Por Estevão Monti
Riobaldo, narrador de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, optou pelo pacto com o Diabo para vencer o inimigo Hermógenes. Enquanto isso, Juscelino Kubitschek fechou um “pacto de modernidade” com a tecnologia e o capital internacional, mas reduziu a cultura sertaneja a nada. Em seu livro de memórias Por Que Construí Brasília, encontramos: “O único testemunho da passagem do homem por ali era um pardieiro, pretensiosamente denominado Fazenda do Gama”. Na verdade, JK se referia a uma típica propriedade sertaneja.
Já a visão dos sertanejos é menos reducionista. Sobre a nova capital, “seu” Rosa, vaqueiro e guia da Folia de Reis em Buritis (MG), falecido em 2005, afirmava: “Naquela parte do sossego Brasília prejudicou, mas na parte do desenvolvimento ela ajudou”. Trouxe estradas, escolas, hospitais, meios de transporte e comunicação efi cientes, mas também o desassossego da perda de biodiversidade, o iminente colapso dos recursos hídricos e a ocupação desordenada do território.
Desde 2000, estudo as interações entre Brasília e o Sertão roseano, que abrange o Norte de Minas Gerais, o Sudoeste da Bahia, o Sul do Tocantins e o Nordeste de Goiás. Na pesquisa, entrevistei sertanejos da região e seus fi lhos e netos no Distrito Federal, buscando comprovar que a cultura sertaneja resistiu à desconstrução e ao desenraizamento intensifi cado com Brasília.
Conforme estudos arqueológicos, a ocupação iniciou-se há cerca de 11 mil anos e transcorreu até o começo do século XX. Caçadores e coletores tiravam sustento dos campos, cerrados e matas. Os povos Macro- Jê, herdeiros desses traços culturais, receberam os Tupi- Guarani que fugiam dos colonizadores europeus. Seu Rosa contava que, com os bandeirantes, “os índios foram afastando, foram afastando, até que desapareceram”.
O colonizador escravizou africanos para a lavra do ouro. O sertanejo nasce, então, da miscigenação de europeus, índios e negros. Seu Erasmo de Castro, sertanejo de Planaltina (DF), professor, compositor e violeiro, falecido em 2006 – cujo pai foi guia da Missão Cruls, a comissão exploradora do Planalto Central que no século XIX delimitou onde seria o DF –, exemplifi cava com o uso das “terras de cultura”, antes cultivadas pelos Tupis: “As pessoas de toda a região de Planaltina participavam da derrubada das matas para plantar roças de subsistência no ‘vão’ do Maranhão”.
Esgotado o ouro, constitui-se um sistema socioeconômico, cultural e político marcado por fazendas – pecuária extensiva e agricultura de subsistência – e cidades como Formosa (antiga Vila dos Couros) e Planaltina (antiga Mestre D’Armas).
Sua cultura é marcada pela lida com o gado, modo de vida simples e não consumista, observado na organização da família, nas vestimentas, nas festas religiosas, na religiosidade marcante e na alimentação com seus pratos típicos: a paçoca, o quibebe, o pão de queijo.
Expert de sua realidade
Brasília intensifi cou a acumulação primitiva, arrancando o trabalhador de seus meios de produção. Isso o
Desenraizou, processo agravado pela globalização. Para o economista marroquino Hassan Zaoual, a globalização cria um “impulso planetário” que leva à defi nição de sítios simbólicos de pertencimento. Estes abraçam aspectos culturais, tais como mitos, crenças, experiências, memórias, saberes sociais, teorias, modelos, ofícios, ações, história.
A cultura sertaneja resistiu à urbanização mantendo raízes profundas no “sítio simbólico de pertença sertanejo”, organizado a partir da história de vida dos narradores em “caixas”, metaforicamente chamadas de canastras, cada qual com seu conteúdo. Na “canastra dos mitos, memória e trajetória de vida” estão trabalho, não ao hedonismo, honra, coragem, cristianismo e trajetória de vida circular.
Na “canastra conceitual”, estão a família com o marido à frente da subsistência e o gado como força motriz, fonte protéica, de matéria-prima e acumulador de riqueza; escolas que recebiam pessoas de todas as classes sociais, mas em alguns casos excluíam negros e os menos favorecidos. E na “canastra de ferramentas” está o modelo de ação familiar e comunitário.
Fiel à sua cultura e atento ao global, José Corrêa Quintal, o Zezo, sertanejo do Vão do Buraco, na Chapada Gaúcha (MG), líder sindical e um dos fundadores da Cooperativa Regional de Produtores Agrosilviextrativistas Sertão Veredas, defende: “Quando o agricultor vende seu produto individual, não consegue chegar. Além de tirar a subsistência da família, ele precisa um pouco para o comércio”. Ele vai além: “A gente tem buscado informações através de outras cooperativas que exportam produtos. Ninguém consegue viver isolado”.
A narrativa dos sertanejos sustenta a mobilização e a ação social e os tira da condição de bárbaros que não têm domínio do logos, os liberta do “pacto” e de sua modernização predatória. As raízes que sustentam a sua cultura se abastecem do “sítio simbólico de pertença sertanejo”. Tal sítio afl ora em situações propícias como as promovidas pelas cooperativas de pequenos produtores rurais.
O sertanejo é o expert da sua realidade. Políticas públicas e modelos que não consideram seu sítio, justamente por não serem situados, tendem à insustentabilidade.
Estevão Monti é mestre e doutorando pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.