A relação entre índios e a mineradora, firmada em uma lógica assistencialista, desconsiderou aspectos cuturais, dizem estudiosos
O relacionamento entre a Vale do Rio Doce e os índios xikrin é de tal intensidade que até se tornou objeto de vastos estudos acadêmicos. Cesar Gordon, antropólogo, etnólogo e professor do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, encontrou nessa relação um rico material para explicar os efeitos da circulação de dinheiro e bens industrializados na economia política nativa.
Em sua obra Economia Selvagem – ritual e mercadoria entre os índios Xikrin-Mebêngôkre (Editora Unesp), fi ca clara a complexidade da relação entre os índios e a Vale, e patente que difi cilmente um acordo será possível entre as partes se determinados aspectos antropológicos não forem compreendidos pela empresa.
O caso Vale-Xikrin é um pau que nasceu torto, nas palavras de Marcio Santilli, do Instituto Socioambiental. “A Vale sabe disso, só não sabe endireitar. Houve um erro de origem, estabelecido na relação fi rmada dentro de uma lógica assistencialista, que gera demanda eterna de mais e mais recursos, sem que tivesse havido uma programatização adequada, inclusive por parte da Funai. As crises sempre foram negociadas pela Vale casuisticamente”, afi rma Santilli, que chegou a participar de um plano de desenvolvimento sustentável com os xikrin.
Antes disso, conta Santilli, os índios haviam fi rmado contratos ilegais com madeireiros, para exploração de mogno, patrocinados pela Funai no tempo da ditadura. “Nessa época da madeira, os xikrin tinham até avião, que dentro de sua mitologia está relacionado à ave, um símbolo de poder.”
Gordon, em uma investigação histórica, mostra que os objetos manufaturados do homem branco — pivôs da discórdia com a Vale — já era uma questão para os xikrin há 150 anos, a ponto de defi nir suas políticas de aproximação ou recuo diante do branco. “Isto é, a questão já estava posta desde cedo, e, do ponto de vista dos xikrin, é antes causa que efeito do contato”, escreve o antropólogo em Economia Selvagem.
“Não foi por falta de assessoria técnica que o confl ito se criou. A Vale sempre se fez assessorar por técnicos e antropólogos”, afi rma Santilli. “A história da empresa se confunde com o aumento do conhecimento sobre os índios.” Mas esse conhecimento parece não ter sido utilizado, e a afl uência da Vale na região só fez alimentar a relação dos xikrin com os bens materiais.
Até interromper a verba mensal repassada aos índios, a Vale proporcionava considerável quantia de recursos e melhorias nas comunidades. O problema é que, a cada dia, os xikrin querem objetos mais sofi sticados, em maior quantidade, como em uma espiral infl acionária.
Em seus estudos, Cesar Gordon percebeu que os objetos funcionam como uma diferenciação de poder dentro da tribo. À medida que determinado objeto deixa de promover diferenciação (torna-se comum, pois outros integrantes os buscam para melhorar seu “status”), é preciso buscar outro.
Os objetos são utilizados ritualisticamente, em cerimônias, conferindo a determinados integrantes da tribo uma ascendência sobre os demais. A sociedade xikrin entende que há integrantes com “nomes mais bonitos” (mejx, em sua língua), ou seja, com maior poder e prestígio que outros. Usar determinado objeto é uma forma de conseguir esse nome. E possuir um objeto do branco é uma forma de mostrar dominação sobre ele.
Segundo o antropólogo, isso distancia os xikrin de complexos guerreiro-canibais descritos na Amazônia. Não se trata de comer o inimigo, ou arrancar-lhe a cabeça, mas de capturar sua cultura, material e imaterial, sua riqueza, sua beleza.
O fluxo de recursos da segunda maior mineradora do mundo na região funciona, portanto, como um fósforo no barril de pólvora. Dar dinheiro para aplacar os índios pode ter o efeito contrário. Para conseguir mais, uma das formas que encontraram foi fechar a estrada de ferro da Vale que atravessa suas terras. “É a única forma que têm de chamar a atenção. Eles são uma minoria étnica insignifi cante. A Vale repassa recursos, mas nunca esteve preocupada com a integridade cultural desse povo”, diz Marcos Antonio Reis, integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em Marabá (PA).
Para Santilli, a solução só poderá vir da relação entre a empresa e os índios, mas a Vale gostaria que a Funai resolvesse o problema. Ao entrar com representação na OEA, é como dizer que a solução não partirá mais dela.
“A Vale tem razão quando diz que a Funai tem responsabilidade. Temos difi culdade devido à falta de recursos. Mas é preciso dizer que a Vale recebeu 411 mil hectares de graça do Estado para explorar Carajás e fi rmou um contrato com os índios”, afi rma Mércio Gomes, da Funai.
À parte a discussão de quem é a responsabilidade, o interesse em resolver a questão é da Vale. “Os xikrin constituem um elemento de instabilidade, que vai desde sentar no trilho do trem até fazer o caso repercutir internacionalmente, junto a instâncias como o Banco Mundial”, avalia Santilli.
Segundo Gordon, os xikrin continuam abertos ao diálogo e esperam que a Vale designe alguém capacitado para isso. “A Vale precisa mudar seu comportamento e sua estratégia. Já existem diagnósticos e propostas de novos modelos de gestão do convênio entre as partes, realizados por antropólogos que conhecem bem os xikrin. E sempre se podem fazer outros. O mais importante é não alijar os índios do processo. Qualquer projeto que não respeite suas próprias formas de decisão interna vai fracassar”, afirma.