A chegada da eletricidade a lugarejos do noroeste mineiro evidencia ameças, trasnformações e esperanças na fronteira entre a tradição e a modernidade
Por Flavio Lobo
Às três horas da tarde da sexta-feira 16 de março, uma pequena carroça puxada por uma parelha de bois estaciona em frente à casa de “seu” Joaquim Gomes. “A geladeira chegou!”, anunciam. Enquanto quatro homens suam para levar o eletrodoméstico para dentro da casa, dona Rosa, mulher de Joaquim, resume sua principal expectativa em relação ao novo utensílio: “Ah, agora a gente vai ter água gelada!”
Estamos dentro de um cânion atravessado por veredas, no extremo noroeste de Minas Gerais, perto das divisas com Goiás e Bahia, em um município com o curioso nome de Chapada Gaúcha. Cerca de cem metros abaixo do nível do solo em que se assenta a cidade, vivem 70 famílias, distribuídas por uma área de 30 mil hectares, em três comunidades: Vão do Buraco, Buraquinhos e Barro Vermelho. A área é de difícil acesso, mas aqui não faltam água e terra propícia a pequenas roças, suficientes para a população local.
Vão do Buraco, onde vive a família de seu Joaquim, é a localidade mais conhecida. Foi descrita por João Guimarães Rosa no Grande Sertão: Veredas como lugar situado “diante da contravertência do Preto e do Pardo” (referência a dois rios da região), onde “se forma calor de morte” e cuja gente “rói rampa”. Riobaldo, o protagonista-narrador do romance, preferiu não descer para o Vão, por receio de doenças que infestariam o local.
Mas, no ano passado, exatos 50 anos depois do lançamento do romance, quem desceu as rampas do cânion foi a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), com o incentivo federal do programa Luz para Todos. “O pessoal dizia que iam fazer, mas a gente duvidava. Vão nada!”, conta seu Joaquim, que passou a maior parte da vida trabalhando como boiadeiro e hoje está aposentado.
“A obra não foi fácil”, lembra Paulo, filho de seu Joaquim e dona Rosa. “Só se chega aqui a pé, a cavalo, de carroça e, quando não chove, de carro ‘traçado’ (com tração nas quatro rodas).” Mas os postos e fios chegaram e a primeira lâmpada se acendeu, na Escola Municipal São João, em frente à casa de seu Joaquim, em 4 de maio de 2006.
Em forma de luz, a modernidade chegou definitivamente a um dos mais recônditos, e até então preservados, lugarejos de um sertão descrito como entidade infinita e mítica em uma das maiores obras da literatura nacional. Mais uma situação fronteiriça numa região que sintetiza alguns dos mais importantes encontros, contrastes e conflitos do Brasil contemporâneo.
Fronteiras que se revelam ao viajante na visão de uma cerca de madeira e arame. A separar, de um lado, o Cerrado protegido no interior de um parque nacional de 230 mil hectares, com suas mais de 600 espécies vegetais já descritas mais outras centenas de tipos de animais, e, do outro, um oceano de capim que se estende pela planície até onde o olhar alcança. Ou, de forma não menos desconcertante, em uma festa anual, chamada de Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas. Evento que oferece espetáculos inusitados. Como pequenos grupos das comunidades da região apresentando ritmos, danças e cantos tradicionais — catira, lundum, tamanduá, sobe-no-pau, cacete…— sobre um palco de proporções metropolitanas, cujo telão exibe clipes de duplas caipiras paulistas e do Calypso paraense. Isso quando as caixas de som, dignas de grandes shows de rock, não fazem tremer o chão de terra da praça com a batida impiedosa da música eletrônica.
Eletrônica que agora vai ganhando espaço nas residências dos Buracos na forma de aparelhos de som e televisões conectadas a antenas parabólicas. “Atualmente já existem cinco televisões nos Buracos. Muita gente, principalmente o pessoal mais novo, vai assistir na casa do vizinho”, conta Paulo.
Sansão sertanejo
“Eu sou mais do rádio”, diz dona Rosa, explicando por que não faz questão de TV. “Televisão é uma coisa muito barulhenta”, completa Seu Joaquim, depois do jantar, enquanto enrola um cigarro na palha do milho do quintal preparando-se para contar histórias do justiceiro Antônio Dó e outras figuras lendárias da região. Sobre a cabeça de seu Joaquim, nos troncos de madeira apoiados nas paredes de taipa, que sustentam a cobertura de palha da cozinha, pendem pedaços de carne postos para secar da maneira tradicional.
Enquanto isso, a cerca de 300 metros, Adão e Ana Paula, dois dos oito filhos de Seu Cipriano, irmão de seu Joaquim, reúnem-se, com meia dúzia de vizinhos, diante de uma TV instalada na sala, perto da geladeira, que, além da água gelada, já guarda carne.
“A gente gosta mais das novelas. A que eu prefiro é O Profeta”, conta Ana Paula, de 19 anos, que trabalha e conversa na cozinha com duas vizinhas. Maria Joana, que tem a mesma idade, diz que, ao contrário dos turistas, não acha nada especialmente bonito no Vão do Buraco. “Eu queria morar na cidade. Acho cidade bem mais bonito”, compara. As duas amigas só cursaram até a 5ª série do ensino fundamental, pois, contam elas, não tiveram como se mudar para a cidade de Chapada Gaúcha, uma necessidade para os que querem seguir estudando.
E o Big Brother Brasil, tem boa audiência no Vão do Buraco? “Eu gosto, mas passa tarde, não dá para ver muito”, responde Adão, que deixou de ir à escola depois de completar a 4ª série e trabalha principalmente na lavoura. Mesmo quando resiste à tentação do reality show, sua família passou a dormir mais tarde por causa da televisão, constata o rapaz.
Enquanto na sala de seu Cipriano ouve-se apenas o som da TV, na cozinha de dona Rosa, seu Joaquim relata feitos do personagem que, nas primeiras décadas do século passado, revoltou-se contra os proprietários de terra, políticos e juízes que dominavam a região. Vítima desse conchavo, Antônio Dó, que era fazendeiro, formou um bando e saiu pelo sertão a julgar pendengas e a cuspir chumbo nos poderosos e arrogantes.
“Antônio Dó tinha corpo fechado. As facas quebravam no corpo dele. Dizem que uma vez levou tanto tiro que a roupa pegou fogo, mas nenhuma bala furou ele”, conta seu Joaquim, que tem 63 anos e ouviu vários desses relatos do avô e dos primeiros moradores dos Buracos que conheceram o justiceiro.
Espécie de Sansão sertanejo, Dó só foi vencido por traição de uma mulher a quem confiou o segredo: só ficava vulnerável ao banhar-se no rio pela manhã, despido. Se alguém o atacasse nesse momento a golpes de mão de pilão, poderia matá-lo. A mulher contou isso ao seu amante, um dos capangas do próprio Antônio Dó. Mesmo seguindo as instruções à risca, o jagunço não conseguiu acabar com a vida do chefe. Muito ferido, o próprio Dó deu as instruções finais para que o traidor conseguisse “desfazer a simpatia” e terminasse o serviço.
Depois da morte de Antônio Dó, um de seus jagunços foi se refugiar no Vão do Buraco. Viveu lá até morrer e teve vários filhos, todos “ruins da cabeça”. Um deles, hoje uma velhinha, ainda vive na região. Esse jagunço, que se chamava Miguel Fogoso, também tinha seus feitiços. Quando um grupo de soldados resolvia aparecer por lá na tentativa de dar cabo de um ex-capanga do justiceiro “matador de polícia”, Fogoso virava um porco, saía correndo da casa e sumia no mato.
“É verdade?”, pergunta um hóspede a seu Joaquim. “Tem coisa que pra gente é verdade, mas que é mentira”, explica Paulo, que até então escutava os relatos do pai em silêncio. “Na época das chuvas a gente tem que passar por aqui correndo, agitando pedaços de pau, por causa das muriçocas. As pessoas dizem que elas brotam da lama, mas eu não acredito, não. Acho que é só a época delas mesmo”, diria o mesmo Paulo, na manhã seguinte, durante uma caminhada.
A roça, a fé e o “descapricho”
Ao chegar à casa dos pais, Paulo foi logo explicando que “aqui, banheiro é no mato e banho é no rio”, conta que tem “vista ruim” de nascença por causa de um grave estrabismo. Mas isso, apesar de alguns tropeços pelos caminhos esburacados, não o impede de fazer bicos como guia turístico, muito menos de exercer a vice-presidência da Associação Comunitária dos Buracos, produzir artesanato com folhas e casca de buriti e apresentar o programa “Amado Você”, na rádio Cidade FM, sediada em Chapada Gaúcha, onde ele muitas vezes passa a maior parte da semana.
“O programa tem esse nome porque eu só toco Amado Batista”, explica o rapaz, que também ajuda a família com trabalhos na lavoura e, aos domingos, na falta de um padre, costuma conduzir o culto comunitário, celebrado na escola. “Aqui todo mundo é católico. Tinha um evangélico, mas ele se mudou”, conta Paulo.
Ali todo mundo também é agricultor. Plantam-se feijão, milho, mandioca, abóbora… Todos os quintais têm galinhas e quase sempre algumas cabeças de gado. O principal excedente é a farinha de mandioca, cuja produção antes era feita com tração animal ou com o auxílio de caros motores a diesel. Agora, os motores elétricos são uma opção eficiente e não tão custosa.
Como Ana Paula e Adão, Paulo teve a sua escolaridade interrompida no meio do ensino fundamental. Já seu pai não foi à escola “nem um dia na vida”. “Não aprendi a ler por descapricho de meu pai”, diz seu Joaquim.
Hoje as possibilidades e condições de aprendizado dos alunos dos Buracos melhoraram em alguns aspectos, relatam os moradores. A professora Sílvia Batista conta que, além da luz, outras melhorias têm chegado à escola. “A merenda, que vinha com muito pão, biscoito, essas coisas, agora tem sempre arroz, feijão, carne, verdura e fruta. A prefeitura também passou a providenciar transporte para os alunos que moram longe. Uns vêm de carroça, outros a cavalo.”
Apesar desses avanços importantes, a precariedade das condições de ensino e aprendizado ainda é flagrante. Entre os maiores problemas, Sílvia aponta, além da necessidade de atender estudantes de diferentes idades e séries, a escassez de material didático, de acompanhamento e apoio. “Ninguém veio visitar a escola no ano passado. Acho que fiz um bom trabalho, mas gostaria de ter orientação e auxílio, principalmente para lidar com alguns alunos que têm deficiências mentais.”
A idéia de uma doença específica do lugar, presente na obra roseana, talvez estivesse associada à alta freqüência de deficiências físicas e mentais entre os habitantes. Fenômeno decorrente dos muitos casamentos consangüíneos, devido à pequena população e ao isolamento das comunidades.
A dificuldade de acesso, que resultou em estigmas, propiciou a preservação. Hoje a região do Vão, comparada ao seu entorno, é um oásis ecológico e cultural sertanejo. Além dela, praticamente só as áreas do Parque Nacional Grande Sertão Veredas e do Parque Estadual da Serra das Araras foram poupadas. A maior parte da área do município foi desmatada, principalmente para o plantio de soja e capim braquiária, cujas sementes são vendidas para o plantio de pastagens.
Recentemente, segundo o radialista Anderson Lopes, um grupo de São Paulo desmatou mais uma área de Cerrado com o objetivo de plantar mamona para produção de biodiesel. “Mas a idéia não era produzir biocombustíveis plantando em áreas já desmatadas?”, pergunta o repórter. “Era, mas num lugar onde é fácil matar uma pessoa e ficar livre, imagine derrubar árvore…”
Não que todas as práticas dos pequenos agricultores e pecuaristas da região estejam de acordo com as melhores normas de correção ecológica. Como lembra Ana Cerqueira, que passou cinco meses fazendo pesquisa de campo no Vão do Buraco, as queimadas ainda fazem parte do método mais popular de preparo da roça. “E o aumento da renda das famílias propiciado por aposentadorias rurais e programas como o Bolsa Família —mais do que justos socialmente— pode resultar, por exemplo, no aumento do consumo de plásticos e latas.” Como não há coleta de lixo e os dejetos são jogados em buracos na terra, um acúmulo de resíduo inorgânico pode se tornar um problema.
Ana, que é doutoranda em Antropologia pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, conta que, no início da pesquisa, pensou em centrar-se nas relações de parentesco na comunidade, “já que quase todos são de uma mesma família”. Mas agora está mais inclinada a abordar a percepção da população local acerca de questões ligadas ao meio ambiente, tema muito presente na região atualmente.
A proximidade do parque nacional, a presença marcante do Ibama, de ONGs e de programas de estímulo a atividades produtivas sustentáveis e ao turismo ecológico fazem com que vários líderes comunitários da região assumam o papel cultural e político de mediadores entre as tradições e a inovação.
Gente como José Corrêa Quintal, o Zezo, presidente da Associação Comunitária dos Buracos, diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais Assalariados e dos Agricultores Familiares da Chapada Gaúcha e presidente do Comitê Municipal de Meio Ambiente. “Mas, basicamente, eu sou um agricultor familiar e extrativista”, diz ele.
Além de líder político e comunitário, Zezo faz o papel de mediador entre a cultura sertaneja e as novidades trazidas por entidades ambientalistas. “A gente tenta mostrar para o pessoal que a maneira certa de melhorar a vida, a renda e as oportunidades da população rural é através de uma agricultura orgânica, sustentável, sem agrotóxicos, por exemplo.”
Ao fim da conversa com o repórter, Zezo faz um pedido: “Eu gostaria de aparecer com a minha família. Em geral apareço sozinho, e não acho bom”. Zezo é filho do morador mais velho dos Buracos, seu José “Bandeira” (“apelido que ele ganhou quando era criança”), de 77 anos, e de dona Lucrécia. Casado com dona Dilma, o líder comunitário tem cinco filhos, “sendo que um deles já mora com Deus”.
Mas, para muitos jovens dos Buracos, essas mudanças estimuladas por líderes como Zezo e pelo maior contato com gente de fora estão longe de tornar o cotidiano e as perspectivas do lugar satisfatórias. “Principalmente as moças, que fazem muito trabalho doméstico, tarefas em geral menos lúdicas que as dos homens, em geral querem ir embora de lá. E muitas vão mesmo”, assinala Ana Cerqueira. Moças como Maria Joana, que agora pode constatar toda noite, na TV da casa de Seu Cipriano, como os papéis sociais e as aspirações femininas, sobretudo para mulheres de classe média urbana, se transformaram ao longo das últimas décadas.
Mas o olhar do viajante, como o de Paulo, vê beleza onde a moça só enxerga o que gostaria de deixar para trás. Do alto do cânion, a ênfase redundante do nome “Vão do Buraco” torna-se compreensível. De repente, a monotonia da paisagem, reforçada pela monocultura, abre-se para baixo, numa topografia complexa que também abriga uma grande variedade de flora e fauna. “Aqui tem muito tatu, paca, cutia, raposa, coruja, arara, periquito, gavião, passarinho… Até anta, lobo-guará e suçuarana (onça-parda), que não moram nos buracos, passam por aqui. Ano passado mesmo, muita gente viu uma onça, que depois sumiu”, conta o filho de seu Joaquim.
O túmulo de Antônio Dó, conta Anderson Lopes, fica perto de Serra das Araras, num local cujo valor histórico acaba de ser reconhecido pela prefeitura de Chapada Gaúcha. Mais adiante, a caminho para São Félix, outra comunidade tradicional do município, a 80 quilômetros de distância do Vão do Buraco, um novo exemplo de organização da população local: a cooperativa de bordadeiras de Pequi. A entidade foi criada no ano passado, conta dona Lourdes Barbosa, a presidente.
Os trabalhos, dirigidos principalmente aos turistas que vêm à região atraídos sobretudo pelo parque nacional e pelas festas populares, têm em comum a representação da natureza e de cenas da vida sertaneja. Mas a diversidade dos estilos individuais, evidenciada numa colcha composta por várias bordadeiras, mostra como diferentes sensibilidades estéticas podem se desenvolver mesmo onde a educação formal é escassa e limitada.
Em São Félix, reconhecida como comunidade quilombola em 2006, as 18 famílias locais, juntas, passaram a ter a garantia legal de posse de pouco mais de mil hectares de terra que, diferentemente da situação, ao mesmo tempo mais difícil e privilegiada, dos Buracos, atraíam a cobiça de muitos. Há tempos, fazendeiros locais, empresas e grileiros vinham promovendo desmatamentos em áreas próximas e tentando expulsar os antigos habitantes da região. Agora, relata dona Miguelina, mulher do líder comunitário Zefino, a situação ficou mais tranqüila.
Depois de servir o almoço, composto de arroz, feijão, farinha, carne, quiabo e maxixe, para a família, vizinhos e convidados, dona Amélia Pereira, de 75 anos, mãe de Miguelina, senta-se no seu velho fogão à lenha, encostada na parede externa da casa. Ela conta que se recorda vagamente das histórias que ouvia na infância sobre os tempos da escravidão, mas que se lembra bem de algo que os relatos tinham em comum: “Muito sofrimento”.
Saber das dores e lutas do passado e da dureza do dia-a-dia do povo de São Félix só aumenta a admiração diante da generosa naturalidade com que dona Amélia e sua família recebem os visitantes, sem o menor sinal de deslumbramento nem de desconfiança.
Zefino acaba de voltar de um encontro de representantes de comunidades quilombolas em São Paulo. Foi a primeira viagem dele à maior cidade do País. Neste sábado o genro de dona Amélia está trabalhando, saiu para ajudar o pessoal da Cemig a traçar a rota dos fios e definir os locais para a colocação dos postes que levarão eletricidade para São Félix, que, até o fim de abril, também deverá ter luz, água gelada e Big Brother Brasil.
Em meio às dúvidas, esperanças e temores sobre o futuro de comunidades sertanejas como Vão do Buraco e São Félix, é possível ter uma certeza. O que resta do Cerrado, com seus pequis, buritis e bichos, pode ser mantido isolado e preservado, mas, como diz Disparada, canção de Geraldo Vandré e Théo de Barros, “com gente é diferente”.
O Brasil real, e o outro
Da rodoviária-boteco do sertão ao aeroporto de Viracopos, uma viagem pelos vãos do País
Faz alguns minutos que a noite de sábado virou madrugada de domingo, 18 de abril, quando o ônibus para Brasília chega à Chapada Gaúcha. Levou uma hora a mais que as três horas previstas para percorrer os 200 quilômetros de estrada desde Januária, o ponto de partida. “Até foi rápido”, diz Maria Carneiro, enquanto serve mais uma cerveja aos clientes do Esquinão: rapazes e moças que se esquentam para o forró. A duas quadras, no pavilhão municipal, o principal salão de dança da cidade começa a pegar fogo.
O ônibus, da Empresa Santo Antônio, a ESA, pára para pegar os passageiros da Chapada em frente a outro bar, onde um forró de menor proporção come solto. O cobrador encosta no balcão e pede um trago, enquanto meia dúzia de pessoas entra no ônibus e escolhe suas poltronas. Há três opções: as reclinadas, cujo encosto não se move para cima, as de encosto na vertical, que se recusam a reclinar, e as mais cruéis, de encosto solto, que, na estrada esburacada, assumem a função de instrumentos de tortura.
Passados cinco minutos, o motorista retoma seu posto, o cobrador vira o terceiro copo de destilado, entra no ônibus e acende uma luz tênue, mas suficiente para revelar a decrepitude do veículo, que transporta cerca de 30 passageiros a 45 reais por cabeça. Do teto pendem fios e pedaços de plástico, o chão apresenta surpreendente diversidade mineral e biológica, e não há banheiro.
Depois de sete horas de solavancos, de guinchos, gemidos e tremores, maquinais e humanos, da coreografia trôpega do cobrador, do susto de um passageiro ao sentir algo a lhe subir pelo tórax, e do alívio ao descobrir que se tratava apenas de uma barata, a nau da ESA aporta na Capital Federal.
O táxi pego na rodoferroviária de Brasília — cujas instalações fazem a rodoviária-boteco da Chapada Gaúcha subir no conceito dos viajantes — chega ao Aeroporto Juscelino Kubitschek em menos de meia hora. O contraste parece secular. Amplidão, limpeza, serviços, veludosas vozes bilíngües nos alto-falantes. Modernidade. Gap, flight, Vuitton, gate… Cindacta.
“Devido ao intenso tráfego aéreo, os vôos sofrerão atraso…”, anuncia, como quem informa, um funcionário da GOL. Na sala de embarque, às 12h30, as cadeiras têm dono e espaços no chão são disputados por clientes ávidos por uma soneca. Aos menos relaxados, um funcionário da TAM diz que a cada meia hora haverá uma decolagem, mas a ordem de partida dos vôos é incerta. O seu, prezado cliente, pode ser o próximo ou demorar várias horas. “Não são as empresas que decidem isso. Talvez a Infraero possa informar…” No balcão da Infraero, o atendente assegura que a ordem das partidas é determinada pela Aeronáutica, que, entretanto, não a divulga à sociedade civil. O jeito, portanto, é manter-se em posição de sentido, ouvidos a postos.
“Devido ao intenso tráfego aéreo…” Recebido por risos, vaias e alguns palavrões, o “informe” da Gol ecoa pela enésima vez. Do lado de fora, nas pistas, intensidade zero. Só aviões parados.
“Se temos de esperar, que pelos menos não nos tratem como idiotas, digam a verdade. Os senhores nos devem satisfação”, clama um senhor, tão indignado quanto polido, a um funcionário da Infraero. “Muito bem!”, apóia outro passageiro. Dois ou três saúdam a iniciativa com palmas. Mas a maioria não se entusiasma. Na falta da explicação da Gol sobre os atrasos, repete-se a frase pela longo corredor de embarque: “Não adianta reclamar”.
De repente, pouco depois das 16 horas, as chamadas para embarque assumem um ritmo frenético. Às 17, o senhor que questionou o funcionário da Infraero entrega seu cartão de embarque para o vôo 3875, que lhe custou 229 reais e deveria ter partido às 13h05 para Campinas, ao funcionário da TAM. É informado de que, “devido ao atraso forçado”, o avião seguirá primeiro para Florianópolis. Em vez de às 14h30, como previsto, deverá chegar em Campinas às 21.
Discussão? Exigências de reembolso? Nada. Depois dos “esclarecimentos” da Gol, do silêncio da Infraero, do mistério da Aeronáutica e da decisão da TAM, os passageiros entram, disciplinados, no avião, onde um tour pelo Sul do País, embalado em aveludadas saudações bilíngües, os aguarda.
Apesar do contraste entre o reluzente Airbus e o ônibus maltrapilho, a entrada no avião trouxe à memória a fala de um sertanejo. “Cê vai pegar o jatão pra Brasília?”, indagou o cabra. “Que jatão?”, respondeu o forasteiro. “Aquele que o motorista entra e pergunta: ‘Já tão todo mundo aí, gente?!’”