Para quem é feita a ciência e como ela pode alcançar as populações menos favorecidas? Comunidades da fronteira rural nas quais a pesquisa científica é realizada raramente recebem outra coisa a não ser uma “caixinha”, falsas promessas e doces estragados. O pouco que recebem não é oferecido por cientistas, mas por políticos, madeireiros, fazendeiros e a agroindústria.
Na região do Baixo Tocantins, uma moradora da Floresta Amazônica questionou o porquê de os cientistas publicarem principalmente para os privilegiados. Glória Rodrigues Gaia é uma agricultora da floresta que luta por mais do que doces. Sua história levanta questões sobre o processo científico, a responsabilidade deste em relação aos stakeholders locais, e como ele pode gerar impacto para essas comunidades. A fúria de Glória em contra a ciência extrativa, praticada por uma elite, abriu caminho para uma colaboração instrutiva. Ela ajudou a transformar a ciência em resultados práticos para as pessoas comuns.
Nascida em 1953 e criada nas matas próximas à cidade de Cametá, Glória e seus nove irmãos aprenderam a pescar, caçar, extrair borracha e óleo das árvores. A mãe de Glória transmitiu-lhe um profundo conhecimento dos óleos e das plantas medicinais, e lhe mostrou vários medicamentos à base de produtos da floresta, inclusive um carinhosamente apelidado de “xixi de anjo”. “Embora fôssemos pobres, meus pais nos deixaram a rica herança cultural de nossos antepassados”, lembra Glória. Da mãe e da avó ela herdou os conhecimentos para ser parteira e, por necessidade, começou essa prática aos 17 anos.
Depois de se casar, mudar-se para a cidade e ter cinco filhos, no início dos anos 90 Glória sentiu necessidade de retornar à propriedade de sua família para protegê-la da exploração da madeira. Enquanto muitos dos vizinhos tinham pouca ou nenhuma mata, Glória ainda podia retirar frutas, fibras, látex, caça e medicamentos de sua parcela de floresta. Isso ajudou sua família como uma conta no banco. “Não tínhamos que comprar toda a comida ou os remédios; a mata também era nossa fonte de sustento.”
Sem dinheiro e com fome, moradores como Glória em geral ficam em uma posição fraca para negociar com madeireiros, fazendeiros e a agroindústria. Depois de salvar sua porção de floresta, Glória comprometeu-se a ajudar outros moradores a negociar acordos melhores para suas matas. Em 1993, ela soube de uma pesquisa que vinha sendo feita na fronteira madeireira ao longo do Rio Capim, onde nossa pequena equipe de cientistas tentava ajudar os moradores a responder à pergunta: “O que tem mais valor, as árvores vendidas como madeira ou a caça, as fibras e os frutos que extraímos da floresta?”
A resposta não é simples. Nas fronteiras, a baixa densidade de espécies com potencial econômico, a produção inconsistente de frutos, a população declinante de animais para caça e a crescente intensidade na extração de madeira e na ocorrência de incêndios contribuem para tornar as florestas complexas e vulneráveis. Apesar de lamentar os recursos mais escassos e as distâncias maiores até as árvores frutíferas e as fontes de fibras, os líderes das comunidades continuavam a assinar contratos para exploração de madeira.
O interesse de Glória em nosso trabalho ajudou a equipe a solucionar um dilemma ético. Como poderíamos conduzir pesquisas que não oferecessem soluções imediatas para acabar com a perda de frutos, caça e medicamentos? Como garantir que a rápida destruição que testemunhávamos servisse de alerta e fosse evitada por outras comunidades? Ao responder à demanda de Glória para que compartilhássemos os resultados da pesquisa, acabamos criando uma exibição itinerante. Um caçador da região do Capim, um pesquisador e eu colocamos na mochila os materiais para um workshop, pôsteres e redes de dormir. Viajamos com Glória de barco, por estradas barrentas de arrasto e a pé até uma vila na melhor região madeireira do Baixo Tocantins.
Glória não gostava de cientistas, especialmente estrangeiros, aqueles que só exploram os conhecimentos tradicionais, culturais e não devolvem nada à comunidade. Ela os vê como vê os fazendeiros e madeireiros: pessoas cheias de pompa, ricas, que desenvolvem uma atividade extrativa e deixam pouco atrás de si. Ela nos tolerava porque tínhamos dados – dados que poderiam, talvez, ajudar os moradores das fronteiras madeireiras.
Quais eram os dados mais reveladores para os moradores? Nossos resultados demonstraram que, depois de vários episódios de extração de madeira, o consumo médio, por família, de alguns frutos cai de 72 unidades por ano para 14 – uma redução de 80%. Uma árvore que produz 300 frutos por ano, com um potencial de receita de R$ 60, era comumente vendida por R$ 2. Os moradores se admiravam ao saber que sete caçadores em uma vila obtiveram 232 quilos de carne ao caçar debaixo dos piquiás (Caryocar villosum), árvore também vendida aos madeireiros por R$ 2.
Sem saber do valor de mercado de suas florestas e passando necessidade, os moradores vendem a madeira por pouco retorno econômico. Na região do Tocantins, comprovamos que a situação do Capim se repetia em outros cenários de fronteira. Como no Capim, a renda invisível de frutos, caça e fibras é substancial, mas o dinheiro vivo oferecido pelos madeireiros seduz os líderes locais para, repetidamente, vender a madeira.
Os moradores absorveram os dados e começaram a contar suas próprias histórias de ganhos e perdas, dando força uns aos outros. Jurandir e Curumi contaram casos de perda. Mangueira lembrou à comunidade que ele disse “não” ao madeireiro; que sua família era saudável durante a estação de frutos, e que ele ainda podia coletar o cipó-titica para construção e o leite-de-amapá para medicação. Quando nos preparávamos para sair, os moradores nos agradeceram e continuaram as discussões sobre como conservar o que resta de suas florestas.
Livros e homens
Começamos a caminhar depois do pôr do sol. Passamos por serrarias itinerantes, operações quase domésticas, ágeis e eficientes em atingir regiões remotas. Elas chegaram ali antes de nós e chegariam antes a todos os lugares. A floresta continuaria a cair e, algumas vezes, isso ocorreria por falta de conhecimento de um morador sobre o seu valor. À medida que caminhávamos e a noite caía, uma idéia começou a se formar: a necessidade de uma ferramenta portátil para tornar as comunidades mais poderosas, um workshop itinerante sobre papel, um livro para os quase-alfabetizados.
A ciência precisa ser rigorosa. Fazendeiros e caçadores sobrevivem das espécies que nós meramente estudamos. Entretanto, Glória nos havia ensinado que números não seriam suficientes. Eles poderiam nos dar uma base técnica, mas não inspirariam negociações mais respeitosas, eqüidade ou conservação. Nas vilas, as florestas significam não só ecologia e economia, mas também música, história, cultura e cura.
Por isso, o livro deveria ser escrito não só por autoridades em Amazônia, mas também por fazendeiros que praticam o corte-equeima, caçadores e parteiras. Acrescentamos contos sobre a madeira e a cultura e lendas da floresta, receitas de sabão e de bolos, informações sobre como processar óleos, e dicas para plantar árvores frutíferas.
Glória ajudou a escolher um tamanho de letra maior para o livro, a inserir várias figuras em cada página, e a manter o formato simples. Quando a obra foi impressa pela primeira vez, em 1998, já começava a atrair novos leitores: professores, donas de casa da cidade, fazendeiros, inclusive gente que nunca entrou numa floresta.
Nos anos que se seguiram à impressão do primeiro livro, chamado Frutíferas da Mata na Vida Amazônica, Glória distribuiu cópias aos moradores que buscavam informação. Ela viajou, muitas vezes sem financiamento ou projeto oficial, nas estradas de arrasto, de canoa e a pé para regiões marcadas pelo conflito, para levar os workshops sobre o valor da floresta. Munida de dados sobre a ecologia, os mercados e o manejo de uma dúzia de árvores e palmeiras amazônicas, ela buscou informar as discussões e catalisar a mudança. Usou o livro para dar poder, através da ciência, e uma voz aos moradores.
No ano 2000, Carlos Vicente e Adalberto Veríssimo, atualmente assessores do Ministério do Meio Ambiente, solicitaram uma versão ampliada do livro original que incluísse espécies do Acre. O novo livro, Frutíferas e Plantas Úteis na Vida Amazônica, inclui a pesquisa de 90 cientistas brasileiros e internacionais, cobrindo 21 espécies.
Ecólogos, economistas e antropólogos, assim como políticos, romperam a tradição, escreveram de forma simples, abraçando as vozes das populações rurais, e colaboraram com a crença de que cartuns e histórias não diminuiriam, mas aumentariam o impacto sobre as pessoas que necessitam das informações.
Treinamento inovador
Esforços inéditos para conservar e manejar espécies valiosas, das quais as populações rurais e urbanas dependem, estão em curso no Brasil – como a iniciativa do Serviço Florestal para desenvolver um treinamento inovador para o manejo comunitário de produtos florestais madeireiros e não madeireiros em toda a Amazônia.
O Conselho Nacional dos Seringueiros, as Casas Familiares Rurais, o Instituto de Florestas Tropicais, o Ibama e o Pronera – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – reforçam a educação e o treinamento florestal ao oferecer informações para as comunidades rurais sobre os diversos valores da floresta. E em especial para as mulheres, que sempre defenderam a floresta e reconhecem a terra como fonte de vida.
Infelizmente, apoio para o trabalho de base como o conduzido por Glória ainda está em falta. Contra madeireiros predadores, uma sociedade machista e cientistas de elite, ela segue lutando para alcançar os moradores da floresta. Se nós queremos que pequenos proprietários e populações tradicionais que manejam um terço da Amazônia brasileira saibam manejar não só a madeira, mas também frutos, a vida selvagem, fibras e resinas, eles vão precisar de informação para poder analisar, de maneira crítica, suas opções.
Patricia Shanley é pesquisadora do Centro Internacional de Pesquisa Florestal (CIFOR).