Seguindo a tradição dos mestres artesãos, Seu Maurício desvenda o segredo da casa ecológica: simplicidade
Por Edilson Cazeloto e Giuliana Capello
Um fazendeiro antigo tinha um funcionário e o funcionário pediu ao patrão para fazer uma casa no terreno dele. O fazendeiro disse: só te dou através de ficar combinado de fazer com esteio de embaúba. O funcionário aceitou, mas, ao preparar a madeira, ele queimou o pé da embaúba. O resultado é que o tempo passou, o fazendeiro ficou velho, morreu e a casa com esteio de embaúba queimada ficou em pé.
Sentado à sombra dos eucaliptos que servirão de matéria-prima em sua próxima obra, o mestre-de-obras Maurício Soares de Oliveira, 52 anos, explica que o “causo” é, na verdade, uma aula. Foi como aprendeu a carbonizar a superfície de madeiras que serão utilizadas em contato com o solo, a fim de impermeabilizá-las sem nenhum tratamento químico. Mesmo uma madeira como a embaúba, imprópria para a construção, mas abundante em quase todo o Brasil, poderia se tornar uma matéria-prima eficiente com essa técnica rústica.
Autodidata, “Seu” Maurício tornou-se um profissional raro e cada vez mais requisitado: ele é um especialista em construções sustentáveis, que usam técnicas e materiais não agressivos ao meio ambiente. Além disso, Seu Maurício é versado em equipamentos para o reúso de água, captação e armazenagem de chuva, energias alternativas e outras tecnologias de baixo impacto ambiental que têm ganhado relevância nestes tempos de aquecimento global. O valor desse tipo de conhecimento está em alta, uma vez que as pesquisas sobre sustentabilidade da construção realizadas nas universidades esbarram na carência de mão-de-obra qualificada.
Unindo saberes ancestrais e técnicas contemporâneas, muitas vezes pesquisadas por centros acadêmicos de alta qualificação, ele é um exemplo vivo da idéia de “sustentabilidade cultural”: o respeito e a valorização das formas tradicionais de produzir e ver o mundo sem incorrer no equívoco histórico de transformar homens e mulheres reais em peças de museu, congelando sua cultura para fins de espetáculo ou para promover o turismo. As culturas tradicionais não são uma curiosidade a ser exibida, mas a demonstração de que o estilo de vida das sociedades industrializadas não é o único possível e, talvez, nem seja o melhor para toda a humanidade.
Foi esse currículo que levou Seu Maurício para o Sítio Mãe-d’Água, em Piracaia, a cerca de 100 quilômetros de São Paulo. A propriedade foi adquirida em 2006 por um grupo de oito pessoas, que pretendem transformá-la em um centro de terapias naturais e em um laboratório para a construção sustentável, além de implantar um projeto de recuperação ambiental intensiva.
Mas, por enquanto, a única novidade na paisagem do Mãe-d’Água é uma série de grandes toras de eucalipto fincadas circularmente no chão, formando uma Stonehenge cabocla na qual se adivinha uma futura casa. Fora isso, uma estrutura de barro debruçada sobre um barranco suave foi construída para servir como defumador para o tratamento de madeiras e bambus. De causo em causo, é ali que Seu Maurício desfia o rosário de suas andanças pelos caminhos da construção sustentável.
Apesar de ter aprendido técnicas mais contemporâneas e estar sempre testando novas possibilidades, ele faz “esse negócio de casa ecológica” do jeito que aprendeu quando ainda era criança: com as mãos no barro e na madeira.
Seriamente, essas partes de madeira eu pratiquei uma série de coisas quando era menino, auxiliando pessoas amigas que tinham dificuldade e não tinham como pagar. Às vezes eu gostava de umas meninas, porque tinha umas meninas lá que ajudavam (nas obras), aí eu ficava entusiasmado. Tem construção de pau-a-pique que eu já fiz há mais de 20 anos e tá perfeita.
Seguindo a tradição dos mestres artesãos, Seu Maurício não faz distinção entre o mundo do trabalho e o mundo da vida. A dimensão produtiva convive plenamente integrada à cultura e à espiritualidade. O viver se confunde como o fazer:
Com carinho, qualquer coisa que eu pegue para fazer está bem. Se você pedir para eu carpinar isso aqui (aponta para um campo de capim braquiária com meio metro de altura), eu vou ficar feliz também. Eu gosto de qualquer coisa que eu faça. Mas prefiro essa parte de construção ecológica, ainda mais quando a gente vê que o sujeito quer uma coisa bem-feitinha, caprichadinha, mesmo que não saia tão rápido quanto uma coisa “mais ou menos”.
Mesmo nas horas livres, Seu Maurício descansa com a mão na enxada. Em Lagoa da Prata, em Minas, cidade em que vive com a mulher (Sou casado há 25 anos… Espera, parece que é 30), ele é conhecido por cultivar terrenos ociosos na vizinhança:
Eu planto no meu lote e peço para o vizinho: “Este lote seu está abandonado, você deixa eu plantar?” Então tem mandioca, batata-doce, essas coisas assim, que tanto serve para mim quanto para as pessoas. O trabalho para mim é uma terapia. Eu vejo às vezes as pessoas falando assim: “Acho que o sol tá muito quente para trabalhar agora…’”e eu digo: “Sabe que eu não tô nem sentindo tão quente assim, não?” Quando estamos bem espiritualmente, tudo está bem.
Mas nem sempre foi assim. Seu Maurício começou na construção civil aos 18 anos de idade, fazendo manutenção e construindo chaminés para uma usina de cana em Minas Gerais. A experiência adquirida permitiu que ele criasse uma pequena empresa de fabricação de blocos e pré-moldados de concreto, que chegou a ter 18 funcionários. Ganhou dinheiro, mas perdeu a ligação com os valores fundamentais de sua cultura.
Sempre tinha uma multa, alguma coisinha. Aí eu fui estressando porque eu não tava bem. Eu tava fanático no dinheiro. Eu achava que a cidade em que eu moro, que tem uns 50 mil habitantes, achava que lá não tava me cabendo mais… Mas eu não tava bem na minha vida, não estava bem espiritualmente e em coisa nenhuma.
A virada veio com um acidente. Acostumado a trabalhar a grande alturas, ele caiu do terceiro degrau de uma escada doméstica. Resultado: dez dias em coma e um processo de transformação interior que pode ser comparado a uma espécie de epifania.
Um pastor me disse: “Esse acidente foi porque você não está indo na igreja”. Eu respondi: “Esse acidente foi uma vitória”. Desse dia em diante, eu passei a ter mais amor em tudo o que eu faço. Eu tinha que ter mais humildade, mais carinho no que faço. Hoje eu sei desfrutar das coisas.
Dentro da lógica
Mas o que é, afinal, uma “casa ecológica”? Seu Maurício começa explicando de um jeito que é pura mineirice: Inicialmente, a gente não pode ter é muita pressa… mas também não pode ser muito devagar. Sem nunca ter estudado as questões da sustentabilidade econômica, ele conhece, na prática, um de seus principais fundamentos — aproveitar a matéria-prima disponível localmente, dispensando transporte e fortalecendo a economia regional:
Uma casa ecológica para mim, principalmente, é quando tudo é colhido no próprio terreno. Igual a baba de cupim (usada como impermeabilizante e aglutinante para construções com barro), quando é colhida no próprio terreno, para usar é uma coisa simples, mas já é uma das coisas boas. Agora, não dá para chegar em casa de material de construção, com aquele preço altíssimo. Cimento, por exemplo, o melhor é não usar nada, mas uns 5%, se você usar, já está dentro da lógica.
Assim, a dimensão ecológica de uma construção não se separa das questões econômicas e culturais. Casa ecológica é casa simples, acessível a todos:
Até as pessoas sem condições de construir, nem que seja uma coisinha mais simples, faz uma casinha para morar. Na maioria das vezes, o sujeito não tem condições de construir. Às vezes ganha um terreno, e não tem coragem de fazer uma casa ecológica, mas porque ainda não conhece, não sabe o que fazer. Mas o sujeito não teria aquela dificuldade de morar embaixo da ponte, não ter onde morar ou ter aquela dificuldade de pagar aluguel.
Apesar disso, já colaborou com projetos grandes e dá o seu tempero em obras projetadas por engenheiros ou arquitetos. Mas os pontos de vista podem divergir entre os conceitos acadêmicos e o conhecimento tradicional:
Uai, o que eu digo é assim: aí vai ter uma solução com o proprietário. Eu vou dizer para ele que o “trem” funciona, que a construção ecológica funciona. Mas, com respeito: o arquiteto e o proprietário tem que estar de acordo. Agora eu quando digo “vou fazer”, eu vou garantir o que vou fazer. Eu procuro tentar convencer pelo que eu conheço e, se ele não concordar, aí vai de acordo com o proprietário. Mas também não vou desistir na primeira vez. Vou desistir da terceira em diante.
A receita final para construir e viver em harmonia com o meio ambiente Seu Maurício não cansa de repetir: Para fazer uma casa ecológica, até o coração tem que ser ecológico.