Um preocupante relatório sobre o maior manancial a serviço da metrópole traz à tona uma crise mais profunda que as represas da região
Por Flavio Lobo
O atual modelo globalizado de civilização trata a atmosfera, o ar, como um depósito de lixo de capacidade ilimitada. Hoje o equívoco, ou a irresponsabilidade, e os efeitos nocivos dessa prática são de conhecimento geral. Mas essas constatações ainda não foram capazes de mudar as atitudes de grande parte da população da maior cidade do País em relação a outro elemento essencial à vida, e extremamente escasso na região: a água.
“O imaginário de abundância de água, que impera em grande parte do País, é completamente falso no caso de São Paulo”, diz Marussia Whately, coordenadora do Programa Mananciais, do Instituto Socioambiental (ISA). O alerta ganha força às vésperas da divulgação de mais um extenso relatório produzido pelo projeto, desta vez sobre o maior dos três grandes sistemas de abastecimento de água que servem a região metropolitana.
O Sistema Cantareira fornece água para metade dos mais de 19 milhões de habitantes da Região Metropolitana de São Paulo. Menos degradado que as represas Billings e Guarapiranga, ele já exige atenção, afirma Marussia. “Num período de quatro anos, houve 30% de aumento da urbanização dentro da área do manancial e mais de 70% do que deveriam ser áreas de preservação permanente estão desmatadas”. Tanto o crescimento populacional perto de nascentes, córregos, rios e represas quanto a ausência de cobertura vegetal prejudicam a qualidade da água.
Se medidas para conter o agravamento da degradação e para reverter pelo menos parte do estrago já feito não começarem a ser tomadas, avalia a pesquisadora, São Paulo poderá perder sua grande fonte de água limpa a baixo preço. “Se a situação do Cantareira ficar parecida com a da Billings e da Guarapiranga, repletas de ocupações e diversos tipos de poluentes, os custos de tratamento da água vão às alturas.” E o preço da água já está em alta acelerada no País. De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a tarifa da água subiu, em média, 209% entre 2000 e 2006, ante uma inflação de 59%. E, na Grande São Paulo, há um novo aumento previsto: dentro do prazo de um ano, os consumidores passarão a pagar pela água que usam, e não mais apenas pela captação, tratamento e distribuição.
Berço esplêndido
O imaginário citado por Marussia, provavelmente associado à mentalidade desenvolvimentista, e freqüentemente predatória, da capital bandeirante, desvia os olhos de duas constatações urgentes. São Paulo é grande demais para a água de que dispõe e precisa cuidar melhor desse recurso.
Num país que tem 12% da água potável do mundo (ou 18%, se somada a que vem de território estrangeiro, mas flui pela Bacia Amazônica), as condições geográficas e históricas determinaram maiores concentrações populacionais em regiões menos irrigadas. A mais gigantesca delas, que atualmente se estende numa “mancha urbana” praticamente contínua, de cerca de 80 quilômetros de leste a oeste por 60 quilômetros de norte a sul (mapa na pág. 35), situa-se numa área de cabeceiras de rios especialmente problemática em matéria de recursos hídricos.
Com o vertiginoso crescimento populacional ao longo do século XX – e ainda em curso – a quantidade média de água disponível por habitante na Bacia do Alto Tietê, onde se localiza a metrópole, é hoje quase seis vezes inferior à de Pernambuco, um dos estados mais secos do País (tabela na pág. 34). Um patamar para lá de crítico, segundo a classificação da ONU. Ainda é preciso lembrar que, como assinala Marussia, 20% da água computada como disponível se perde pelos vazamentos do caminho e outros 20% são roubados.
A população dispara, os mananciais são agredidos, os custos do abastecimento sobem e uma infinidade de torneiras, mangueiras, descargas e congêneres continuam a jorrar desnecessariamente. Não é à toa que períodos de amplos racionamentos de água vão e vêm ao sabor das chuvas e estiagens. Uma situação que obriga o próprio governador recém-empossado José Serra, que certamente preferiria dar boas notícias aos eleitores, a fazer soar o alarme. “Para quase 80% da população de São Paulo o abastecimento de água não está 100% garantido o tempo inteiro”, disse Serra em março, num artigo publicado na Folha de S.Paulo.
Nunca é demais alertar sobre os efeitos do comportamento perdulário, mas a compreensão do problema exige que se enxerguem também alguns fenômenos históricos de larga escala. “As metrópoles brasileiras são jovens. O grande inchaço de concentrações urbanas em países em desenvolvimento é recente. Na década de 70 nos deparamos com problemas em relação aos quais havia poucos precedentes”, lembra Ricardo Araújo, da Secretaria de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo.
Favelização
É desse período a criação do Sistema Cantareira, “uma medida feita sem maiores preocupações com impactos ambientais e sociais, típica do regime militar, que empobreceu a região, tanto que a população local em geral tem ódio de tudo que tem a ver com o sistema”, conta Marussia.
Também a legislação especial para áreas de manancial, baseada em controle e ocupação do solo, data dessa época. “Havia preocupação com o problema, mas sua complexidade superava a capacidade técnica existente, inclusive pela crença exagerada nos poderes do Estado”, analisa Araújo.
O desafio de prever, planejar, executar e controlar as áreas de manancial, o saneamento e o abastecimento de água numa metrópole em crescimento acelerado e desordenado já não seria fácil. Some-se a isso a longa fase de estagnação econômica, desde o início da década de 80, o empobrecimento de grande parte da população e o intenso processo de favelização.
Um barril de pólvora e tanto. Que explodiu no início da década de 90, por exemplo, em forma de algas que afl oraram na Represa do Guarapiranga, a que mais sofre com ocupações irregulares e despejo de esgoto clandestino, como lembra Araújo, que é o autor do livro Mananciais – Região Metropolitana de São Paulo, com lançamento previsto para junho. “Naquele momento, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) não sabia como lidar com a situação. Não tínhamos ainda uma resposta técnica para aquele problema de qualidade da água e a impressão de muita gente era que o único jeito seria investir para trazer água de outras regiões, como o Vale do Ribeira. Hoje, nesse sentido, o quadro é menos grave.”
Duas visões
Araújo ressalta que a capacidade futura de prover água boa e sufi ciente à população da metrópole demanda um processo permanente de avaliação, planejamento, controle e investimentos. Mas diz que atualmente o Sistema Cantareira não sofre agressões ou ameaças muito graves. “Teríamos um problema sério se, por exemplo, o Rodoanel desse acesso à região de Mairiporã, mas hoje não há previsão de que isso aconteça.”
Já o cientista social João Luiz Hoeffel, que estuda os impactos do uso do solo na área há dez anos e atualmente desenvolve projetos de pesquisa nas regiões da Bacia do Jaguari, provedora de dois terços da água do Cantareira, e do reservatório de Atibainha, enxerga um quadro bem mais sombrio. Segundo ele, há uma rápida expansão de atividades turísticas, em pousadas e marinas, que se utilizam das represas como áreas de lazer, inclusive com lanchas e jet-skies.
Além disso, assegura Hoeffel, ocorre um acelerado processo de urbanização, cuja ponta de lança são empreendimentos imobiliários ditos de alto padrão, que “usam o apelo da proximidade da natureza e até, contraditoriamente, o da preservação. Na beira do Atibainha, por exemplo, está sendo erguido irregularmente um condomínio de quatro prédios de quatro andares cada, com 240 apartamentos, chamado Eco Resort”.
“E, na região do sistema que fi ca em Minas Gerais, existe o agravante da industrialização, sobretudo devido ao intenso crescimento do município de Extrema, que hoje se destaca nacionalmente. Quando ouço o pessoal da Sabesp dizer que o Cantareira não corre o risco de se transformar numa nova Guarapiranga fi co ainda mais preocupado”, conta o pesquisador.
Agora e o futuro
Se é verdade que parte do problema do custo, da qualidade e da democratização da água em São Paulo pode ser creditado a fenômenos tão incontroláveis quanto a crise do petróleo e seus efeitos macroeconômicos, outras se devem a causas mais prosaicas. Como a escassez ou ausência de equipes de fi scalização para fazer cumprir as leis de proteção das áreas de mananciais, onde, segundo o ISA, moram atualmente 1,8 milhão de pessoas, quase 10% da população metropolitana.
“Até março, só havia 28 guardas ambientais para fi scalizar as áreas da Billings e da Guarapiranga que fi cam dentro do município de São Paulo, hoje são só 100 e em maio serão 200”, anuncia o secretário do Verde e Meio Ambiente do município de São Paulo, Eduardo Jorge.
Em relação aos ocupantes ilegais, Jorge, Araújo e Marussia concordam que uma parte, situada perto demais das nascentes, córregos, rios e represas, terá de ser desalojada. Uma tarefa “dura, mas necessária”, como diz o secretário.
As ocupações que fi carem precisam ser urbanizadas e receber, sobretudo, saneamento. Mas, ao se melhorar as condições de habitação, não se estimula a vinda de novos ocupantes? “Aí é preciso fi scalizar e impedir”, afi rma Eduardo Jorge. “As pessoas vão perguntar: ‘Por que eles podem e eu não posso?’ Porque agora tem governo.” O secretário cita o recente convênio entre os governos municipal e estadual para a gestão das áreas de manancial e a criação de novos parques no seu interior como outras ações que evidenciam o fortalecimento da atuação do poder público e de sua capacidade de articulação e ação estratégica.
Marussia frisa a importância de mecanismos como o das Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), que estimulam os proprietários a investir na preservação e recuperação de áreas de mata nativa nas margens ou perto dos mananciais.
Araújo cita outra forma de cooperação entre Estado e iniciativa privada, as Parcerias Público-Privadas (PPPs), por meio das quais a Sabesp pretende, sem partir para a exploração da Bacia do Ribeira (“o sonho das empreiteiras”, nas palavras de Eduardo Jorge), reforçar seus sistemas. O plano é lançar mão de três novas áreas de manancial – no Alto Tietê, na região da Billings e dos rios Juquiá e Juquitiba –, que, segundo o coordenador, seriam sufi cientes para atender o crescimento estimado da demanda por água até 2025, quando a população da metrópole poderá alcançar a marca de 23 milhões.
Modelo em crise
Como no caso do aquecimento global e seus riscos, as causas do perigo de falta d’água em São Paulo vão de fenômenos planetários a atitudes individuais. Ambos podem ser vistos como apenas acidentes de percurso, a ser contornados, minorados, remediados ou podem motivar investigações e refl exões mais profundas e abrangentes, capazes de gerar soluções transformadoras.
O problema da qualidade da água necessária à vida civilizada na metrópole, mas que já falta cotidianamente em suas regiões mais pobres e afastadas – inclusive em ocupações irregulares nas áreas de mananciais –, assemelha-se ao da Segurança Pública. O descaso do centro, econômico e político, com as mazelas da periferia dá mostras cada vez mais fl agrantes de sua natureza suicida.
Eduardo Jorge explica uma lógica “que sempre se repete no País” como um círculo vicioso socioambiental. “A população mais pobre não tem acesso à estrutura disponível nas áreas centrais, e ocupa, por falta de opção, áreas afastadas e ecologicamente vulneráveis. Com o tempo, a ocupação vira fato consumado, o Estado acaba urbanizando essas áreas. Urbanizadas, elas se valorizam, fi cam caras para os mais pobres, que vão para ainda mais longe, para regiões ainda mais vulneráveis…”
Por isso, diz o secretário, “defendo, para as pessoas que tiverem de ser retiradas das áreas de manancial, a alternativa de moradias populares no Centro, onde estão os serviços e os empregos, e onde a convivência entre diferentes classes sociais tornaria a sociedade mais democrática”.
Quanto aos atuais habitantes do Centro, que ainda têm água jorrando nas torneiras, uma alternativa é fechá-las sempre que possível, e abrir os olhos, e olhar para os lados, até os limites da metrópole, talvez até mais além. No mundo, um bilhão de pessoas não têm acesso a água potável. E, com os termômetros subindo, a escassez tende a aumentar.