As organizações internacionais de conservação têm papel crucial na preservação dos ecossistemas ao redor do mundo e contribuíram para a criação de centenas de parques, reservas biológicas e outras áreas protegidas nas fronteiras agrícolas que se expandem em direção às florestas tropicais. Entretanto, o próximo passo no paradigma da conservação tropical é encontrar maneiras de atuar em paisagens em conflito — um desafio que exigirá novas alianças e avanço científico. Um poderoso parceiro para essas organizações na Amazônia podem ser os agricultores familiares.
As margens das áreas protegidas constituem linhas de batalha entre as atividades econômicas que substituem a floresta, como a agricultura e as pastagens, e os ambientalistas que defendem os interesses públicos nos ecossistemas nativos.
Ainda assim, considerações econômicas – como o baixo preço da terra – e a aversão ao risco levaram a uma situação pouco usual: a maior parte das áreas protegidas (com exceção das terras indígenas) está distante das atividades humanas mais destrutivas e, por isso, seu efeito sobre tais atividades pode ser mínimo.
Sem um novo pacto, parece que as maiores florestas tropicais do mundo terão o mesmo destino das florestas temperadas que caíram ao longo dos últimos quatro séculos: resistirão apenas em paisagens remotas, rochosas e montanhosas, onde os custos de oportunidade de excluir a expansão agrícola e a atividade madeireira são baixos.
Uma das mais importantes conquistas da última década na Amazônia – a criação de 5 milhões de hectares de reservas florestais na disputada região central do Pará, entre novembro de 2004 e março de 2005 – mostra que talvez esse destino não esteja selado. Com a criação das reservas, o Pará e o Mato Grosso passaram a deter o maior mosaico de áreas protegidas de floresta tropical do mundo, com 23 milhões de hectares – mais de quatro vezes o tamanho da Costa Rica – de terras indígenas, reservas extrativistas e biológicas e florestas nacionais.
A adição ao mosaico decorreu da iniciativa de agricultores familiares que começaram a se instalar ao longo da Rodovia Transamazônica nos anos 70, atraídos pelas promessas do governo de obtenção de terra, incentivos, assistência técnica, escolas e outros serviços. Muitos vieram dos estados agrícolas do Sul – Paraná e Rio Grande do Sul -, onde haviam se organizado contra a expansão agroindustrial e a concentração de terra.
Pensando regionalmente
Diante do fato de que as promessas não se materializaram, eles formaram em meados dos anos 80 o Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica (MPST), para angariar apoio aos esforços de manter a rodovia — ainda não pavimentada — trafegável. A Igreja Católica, por meio das Comunidades Eclesiais de Base, ajudou a construir uma “maneira regional de pensar”, promovendo a ligação entre os agricultores de várias localidades ao longo da rodovia que enfrentavam problemas
semelhantes.
Depois de várias vitórias, incluindo a criação de uma linha especial de crédito para os pequenos proprietários, o FNO Especial (um braço do Fundo Constitucional da Região Norte), o MPST transformou-se no Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu (MDTX), no início da década de 90, e ampliou sua agenda para tentar conciliar o desenvolvimento econômico rural com a conservação florestal. Representando 20 mil famílias agricultoras e mais de 110 organizações de base, essa instituição guarda-chuva lançou, no fi m dos anos 90, uma iniciativa de planejamento regional que incluía a criação de duas grandes reservas.
A proposta era explicada pelo líder Ademir Federicci, o “Dema”, como um meio de garantir que a chuva continuasse a nutrir as lavouras e as fl orestas da região. Mas havia uma segunda intenção: garantir zonas-tampão (buffer zones) contra a agitação social e a violência que acompanhava a especulação de terra vinda do Sul, de São Félix do Xingu e de outros centros de criação de gado, e ameaçava as comunidades agrícolas ao longo da Rodovia Transamazônica.
Mosaico Precursor
O governo brasileiro aceitou a proposta do MDTX de criar um enorme mosaico de reservas ao longo da rodovia e comissionou o Instituto Socioambiental (ISA), uma organização não governamental, para estudar a melhor forma de desenhar uma das reservas: a Terra do Meio entre os rios Baixo Xingu e Tocantins, no Pará.
O ISA juntou forças com outras ONGs, como o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a Environmental Defense, o Greenpeace e o Woods Hole Research Center, para desenhar o mosaico. A proposta resultante foi incorporada ao processo de planejamento regional — liderado pelas ONGs — para
o asfaltamento da BR-163, também reconhecido e adotado pelo governo.
Em novembro de 2004, foi anunciada a criação de duas reservas extrativistas na Transamazônica, com um total de 2 milhões de hectares. O governo se preparava para declarar a criação dos componentes adicionais do complexo de reservas da Terra do Meio, quando a freira americana Dorothy Stang, de 73 anos, foi assassinada. Ativista de direitos humanos e fundiários, ela atuava há mais de 30 anos ao longo da Transamazônica.
A repercussão de Dorothy
Em resposta à reação internacional, o governo rapidamente anunciou a criação de mais 3 milhões de hectares de reservas em fevereiro de 2005 e enviou 2 mil soldados à região, para restaurar a ordem. Durante o processo, os líderes do MDTX visitaram os vilarejos e as comunidades ao longo da rodovia para angariar o apoio de governos locais e de indústrias à criação das novas reservas e, ao mesmo tempo, pedir a investigação rápida e a condenação dos assassinos de Dorothy Stang.
Os eventos que se seguiram ao assassinato não impediram a criação das reservas. A oeste da Terra do Meio, o anúncio de que o governo planejava asfaltar a BR-163 estimulou a especulação com a terra e a violência associada a ela. Um decreto presidencial em seguida estabeleceu uma moratória na concessão de títulos de terra e permissões para extração de madeira em uma área de 14,6 milhões de hectares ao longo da rodovia, o que acabou com a especulação da noite para o dia.
Agora, grande parte da região é considerada para a criação de áreas protegidas. A formidável aliança de organizações que lutam pelos direitos humanos e fundiários com instituições dedicadas à conservação ambiental tem vários precedentes, especialmente na Amazônia.
O núcleo do mosaico de áreas protegidas no Pará e Mato Grosso é formado por uma rede de terras indígenas resultante de uma aliança entre conservacionistas e povos indígenas que data da década de 60. Além disso, a Amazônia brasileira tem mais de 5 milhões de hectares de reservas extrativistas — áreas protegidas que permitem aos seus habitantes tradicionais continuar tirando a sobrevivência da região — que resultaram do movimento independente dos seringueiros liderado por Chico Mendes, assassinado em 1988.
Os agricultores familiares da Transamazônica representam, entretanto, uma novidade em relação às alianças anteriores entre movimentos sociais e ambientais. Eles sempre foram considerados vilões ou vítimas da fl oresta. Comparados a grupos indígenas e de seringueiros, são novatos na Amazônia, têm menos conhecimento do ambiente da floresta e não podem demandar vastos territórios como terras ancestrais.
Conhecimento e criatividade
São mais de 3 milhões de pessoas que ocupam as fronteiras agrícolas da região, mais de seis vezes o número de indivíduos que compõem povos indígenas e comunidades tradicionais. O papel desses agricultores na conservação ambiental não decorre da sustentabilidade dos usos que fazem dos recursos naturais em si, mas de um conhecimento ambiental mais amplo e de suas propostas e criatividade política para fazer avançar o desenvolvimento sustentável e a conservação em escala regional.
Embora sejam vistos como vilões porque cortam a fl oresta para plantar e criar gado, as conquistas na Terra do Meio demonstram sua efi cácia no âmbito da conservação. Suas estratégias compreendem uma nova forma de controle ambiental e dos recursos que os habitantes da fl oresta estão adotando em resposta às crescentes pressões e ameaças ao seu modo de vida.
O poder dos pequenos agricultores na Amazônia emerge, em parte, de seu sucesso em ocupar cargos políticos estratégicos. Hoje, o MDTX conta com três prefeitos e dois deputados, um estadual e um federal. O êxito político e a oposição do movimento à extração ilegal de madeira, à concessão fraudulenta de títulos de terra e à concentração da terra nas mãos de detentores ausentes ajudaram os agricultores a superar pressões consideráveis, às vezes violentas, vindas das elites políticas e econômicas locais.
Três líderes de base envolvidos na criação das reservas, inclusive Dema, foram mortos até 2001, e nove assassinatos cometidos ao longo de 2003 estiveram diretamente relacionados ao estabelecimento das reservas da Terra do Meio.
Atualmente as ameaças à vida humana na região são piores do que nunca e, nas áreas em confl ito, são os “agricultores conservacionistas” que estão em risco.
Seu sucesso recente, entretanto, significa que a comunidade conservacionista precisa, mais uma vez, expandir seu conceito de “parceiro”.
Os pequenos proprietários podem ser a forma mais importante de capital social em várias fronteiras em fl orestas tropicais, fundamentais para estratégias de conservação que lutam para ir além do estabelecimento de parques e reservas biológicas.
Nessas paisagens de fronteira, a “conservação produtiva”, que resulta do poder de movimentos sociais fortes e da participação das comunidades locais, pode ser mais eficaz do que estratégias convencionais de conservação que enfatizam o papel do Estado e excluem as populações locais.
A nova forma da conservação, que permitiu conquistas como as da Terra do Meio, manifesta-se no planejamento regional participativo ao longo dos principais corredores econômicos. Nessas regiões de transformação rápida da paisagem fl orestal causada pelo asfaltamento iminente de rodovias, os grupos internacionais de conservação são apenas um entre vários stakeholders de um processo em que as elites locais, políticas e econômicas são muito poderosas.
Com uma numerosa presença física na fronteira e o poder político acumulado em anos de organização, os pequenos agricultores tornaram-se capazes de fazer pender a balança dessas negociações em favor da conservação e do bem comum.
Este ensaio é uma versão do artigo Smallholders, The Amazon’s New Conservationists, que os autores publicaram na revista Conservation Biology, volume 20, número 5.