A disputa dos índios com a empresa envolve provar a própria existência. De tão deteriorada, a relação foi parar no tribunal
Diante da pergunta da reportagem sobre uma possível negociação entre os índios guarani e tupiniquim e a empresa Aracruz, o cacique Toninho Guarani mostrou alguma indignação. Entendeu negociação como abrir mão, ou fazer concessões, daquilo que lhe é mais valioso. “Não queremos negociação porque significa rasgar nossa identidade”, respondeu.
O contexto explica a preocupação de Toninho Guarani com o uso da palavra: a disputa envolve a posse de terras , e a base de argumentação da Aracruz está no fato de que os índios, que reivindicam a área em litígio, já não vivem de acordo com suas tradições. Assim, para os índios, provar sua identidade é crucial para ganhar a briga no Ministério da Justiça, onde o caso foi parar. Os índios baseiam-se em laudos da Funai, que determinam a demarcação das terras. Caberá ao ministério aceitar a recomendação, rejeitá-la, ou pedir novos estudos.
“A Aracruz tem mania de dizer que esse território não tem índio, quando sempre foi habitado pelos tupiniquins e guaranis. A empresa tem 407 mil hectares de terras e reivindicamos a demarcação de 11.009 hectares”, diz.
Segundo Carlos Alberto Roxo, diretor de Sustentabilidade da Aracruz, a empresa tem provas de que as áreas foram compradas de forma legítima em 1967, época em que não havia aldeias indígenas na região. “Dez anos antes mesmo de chegarmos, as áreas já haviam sido muito desmatadas para alimentar os fornos de uma siderúrgica que havia em Vitória e fotos aéreas mostram que não havia agrupamentos indígenas no local.”
Roxo explica que entre 1975 e 1983, a Funai começou a identificar descendentes de índios na região, a fim de protegê-los e reuni-los em algum lugar. Segundo ele, o processo teria sido controverso até dentro da Funai, pois descendentes já descaracterizados das tradições indígenas teriam se declarado índios para obter as terras.
Entre 1994 e 1998, a Funai havia reconhecido uma área de 18.070 hectares, mas o então ministro da Justiça, Íris Rezende, demarcou apenas 7.061 hectares, alegando que os índios não precisavam de tanta terra, pois já não viviam de caça ou extrativismo, e sim da pequena agricultura.
Segundo Roxo, os índios acataram a decisão e, em contrapartida, a Aracruz ofereceu contratos para fornecimento de madeira de eucalipto, com garantia firme de compra, por 20 anos, como uma forma de os índios obterem renda. Mas, depois de uma assembléia geral em 2005, os índios decidiram retomar a luta pela terra e romperam o contrato com a Aracruz. A partir daí, segundo o diretor, a disputa foi marcada por invasões às instalações da Aracruz, ocupação do porto de Vitória e agressão a funcionários da empresa. “Agora vejo que foi um erro fazer acordos que só empurraram o problema com a barriga. Enquanto a questão de fundo, que é a quem cabe a posse da terra, não for resolvida, não há como retomar a relação entre as partes”, admite Roxo.
Winnie Overbeek, técnico da ONG Fase no Espírito Santo, afirma que, apoiada pelo governo militar, a Aracruz se apropriou de terras indígenas e quilombolas. “Cerca de 30 aldeias foram extintas e os quilombolas que ocupavam uma área de 200 mil hectares não conseguiram nenhum tipo de devolução ou indenização” , diz.
Além dos índios e quilombolas, a empresa também está em conflito com o MST, que protesta contra a monocultura do eucalipto no norte do Espírito Santo e sul da Bahia. Segundo Edinalva Moreira Gomes, membro da coordenação do MST no Espírito Santo, mais de 90% do norte do estado está ocupado com a plantação de eucalipto. “Se dependesse do movimento camponês, A Aracruz não existiria”, diz Edinalva.
Overbeek afirma que o ponto mais sensível está em uma campanha da empresa junto à população local e aos funcionários contra os índios, incitando a discriminação e o racismo. Outdoors com a frase “A Funai trouxe os índios. A Aracruz trouxe o progresso” ficaram expostos durante duas semanas nas cidades capixabas de Aracruz e Coqueiral, espalhados por um movimento de apoio da população local à Aracruz.
“Consertar os prejuízos da campanha discriminatória contra a população indígena vai durar muito tempo. No dia 13 de dezembro, quando 200 índios estavam ocupando pacificamente o porto de exportação da Aracruz, houve quase um massacre por uma multidão de 2 mil trabalhadores, sobretudo terceirizados, liberados para essa ‘manifestação’ pela empresa”, diz Overbeek.
Discriminatórias contra os índios. “O que mais queremos neste momento é uma definição da Justiça e uma segurança jurídica para operar. Mesmo que a Justiça determine a recomendação da Funai, é melhor do que trabalhar sobre incerteza”, diz o executivo.
Para ele, as duas partes perdem com a não-solução do conflito: os índios, que perderam um substancial rendimento ao interromper o fornecimento da madeira, e a Aracruz, que tem prejuízos de imagem, inclusive por não conseguir o selo Forest Stewardship Council (FSC) para sua madeira: a certificação é vetada a produtos de área em litígio com povos indígenas.
Mércio Gomes, presidente da Funai, resume em uma frase a possibilidade de a Aracruz ganhar a causa: “Um advogado lhe dá direito a habeas corpus se você provar que matou a mãe uma só vez”.