Ao viajar, o paulistano endinheirado leva na bagagem a idéia da sociedade dividida. Um de seus principais destinos no inverno é uma cidade construída sob a lógica puramente econômica, mostra estudo
Deu na coluna social do Cesar Giobbi, lida especialmente nas altas rodas paulistanas: Mais uma história de roubo em Campos do Jordão. Uma leitora escreve para contar que sua família tem casa em Capivari há mais de 50 anos. E que nunca viveu tempos tão inseguros na serra. Exclamativo, o colunista escreve que o carro amanheceu na garagem da casa sem as quatro rodas. E que na delegacia classificaram o fato como rotineiro na cidade. Que só é segura na temporada de inverno, arremata.
Campos do Jordão é uma das mais importantes estâncias turísticas de inverno do País. Mas, ao passar o portal da cidade, “vendida” como Suíça brasileira, é possível ver os morros apinhados de casinhas simples – favelas, sim, que, no entanto, não chegam a prejudicar o fluxo de turistas.
Já uma escorregadela pelas transversais da entrada principal da cidade levaria a vielas esburacadas, ao esgoto correndo a céu aberto e à lembrança de trágicos desmoronamentos nessas encostas, em 1978 e 2000. Entretanto, o turista segue em frente, vê o centro comercial de Abernéssia, as lojas modestas, o bondinho. E, mais adiante, a cidade se modifica, se sofistica. É como transpor uma linha imaginária, mas nítida: em Capivari, o bairro da coluna social abriga casas de meio milhão, de até 6 milhões de dólares.
“Capivari não foi feito para o jordanense”, resume Gleicirrone Lima de Sousa, o Guri, jovem que cursa o primeiro ano do ensino médio em uma escola pública de Campos. Ele e seus colegas acabam de sair da aula. Rodas de amigos se formam na frente da escola. Percebe-se, pelos bonés, óculos, jeans, botas e tênis, que gostam de se vestir com estilo e se espelham nas roupas de grife que o turista – a maioria vem da Região Metropolitana de São Paulo – desfila na cidade durante a temporada de inverno.
Esse turista, entretanto, não enxerga Gleicirrone. “Eles não vêem ninguém, esnobam os pobres. Vêm aqui para se divertir e não estão nem aí para nada”, diz.
Gleicirrone também se queixa do custo de vida. “Aqui é tudo mais caro que lá embaixo (refere-se a cidades como Taubaté e São José dos Campos)”. Isso porque Campos do Jordão foi montada para atender ao padrão do paulistano de classe alta, o que puxa os preços para cima, nos supermercados, nas lojas de roupas e de materiais de construção.
O turista, de fato, pode fazer muito pouco para mudar o quadro socioambiental de Campos. Mas o dinheiro que ele traz pode, sim. Entretanto, o grande volume de recursos injetados na cidade, por meio do lazer, dos eventos culturais e dos encontros de negócios, acaba nas mãos de poucos. Com isso, o município pertence, segundo classificação da Fundação Seade, à categoria de cidade rica, mas com indicadores sociais ruins. Campos do Jordão, por exemplo, tem apenas 47% de sua população urbana atendida pela rede de esgoto. Grande carga poluidora não conta com nenhum tratamento e é despejada in natura no Rio Capivari, aspecto intensificado pelo aumento da população flutuante na alta temporada, de acordo com o Instituto Pinho Bravo.
Tal contradição motivou Cleide Pivott, professora de Planejamento e Organização de Turismo na Universidade do Vale do Paraíba (Univap), a pesquisar a cidade e questionar o turismo como fonte geradora de renda e bem-estar para a população. Nas pesquisas, em que entrevistou 144 visitantes, além de lideranças políticas e empresariais, observou que a cidade obedece a uma lógica puramente econômica, explorando o turismo por meio da segregação de espaços, de forma predatória nos campos social e ambiental. “Em 16 entrevistas com autoridades e lideranças locais, ninguém mencionou o termo ‘turismo sustentável'”, diz Cleide.
A própria história de Campos remonta a essa segregação. Nascida para abrigar o atendimento médico a tuberculosos, a cidade tratou de separar espaços, como medida higiênica. Nos locais “sadios”, formou-se uma vila que atraiu o turismo de alta renda, buscando uma paisagem européia, enquanto os espaços reservados aos doentes, de baixo valor imobiliário, foi o que restou à população pobre – de lá para cá atraída em busca de oportunidades de trabalho no turismo e na construção civil. O mesmo se deu com as frágeis encostas, áreas de proteção ambiental onde as casinhas penduradas representam risco constante. Não por menos a serra em que está Campos ganhou o nome de Mantiqueira, do indígena amanty (chuva) e iquira (dormida), onde precipitam as chuvas de altitude.
Tal segregação planejada fortaleceu o turismo de elite, que pôde desfrutar da paisagem sem a mistura incômoda com as classes populares. A atração desse turista abonado foi incentivada pelas lideranças políticas e empresariais, afirma Cleide. Conta o arquiteto Wilson Eduardo Ferreira, jordanense de berço, que o turismo mais popular, de classe média, foi rejeitado, priorizando-se a construção de hotéis e condomínios de luxo. Também passou a haver limitações à entrada de ônibus de turismo.
Dentro dessa lógica, Cleide observou na pesquisa que, embora os recursos naturais sejam o principal atrativo turístico da cidade – o clima, a paisagem -, houve uma espécie de privatização do espaço. Assim, os espaços para o lazer aberto ao público e acessível a todas as classes, tais como cachoeiras, em torno das quais se construíram restaurantes, trilhas e pontes, hoje se encontram em estado de abandono pelo poder público e não recebem investimento privado.
“É uma cidade onde não tem nada para fazer, em termos de diversão. É para rico mesmo”, diz Jacqueline Aparecida Lopes da Silva, recepcionista de um condomínio de luxo e casada com o barman do Baden Baden – o badalado point da cidade que “ferve” no inverno, repleto de patricinhas e mauricinhos.
“É a cidade-Lego”, define Carlos Henrique Soares Honório, o “Lique”, vendedor de uma loja de roupas de grife a poucos metros do Baden Baden. Segundo ele, na temporada de inverno monta-se todo um aparato para produzir os eventos e receber as pessoas de fora. Depois se desmonta tudo, e o que sobra para a população local é pouco mais que uma cidade-fantasma. Isso vale para a segurança. Não apenas a dona da casa de Capivari pode se queixar. Lique também reclama que, fora da temporada, o jordanense fica desprotegido, “enquanto no inverno há um carro de polícia a cada 100 metros”, diz.
Com baixo investimento do poder público em educação e em formação profissional, o jordanense participa da economia gerada pelo turismo por meio da prestação de serviços mal remunerados, como o de pedreiro e o de faxineira. Diante disso, os promotores de eventos levam profissionais de fora, deixando de movimentar a mão-de-obra local.
Mas o que seria “local” em Campos? Cleide remete a estudos acadêmicos para afirmar que a cidade hoje pode ser classificada como um “não-lugar”, considerando que emprestou a identidade da Suíça; criou um cenário que remete ao interior europeu; derrubou araucárias (espécie nativa) e plantou mudas de plátanos, árvore de origem canadense, cujas mudas foram importadas da Argentina; promove eventos de música erudita e não típica do interior paulista; e montou um comércio com itens e preços voltados a um público de fora. Que cidade é essa?