Estável há milhares de anos, a união de homens e animais domésticos enfrenta agora o desafio da modernidade
Por Rodrigo Squizato
Era uma vez um lobo, um animal selvagem que vivia no Sudeste da Ásia ou na América do Norte. Não era um bicho mau, como fazem crer as histórias infantis de Chapeuzinho Vermelho ou dos Três Porquinhos. O espécime era dócil e esperto. Aproximouse dos humanos, conquistou a simpatia de um deles, que lhe deu um naco de comida, talvez um pedaço de carne, provavelmente um osso. Nos dias seguintes, a história se repetiu e logo o lobo permitiu certa intimidade e deixou o homem passar a mão em sua cabeça.
Nascia ali uma das relações mais estáveis da história da humanidade, aquela entre o cachorro e o homem. Embora bem-sucedida, sofreu inúmeras mudanças nos cerca de 12 mil anos que se passaram desde essa improvável versão dos fatos – da qual, tirando a presença do lobo e do homem, todo o resto é incerto.
Ninguém sabe exatamente como e por que homem e lobo se uniram. A teoria mais aceita é que a domesticação do animal que viria a se transformar no cão foi de grande serventia para a atividade de caça, que se juntava à coleta como ocupação dos homens na época.
Daí para alguém mais criativo defi nir que “estar no mato sem cachorro” é mau negócio deve ter sido um pulo. Algumas teses defendem que outro fator positivo para a união foi a segurança proporcionada pelo animal, principalmente durante a noite.
As mudanças mais signifi cativas na relação começaram a ocorrer quando o homem se fi xou na terra, após desenvolver técnicas de cultivo e domesticar outros bichos. A criação de animais como as ovelhas, as cabras e os porcos tornou a principal função do cachorro, que a esta altura já tinha pelo menos 4 mil anos de serviços dedicados à caça, obsoleta. Mas os milhares de anos de intimidade permitiram que ele fosse treinado pelo dono não para matar outros animais, mas para usar a técnica de cerco e, assim, ajudar os pastores a manejar os rebanhos.
Companheiros fiéis de caça e de trabalho, os antepassados dos atuais totós garantiram o futuro da espécie no seio da sociedade humana com uma longa ficha de serviços prestados.
Atualmente, a quase totalidade dos homens não faz a mínima idéia de como pastorear um rebanho, muito menos de caçar. Nem por isso os cães correm qualquer risco de ser colocados de lado. A relação baseada na singela troca de comida e afago por rabo abanando e lambidas é sólida porque se baseia na emoção. Humana, “por supuesto”.
Cauda em prontidão
“A questão central da domesticação de animais é o carinho, o amor e a carência”, explica Denise Gimenez Ramos, coordenadora de pós-graduação em psicologia clínica da PUC-SP. A justifi cativa para o sucesso dos animais na sociedade moderna também é, aparentemente, simples. Segundo Denise, nenhum ser humano tem a disposição afetiva com outra pessoa que os bichos de estimação têm.
É a disponibilidade incondicional que faz com que os seres humanos confiem em seus cães – e também nos gatos, domesticados milhares de anos depois de seus inimigos mortais – , a ponto de torná-los, em alguns casos, seus confidentes.
Tamanha intimidade não passou despercebida pela academia, principalmente em relação aos efeitos antidepressivos propiciados. O uso de bichos em tratamentos clínicos amplia-se a cada dia. Em asilos, a presença de um animal por grupo de idosos melhora a comunicação entre eles, reduz o isolamento e ajuda a evitar a depressão.
Nos Estados Unidos, segundo Denise, cachorros treinados são usados em hospitais para reduzir a recusa a tratamentos dolorosos e combater a depressão. “Muitas vezes as pessoas falam com o cachorro aquilo que não dizem para os médicos”, o que auxilia na identificação de tratamentos, explica.
O uso de animais em terapias para portadores da Síndrome de Down também é reconhecidamente eficaz. Outros estudos indicam que até para hipertensão um animalzinho cai bem, reduzindo o número de crises em relação às pessoas que vivem sozinhas.
O uso clínico de animais de estimação talvez seja o melhor exemplo do sucesso de milhares de anos de convívio. Mas há, no outro extremo, exageros duros de roer.
São casos em que as pessoas enxergam em suas mascotes outros seres humanos. Identificar tais casos não é difícil: torna-se comum vestirem o cão, comprar-lhe um refrigerante canino – os holandeses já inventaram até uma cervejinha – ou adorná-lo com uma coleira de ouro e sair à rua com o totó em um carrinho similar ao dos bebês humanos. O dono se sente realizado, mas o bichano fica com cara de coitado.
Entre os dois extremos estão a maioria das pessoas e seus respectivos animais de estimação. É um grupo que não pára de aumentar há anos e que ajuda a impulsionar um mercado que cresce em ritmo chinês. A razão que leva as pessoas a comprar bichos e uma gama cada vez maior de acessórios e brinquedos é a mesma: afetiva.
Essa razão se revela de forma cristalina: o interesse pela posse de um animal de estimação aumenta à medida que diminui o número de pessoas em uma família e que seus membros se tornam idosos. Os casais com menos filhos registram, segundo Denise, o maior número de mascotes. No caso dos idosos, cães e gatos se tornam a principal companhia após começarem a morar sozinhos.
Arca de Noé
A trilha aberta pelos cachorros foi explorada pelo homem para domesticar um número, ainda hoje, crescente de animais. A domesticação é tão intrínseca ao ser humano que ela se deu em diversas partes do globo ao mesmo tempo, com os tipos mais bizarros de animais, nota o geógrafo Jared Diamond em seu livro Armas, Germes e Aço.
Começaram a fazer parte dessa grande família aves, peixes, répteis e até insetos, para não falar de outros mamíferos. Infelizmente, a inclusão de outros animais não foi tão benéfica para os homens, pois a maioria deles não é tão afetiva quanto cachorros e gatos.
Em muitos casos, os animais são retirados da fauna silvestre, causando desequilíbrio no ambiente de origem e, muitas vezes, no de destino. A introdução de espécies exóticas é uma razão importante de problemas ecológicos em diversas regiões do mundo.
O Brasil não é exceção nem como origem nem como destino. Um relatório da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) mostra espécies nativas brasileiras valorizadas no mercado internacional: o preço de um lagarto teiú, bastante comum em algumas regiões do País, varia de US$ 500 a US$ 3 mil no mercado internacional, enquanto uma arara-vermelha pode valer até US$ 3 mil e um sagüi-dacara- branca, US$ 5 mil.
Entre as espécies introduzidas que causam danos estão o tigre-d’água-americano (um tipo de tartaruga), o peixe-beta e o rato doméstico, segundo um levantamento do Instituto Hórus sobre o assunto. Cães e gatos também compõem a lista.
Segundo o médico veterinário Rodrigo Silva Pinto Jorge, as doenças de bichos de estimação estão entre as principais ameaças aos animais silvestres, a exemplo do que aconteceu com seres humanos de diferentes civilizações ao longo da história, como ilustra Diamond em seu livro. Algumas doenças tiveram origem em animais domesticados pelo homem, como a tuberculose (no gado), a gripe (em porcos e patos) e a malária (em aves).
Jorge estuda o impacto das patologias animais, especialmente a cinomose, em uma reserva privada no Pantanal. Doença viral de origem canina que ataca os sistemas nervoso central, gastrointestinal e respiratório, a cinomose é transmitida pelo ar e freqüentemente é fatal. Das amostras que o pesquisador coletou em mamíferos selvagens, 15% estavam infectadas pela doença, que atinge 60% dos cães domésticos das comunidades vizinhas à área de preservação.
Os riscos de contaminação não estão restritos ao Brasil, afirma Jorge, que também é pesquisador do Centro de Pesquisa para Conservação dos Predadores Naturais (Cenap), do Ibama. Na África, na década de 1990, cerca de um terço dos leões da planície do Parque Nacional Serengeti, na Tanzânia, morreu em decorrência da cinomose.
Nos Estados Unidos, a doença matou metade dos últimos 30 furões-de-patas-negras, um primo da ariranha, conhecidos na natureza e forçou o recolhimento dos remanescentes ao cativeiro. Até prova em contrário, uma doença de animais domesticados foi o tiro de misericórdia para a sobrevivência em ambiente natural do furãode- patas-negras.
Em geral, medidas voltadas aos animais domésticos como vacinação, isolamento dos doentes e controle populacional dariam conta de evitar a transmissão para os animais selvagens. Mas a pressão humana constante sobre as áreas naturais remanescentes e o crescimento da população de animais domésticos dificulta o controle. O paradoxo que fica é que, se ao longo dos séculos o homem acabou por trazer um pouco da natureza para dentro de casa, domesticando-a, agora tem de mantê-la longe da natureza.
Xampu de gente grande
Embora não existam estatísticas precisas do número de animais de estimação no País, é possível ter idéia da dinâmica desse mercado pela movimentação de produtos destinados a eles. Basta entrar em uma “pet shop”.
A gama de produtos à venda é surpreendente. Nas maiores casas do ramo, como o Pet Center Marginal, em São Paulo, encontram-se mais de 20 mil itens, incluindo refrigerantes, bijuterias e carrinhos para passear. Os itens mais vendidos ainda são os “básicos”: rações e acessórios.
Totós, bichanos e piupius modernos contam com uma ampla gama de serviços à disposição. Chips de monitoramento, estúdio fotográfico e acompanhamento psicológico estão entre os mais recentes. Mesmo o tradicional banho-e-tosa ganhou um certo glamour. Alisamento de pelos e xampus especiais – com ingredientes muito similares aos usados em humanos – são a regra.
O mercado cresce como poucos – em torno de 20% ao ano no Brasil – e é cada vez mais comum encontrar pessoas com seus animais de estimação em lugares outrora improváveis, como bares, shopping centers, hotéis e aeroportos.
O número de itens à venda é tão grande que novidades são poucas, explica o analista de marketing do Pet Center Marginal, Anderson Camargo Lopes. A indústria é movida pelas coleções de roupas conforme a estação do ano e melhorias pontuais nos produtos, muitas vezes sugeridas pelos humanos. Entre as novidades prestes a chegar ao mercado está uma escova progressiva com creme de tratamento à base de chocolate para o pelo dos caninos.
As lojas também servem como alternativa de entretenimento para os proprietários de mascotes, explica Lopes. Na Pet Center, que funciona 24 horas, cerca de 80% dos clientes chegam acompanhados dos bichos de estimação – que podem, então, aliviar o estresse com um relaxante banho de ofurô no Pet Zen. Depois da terapia, o animal sai com outra disposição para abanar o rabo.
Demanda para serviços tão específicos não é problema: a loja recebe até 30 mil pessoas por semana, segundo Anderson, metade nos fins de semana.
No setor de alimentação, contam-se às dezenas as marcas de rações para cães e gatos. Nacionais e importadas, prometem em embalagens multicoloridas ossos e dentes mais fortes e pelos mais bonitos, além de uma vida mais saudável e cheia de energia, tudo graças a uma receita balanceada. Os analfabetos quadrúpedes, de barriga cheia, agradecem.
Em 2005, os fabricantes nacionais venderam 1,55 milhão de toneladas de comida industrializada para cães e gatos, gerando US$ 1,84 bilhão, segundo dados da Associação Nacional dos Fabricantes de Alimentos para Animais de Estimação (AnfalPet). A alimentação representa cerca de metade do faturamento do setor no Brasil, segundo as estimativas disponíveis.
Mais uma vez, o País não é exceção. O mercado “pet” cresce praticamente em todo o mundo, inclusive em locais onde a posse de bichos de estimação já foi rigidamente controlada como a China. Lá, os ávidos donos desafiavam o rigor da doutrina do Partido Comunista para poder conviver com um bichano. Nos Estados Unidos, nem se fala – gastam-se mais de US$ 38 bilhões por ano com produtos para as mascotes.
Como se vê, há vontade de sobra por parte dos humanos para manter a parceria por muito tempo, mesmo que do lado animal os bichos se pareçam cada vez menos com seus antepassados. Apesar de problemas como os de saúde animal, os homens não parecem dispostos a parar de abanar o rabo sempre que virem um cachorro cheiroso e bem vestido. Talvez por mais 12 mil anos, se os humanos conseguirem chegar lá.