividades humanas, as compras sustentáveis pelo governo têm capacidade de criar uma demanda que estimula o crescimento da escala do mercado, fazendo com que esses produtos e serviços se tornem mais acessíveis e levem benefícios para toda a sociedade.
O poder de promover uma importante transformação no mercado de negócios sustentáveis está ao alcance de funcionários públicos de setores administrativos. E acaba de ser reforçado pelo desenvolvimento de uma plataforma web que abre oportunidades de negócios para os empreendedores sustentáveis.
A compra pública sustentável é possível hoje por meio de leilão eletrônico na Bolsa Eletrônica de Compras (BEC) do governo paulista, que vai colocar em operação neste mês de novembro o “selo socioambiental” para alguns produtos ali listados.
Não se trata de um método de certificação de produtos, mas da identifi cação para o usuário desse sistema de que certos bens foram produzidos ou têm um uso que os torna mais amigáveis ao meio ambiente e à sociedade. A ferramenta, além de indicar ao comprador público uma alternativa mais sustentável, também permitirá, por meio da efetivação de editais e pregões, que se realizem compras de produtos até então não acessíveis ao governo.
O sistema da BEC é usado por enquanto apenas pelo governo do Estado de São Paulo e por algumas dezenas de municípios. Espera-se que a experiência influencie outros compradores públicos no País. As vantagens de rapidez, transparência e agilidade de processos licitatórios trazidos pelos sistemas eletrônicos tornam-se atrativos para fornecedores até então considerados de nicho e distantes do universo de contratação do governo.
Do local para o global
A introdução de critérios de sustentabilidade nas compras públicas, ainda inédita no Brasil, vigora em alguns países europeus há mais de uma década. A União Européia tem norma a respeito do tema, aplicável a todos os países membros. Barcelona sediou, em setembro de 2006, a Conferência Internacional “EcoProcura 2006”, organizada pela ONG internacional Iclei – Governos Locais pela Sustentabilidade e pela prefeitura da cidade.
Exemplos de políticas e práticas de licitação sustentável foram discutidos no encontro, que reuniu 350 pessoas, incluindo representantes de governos de 50 países, entre eles o Brasil. Muitos, como o Japão, fazem uso de sistemas eletrônicos para compras de produtos sustentáveis há muito tempo e se sofi sticaram a ponto de utilizá-los para se abastecer de produtos importados, atraindo fornecedores de outros países. O que abre uma rica oportunidade para os empreendedores brasileiros.
Na EcoProcura 2006 foram apresentados casos emblemáticos, que servem de inspiração para a adoção de políticas e práticas de licitação sustentável mundo afora. Entre eles, chama atenção a experiência de Leicester, no Reino Unido, que proibiu a compra de produtos contendo substâncias degradadoras da camada de ozônio, madeira proveniente de corte ilegal e de alguns tipos de pesticida. A cidade propõe-se a reduzir o volume de compra de novos produtos, para minimizar o consumo de bens não essenciais, e ainda determina a obrigatoriedade da reutilização ou conserto de bens.
Dá preferência, ainda, a produtos feitos a partir de material reciclado e equipamentos efi cientes no uso de energia. Utiliza a metodologia de análise do ciclo de vida para avaliar quais produtos causam menor impacto, optando, sempre que possível, por alternativas menos nocivas ao meio ambiente. A fim de implementar a política, a cidade promove treinamento e capacitação de tomadores de decisão, formadores de opinião e compradores públicos.
Outro exemplo recente é a adesão da Câmara Municipal de Almada, em Portugal, ao Projeto LEAP – Local Authority EMAS and Procurement (Sistema de Gestão Ambiental e Licitação Sustentável para Autoridades Locais), co-fi nanciado pela Comissão Européia e que reúne 12 autarquias do Reino Unido, Suécia, Grécia, Espanha e Portugal. O projeto promove, além de compras públicas sustentáveis, a introdução de ferramentas de gestão sustentável nos órgãos públicos, a exemplo dos sistemas de gestão ambiental introduzidos no setor privado na última década.
Em Barcelona, a busca das boas práticas também é uma realidade. Uma experiência pioneira, focada no aspecto social, foi a introdução de cláusulas éticas nos contratos de compra de vestuário para os trabalhadores em parques e jardins locais. O dispositivo obriga os fornecedores a respeitar as normas reconhecidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) durante o processo de produção, independente de onde esteja localizada a fábrica.
A medida, além de estimular o cumprimento das normas da OIT, teve efeito replicador e outros departamentos e cidades do entorno introduziram produtos de comércio justo e de empresas de economia social sustentável em suas compras.
Para estimular a prática no Brasil, o Centro de Estudos em Sustentabilidade da EAESP-FGV (GVces), em parceria com o Iclei, lançou o Guia de Compras Públicas Sustentáveis, em seminário nacional em outubro, em São Paulo.
Foram debatidas as vantagens e os desafios do modelo de compras sustentáveis e casos em andamento no País, ou em vias de se concretizar, como os do governo de Minas Gerais e do Tribunal de Justiça de São Paulo, que estudam a introdução de medidas de gestão ambiental e compras públicas sustentáveis em suas práticas licitatórias.
Ações arrojadas
As ações no estado e no município de São Paulo destacam-se como as mais arrojadas no Brasil. O governo paulista, por exemplo, impõe a aquisição de carros movidos a álcool; proíbe a compra de produtos ou equipamentos que contenham substâncias degradadoras da camada de ozônio; e obriga a aquisição de lâmpadas de alto rendimento energético e baixo teor de mercúrio, entre outras medidas.
No município de São Paulo, há programas voltados para a construção civil, com requisitos de ecoefi ciência nas compras municipais e de controle no uso de madeira em obras públicas, com vistas a evitar a exploração de madeira ilegal da Amazônia.
São muitos os desafios para a implementação da licitação sustentável no Brasil. Um deles é o convencimento dos tomadores de decisão da importância e dos impactos positivos que essas ações podem trazer. A adoção de políticas públicas e normas também se coloca como questão fundamental para a criação de um ambiente propício.
Há pareceres jurídicos relevantes que apontam para a legalidade de tais práticas. É preciso agora que os agentes públicos ajam, efetivando as compras e contratações com base em critérios de sustentabilidade. Além disso, o setor privado deve se informar e se adequar às regras de contratações públicas. Com o poder de fogo dos governos, com certeza haverá boas oportunidades de negócios.
*Rachel Biderman é coordenadora do Programa de Consumo Sustentável do GVces. Luciana Stocco Betiol é advogada e pesquisadora do Gvces.