As obras do evento custaram bilhões a mais do que o previsto e não se integram a um projeto urbanístico consistente
Por Marcelo Barreto
Um mergulho nas águas limpas da Baía de Guanabara, seguido de um passeio à beira da também despoluída Lagoa Rodrigo de Freitas e de uma bela refeição no pólo gastronômico da Barra da Tijuca, fechando com o descanso num dos novíssimos hotéis da região. Tudo, claro, de metrô e com muita segurança. Poderia ser esse o programa de um dos muitos turistas a chegar ao Rio depois dos Jogos Pan-Americanos de 2007. Mas, às vésperas da realização do evento, esse cenário já é tão improvável quanto superar os Estados Unidos e Cuba no quadro de medalhas.
“A transformação urbanística de Barcelona, a revolução ambiental de Sydney ou mesmo os ganhos de infra-estrutura de Atenas não terão aqui nenhum paralelo, mesmo na reduzida escala de um evento bem mais modesto do que as Olimpíadas”, escreveu o ambientalista Alfredo Sirkis em seu sítio na internet. “Perdemos um bom ‘gancho’ para promover o saneamento ambiental do sistema lagunar da baixada de Jacarepaguá, para implantar soluções de transporte de massa (ampliação do metrô, VLT e corredores expressos de ônibus) e alternativas (transporte hidroviário e significativa ampliação das ciclovias). Perdemos a oportunidade de fazer do Rio uma vitrine de energias renováveis, reciclagem e soluções criativas. O fracasso é de todos nós: das três esferas de governo, da sociedade nacional, da local.”
O arquiteto e urbanista André Alvarenga, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ), concorda com Sirkis. Segundo ele, na questão urbanística o Rio não sairá vitorioso do Pan: “A candidatura do Rio não cumpriu o que foi prometido à população, principalmente no que diz respeito ao transporte urbano. Hoje, poderíamos ter a expansão do metrô e o ônibus articulado ligando o subúrbio à região da Barra da Tijuca, por exemplo. Isso aumentaria muito as chances da cidade numa eventual candidatura olímpica”.
Sirkis e Alvarenga tocam num ponto crucial de candidaturas a grandes eventos esportivos, que os consultores internacionais passaram a chamar de “efeito Barcelona”: por causa da revolução urbana vivida pela capital da Catalunha depois das Olimpíadas de 1992, muita gente passou a acreditar que o simples fato de receber os Jogos é suficiente para mudar uma cidade. Essa visão ignora o fato de que Barcelona investiu US$ 6,6 bilhões num projeto urbanístico que começou a ser desenvolvido nos anos 80 e ainda não parou, e do qual os Jogos foram apenas uma parte (a maior obra não foi um estádio nem a Vila Olímpica que revigorou a área do porto, mas o anel viário, que melhorou o fluxo de veículos em 20%).
“O impacto dos Jogos na hotelaria, por exemplo, só começou a ser sentido dois anos depois. Se o projeto fosse apenas olímpico, teria fracassado”, atesta o jornalista esportivo Marcus Vinicius Pinto, que morou em Barcelona.
Para André Alvarenga, o projeto que São Paulo apresentou para receber o Pan se aproximava muito mais do que foi feito na cidade catalã: “Barcelona se reinventou em 92. O projeto da candidatura paulista ao Pan, de autoria do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, previa uma transformação de São Paulo, com a reforma do setor viário e a recuperação de áreas degradadas da cidade”.
Se o Comitê Olímpico Internacional faz exigências de estrutura urbana às cidades candidatas, a regra não se aplica à Organização Desportiva Pan-Americana (Odepa), de cujo caderno de encargos consta apenas a exigência de instalações esportivas. Nessa área, o Rio sairá ganhando, com obras como o Estádio Olímpico João Havelange (já apelidado de “Engenhão”) e novas arenas para esportes aquáticos, ciclismo de pista, tiro esportivo, hóquei sobre grama, hipismo…
Carlos Roberto Osório, secretário-geral do CO-Rio, o Comitê Organizador do Pan, diz que algumas dessas obras extrapolarão o âmbito esportivo: “O exemplo mais claro é a Vila Pan-Americana”, diz Osório, referindo-se ao conjunto de 17 prédios e 1.480 apartamentos destinado a abrigar 8 mil atletas, árbitros e dirigentes durante o Pan. “A Vila foi construída numa área fronteiriça da expansão urbana do Rio, entre a Barra da Tijuca e Jacarepaguá, com conceitos modernos de métodos construtivos, área verde, utilização da água da chuva, ventilação e luminosidade. E ainda provocou a criação da Estação de Tratamento do Canal do Arroio Fundo, que vai tratar o equivalente a um Maracanãzinho de esgoto a cada três dias”.
Para André Alvarenga, no entanto, a Vila traz poucas novidades em termos arquitetônicos: “Estamos longe do que está sendo feito em Pequim. Para construir os estádios e a vila olímpica dos Jogos de 2008, foram contratados alguns dos maiores arquitetos do mundo, que criaram obras inovadoras, tanto na forma quanto no método. A Vila Pan-Americana do Rio foi construída dentro dos padrões já existentes de arquitetura e engenharia. E ainda tem um gabarito muito alto, que fez com que se perdesse a visão da Pedra da Panela, um marco geográfico local. Na verdade, o grande privilegiado foi o mercado imobiliário, que conseguiu vender quase todos os apartamentos no dia do lançamento”.
Carlos Roberto Osório aponta outros possíveis legados do Pan. Ele diz até mesmo que algumas das obras de instalações esportivas terão efeito em outras áreas após o Pan: “A recuperação do Riocentro devolve o local à sua vocação, que é a do Rio: o turismo e as convenções. No autódromo, uma área que até hoje era ociosa, teremos uma arena multiúso, que não se restringirá aos esportes. A reforma do Estádio de Remo da Lagoa resolveu um imbróglio de dez anos, e para a instalação da raia foram feitas obras de dragagem”.
Mas André Alvarenga contesta esse conceito de ociosidade: “As obras no autódromo foram feitas sem consulta à comunidade local ou aos que usavam o equipamento. O mesmo aconteceu com a reforma que estava projetada para a Marina da Glória”.
André se refere a uma das únicas obras que a organização do Pan não vai conseguir concluir. O projeto para o local, que abrigará as competições de iatismo, não foi aprovado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), porque o gabarito bloquearia a vista da Baía de Guanabara, um dos cartões-postais da cidade. O Estádio de Remo da Lagoa chegou a sofrer veto semelhante, mas a Justiça permitiu a continuação das obras. Na Marina, não houve jeito: Robert Scheidt e outros iatistas brasileiros competirão diante de instalações provisórias.
As opiniões do secretário-geral do CO-Rio e do professor da FAU-UFRJ convergem apenas no que diz respeito ao Estádio Olímpico João Havelange, o Engenhão.”O estádio foi construído num local escolhido pelo prefeito do Rio, Cesar Maia, justamente porque era uma região em declínio. A construção de um equipamento esportivo dessa natureza sempre valoriza as áreas vizinhas”, diz Carlos Roberto Osório.
“A presença do Engenhão deve valorizar os terrenos adjacentes, numa área importante da cidade, conhecida como Grande Méier”, concorda André Alvarenga.
Mas o Engenhão é alvo de críticas, por causa do grande aumento no preço das obras. A primeira previsão, publicada no dia 15 de janeiro de 2003 no Diário Oficial do município, era de que o estádio ficaria pronto até o fim do ano seguinte, ao custo de R$ 60 milhões. Hoje, o site da prefeitura já fala em gastos de R$ 320 milhões na obra que está praticamente pronta.
Estouros orçamentários como esse – que, de acordo com cálculos ainda em aberto, alçariam os custos do Pan à casa dos R$ 3 bilhões, cinco vezes mais que o inicialmente previsto – fizeram com que a Câmara de Vereadores do Rio sugerisse a criação de uma CPI.