Por Guilherme Wisnik
O Hotel JS não tem sequer uma pequena marquise, uma proteçãozinha que seja da fornalha lá de fora. Seis da manhã, e o corredor dos quartos se abre sem transição para o sol, para a poeira vermelha em suspensão, o horizonte infi nito que é a própria Avenida Getulio Vargas, feita de terra batida, sem calçada ou meio-fi o, e uma vala funda dividindo as pistas. Ninguém passa a essa hora, mas a poeira não baixa, e entra pela porta aberta. Estamos na Chapada Gaúcha, sertão de Minas, próximo à divisa com Goiás e a Bahia, e Brasília é cada vez mais o espectro da viagem, o ponto inalcançável, a terceira margem. Que país existe entre a Pampulha e o Paranoá? A lagoa e o lago artifi ciais, Kubitschek e Niemeyer duas vezes, do início dos anos 40 ao fi m dos 50.
Belo Horizonte foi nosso marco zero, onde alugamos o carro para devolver só em Alagoas, no mês seguinte. Aqui é o meio, o Planalto Central, coração e periferia do País, onde, por ironia, os carros têm adesivos do Grêmio ou do Internacional, e as pessoas não dispensam a bombacha e o chimarrão. A política rodoviarista criou esses núcleos de povoamento distantes, levando o charque e o churrasco gaúcho para Goiás, Mato Grosso e além.
Alguns colonos, no entanto, pararam no caminho, recebendo incentivos do governo mineiro para ocupar o “liso”, região inóspita que o sertanejo sempre evitou, e chamou de “tabuleirão”, “terra de não se morar”… Colonos que, com sua cultura sedentária e admirável persistência civilizatória, impermeável aos mistérios e azares da vida, cavaram poços profundos e encontraram água, irrigando o “liso”. Hoje, plantam braquiária e vendem sementes de capim para o pasto.
Chapada Gaúcha é uma Brasília “genérica” e pobre. A cidade é nova e espalhada, com lotes mal defi nidos ao longo de uma trama ortogonal que vai se rarefazendo. Dá a impressão de que a Avenida Getulio Vargas, a única da cidade, pode se transformar lentamente na Esplanada dos Ministérios, distante uns 300 quilômetros daqui. Pela porta aberta do corredor do Hotel JS vou olhando, hipnotizado, a luz ofuscante que vem de fora. Esses são os momentos mais felizes de uma viagem: aquela hora em que nada acontece, e os pensamentos ganham independência em relação às coisas.
Zezo virá nos buscar para descermos ao Vão do Buraco, uma depressão de terra no chapadão com água corrente, formando uma vereda. Ontem à noite estivemos com ele na rádio comunitária para anunciar aos pais a visita, pedindo-lhes que preparassem o almoço – sem acesso à luz ou ao telefone, eles ouvem diariamente o noticiário no radinho de pilha, como se fosse uma novela. Disse-nos, depois, que a comunidade é pequena e fechada, e que o casamento comum entre familiares é motivo de muitas doenças mentais.
Liderança do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Zezo não é muito dado a provocações metafísicas, a indagações sobre a existência de Deus ou do Diabo. Mas, enquanto o seu vulto franzino não corta a luz que vem da porta, fi co pensando em quantas pessoas já terão vindo aqui procurá-lo em busca de um encantamento, alguma sugestão sobre a passagem da caravana de Manuelzão com Guimarães Rosa por essas bandas 50 anos atrás, ou sobre a onça e a “doença” que Riobaldo diz existirem ali, desaconselhando a descida. São, no entanto, referências alheias à sua vida, mas que ele terá de aprender um dia se, por acaso, tiver de virar guia turístico.
Terceira natureza
Os personagens do Grande Sertão circulam em território simbólico que parece imóvel, girando em falso numa extensão sem tamanho. Riobaldo narra sua história movido pela esperança de encontrar uma resposta de relance às suas inquietações, pondo em movimento uma linguagem que se cria a si mesma. Exatamente por isso, é algo que não se aprende, não se consegue copiar.
Resta, como opção, trilhar os passos dos personagens roseanos, sair ao encalço de suas andanças, e mapeá-las na medida do possível. Não para reconstituir fatos, ou provar a veracidade da narrativa, mas porque a geografi a é também uma linguagem, esta, sim, passível de apreensão por parte daquele que viaja. A geografi a vista não apenas como paisagem, mas como o encontro de diversas naturezas: geológica, mineral, arquitetônica, botânica, divina, satânica…
Como acontece em Guaicuí, junto ao Rio das Velhas, onde uma gameleira gigante cresceu nas ruínas da igreja, no lugar onde antes fi cava o altar, escorando-se com enormes raízes por cima e por dentro dos blocos de pedra, fundindo-se com eles, e emprestando-lhes sua vida vegetal. A igreja-árvore resultante já é uma outra coisa, uma terceira natureza, porque a construção já não é mais do homem, nem o homem é mais de Deus.
O corredor esquenta, e espero avidamente pela vereda lá de baixo, mesmo sob a ameaça da “doença”. Não teremos a visão do lago artifi cial de Brasília como um desdobramento do sertão – a capital vista por dentro, e não pelo avião. Mas, ao contrário, seguiremos o Rio São Francisco até o mar, onde os índios caetés devoraram o bispo Sardinha, inventando um outro Brasil.
Guilherme Wisnik é arquiteto e ensaísta.