Diante da onda de escândalos a nutrir o noticiário, multiplicam-se propostas de combate à corrupção. Mas, contraditoriamente, segundo a cientista política Argelina Cheibub Figueiredo, a sanha moralizadora pode tornar instituições como o Congresso Nacional menos transparentes e representativas. Ao olhar além da superfície dos acontecimentos, Argelina, que é ph.D. em Ciência Política pela Universidade de Chicago, professora do Iuperj e pesquisadora do Cebrap, identifica o risco de retrocessos elitistas ao mesmo tempo que descreve avanços graduais, mas consistentes, da democracia brasileira.
Por Flavio Lobo
PÁGINA 22: A atual onda de escândalos é positiva ou apenas o efeito de um aumento da corrupção?
Argelina Figueiredo: É positiva, se for vista como um primeiro passo. Sem o escândalo, sem que a corrupção se torne pública, fica muito mais difícil combater. Não acho que escândalos de corrupção tenham a ver necessariamente com aumento da corrupção. Pensando na nossa história recente, tivemos, nos anos 60, um grande conflito político que acabou gerando o golpe de 64. Foi uma época de ascensão de movimentos sociais, imprensa livre, estávamos no auge da democratização do País.
Ao contrário de hoje, quando temos partidos em crise, os partidos se consolidavam, inclusive nas suas bases sociais. Esse processo foi interrompido pelo golpe, justificado por seus executores e defensores, inclusive como uma forma de combater a corrupção. Que naquele momento, dizia-se, havia níveis de corrupção como nunca se tinha visto. No poder, os militares cassaram muita gente alegando não só razões ideológicas, mas por causa de corrupção. No entanto, nada indica que houve de fato uma grande redução da corrupção no período militar. A corrupção passou a ser controlada por um grupo coeso, e que, além de tudo, tinha o controle dos meios de comunicação.
22: Parte da imprensa que, num primeiro momento, apoiou o golpe chegou a fazer uma certa autocrítica quanto a isso, não?
AF: Um dos jornais que mais denunciavam corrupção no governo de João Goulart era O Estado de S. Paulo. Em 1983, durante o governo Figueiredo, quando estávamos em pleno período de abertura política, o Estadão fez um editorial em que dizia que, perto da corrupção existente nos governos militares, o governo João Goulart teria “zero” de corrupção. O título do editorial era “Mea-culpa”.
Hoje estamos num processo que pede democratização máxima, abertura máxima, liberdade total dos meios de comunicação, da Polícia Federal, que de uns tempos para cá passou a agir de forma completamente independente, como deve agir uma polícia federal. Com esse processo de democratização, apesar de todas as suas mazelas, o Judiciário também tem cumprido um papel importante. Na verdade, há vários fatores contribuindo para esse aumento da exposição da corrupção. Não creio que a corrupção hoje seja maior que há dez anos, mas está mais visível.
22: Há parâmetros confiáveis para medir níveis de corrupção?
AF: Nunca haverá parâmetros precisos para a corrupção, nem nos países desenvolvidos. Podemos, ao comparar um país com ele próprio, perceber fases em que há mais ou menos denúncias, escândalos, punições. Mas isso não significa, necessariamente, que os períodos em que a corrupção fica mais evidente que ela seja maior. Pode ser um movimento positivo de mais transparência e menor tolerância com a corrupção. Pode também ser um sintoma da alternância e da menor coesão entre as elites políticas. Dei esse exemplo do João Goulart, e acho que podemos traçar esse paralelo, porque na verdade estamos em meio a uma mudança da elite política do Brasil.
22: O recente festival midiático protagonizado pelas CPIs do Congresso foi um sintoma desse novo arranjo, ou desarranjo, entre as elites?
AF: De uma certa maneira. O que acontece é que o Fernando Henrique teve uma oposição, o PT, que era muito radical, mas também muito minoritária. E que não tinha o acesso que PSDB e PFL têm, por exemplo, aos meios de comunicação. A tranqüilidade política do período Fernando Henrique foi muito grande, e o controle sobre as CPIs era enorme. O Fernando Henrique teve um governo de maioria funcionando muito bem. Com o PT, houve uma alternância de poder, apesar de não ter tido uma correspondente alternância de políticas. Em termos de controle da máquina pública e do controle de alguns mecanismos da própria corrupção houve um embaralhamento. Theodore Lowi, um cientista político americano, diz que corrupção tem a ver com conflito entre as elites. Escândalos nem sempre têm a ver com aumento de corrupção. Eles também podem indicar um momento de menor coesão dos poderosos.
22: E quanto ao combate à corrupção? O atual momento teria a ver também com um avanço das instituições e mecanismos responsáveis por ele?
AF: Acho que sim. Posso dar exemplos. No governo Fernando Henrique foi criada a Controladoria-Geral da União (CGU), que no início funcionou pouco, mas vem se tornando mais atuante, fiscalizando os municípios para os quais o governo federal repassa dinheiro do Orçamento. Outra coisa que foi criada no atual governo, mas que já é um processo que estava se iniciando dentro do Judiciário, foi o Conselho Nacional de Justiça. É a partir da instituição do conselho que vão sendo revelados os problemas internos do Judiciário. Não é um conselho de magistratura, e sim um órgão externo ao Judiciário.
22: Quais outras medidas a senhora sugeriria para reduzir a corrupção? Em relação ao orçamento público, por exemplo.
AF: Para começar, uma lei de licitação claríssima, sem as brechas que existem hoje, e controle do Executivo federal sobre os órgãos estaduais e municipais para os quais repassa verbas. O Tribunal de Contas já faz um controle, no entanto a política tem esses meandros, precisa de gente para levantar o problema, para botar no jornal. Naquela obra do TRE de São Paulo, do “Lalau”, o Tribunal de Contas já tinha acusado irregularidade muitos anos antes de surgir o escândalo. Demora, porque depende de alguém para levantar o problema. A CGU poderia fazer isso, a partir dos relatórios do TCU— e hoje já está começando a fazer. Mas precisa da ajuda dos ministérios, maior acompanhamento, uma avaliação interna, inclusive por parte do próprio governo que tem de funcionar melhor. Acho que um orçamento impositivo, que, uma vez aprovado pelo Congresso, se cumpre, sem ter de ficar negociando uma liberação de verba aqui, outra ali, também ajudaria.
22: A senhora defende alguma mudança em relação ao trâmite do Orçamento no Congresso?
AF: Há uma proposta do senador Sérgio Guerra (PSDB-PE), que propõe acabar com a comissão de Orçamento para que ele seja analisado pelas diversas comissões especializadas. No período entre 1946 e 1964 era assim. Mas é muito difícil retalhar o Orçamento dessa maneira. E vários estudos mostram que, quando você coloca em comissões diferentes — e isso é uma crítica muito grande à forma com que o orçamento é aprovado nos EUA —, as comissões têm mais contato com grupos de interesse, então elas tendem a injetar mais dinheiro, a gastar mais. Na hora em que se discutem as instituições, há de se ter em mente que se ganha por um lado e por outro se perde.
A comissão de Orçamento tem vantagens por avaliar globalmente o Orçamento. E tem subcomissões temáticas, ligadas a cada área, de ministérios e das próprias comissões da Câmara e do Senado. Tem a vantagem de ver o Orçamento globalmente, trabalha de uma forma muito transparente, no sentido de que você tem de ter um parecer preliminar, que é analisado por todos os partidos. Acabou aquela coisa de o relator fazer o trabalho sozinho, como acontecia na época dos Anões do Orçamento. O relator era todo-poderoso, e fazia tudo, então centralizava. A mudança daquele sistema, feita em 1995, incluiu também limites para as emendas individuais. Foi fruto do trabalho de uma comissão da Câmara, incentivado pela CPI dos Anões, aprovado pelo Congresso. E é um bom exemplo de mudança institucional que aprimorou um processo importante e ajudou a reduzir a corrupção.
22: As emendas individuais ao Orçamento estão sob suspeita devido a escândalos como o dos Sanguessugas. A senhora acha que elas devem ser banidas?
AF: Hoje o Orçamento é tão engessado que as emendas do Congresso conseguem ficar com apenas 3% da verba total. E as emendas individuais são responsáveis só por 20% das emendas do Congresso. O restante, 80% da verba destinada às emendas do Congresso, fica com as emendas das bancadas estaduais, ou seja, feita não por partidos, o que eu também acho que é razoável, mas por estado, o que torna necessária uma negociação de todos os partidos e aprovação por dois terços. As emendas de bancada são emendas de valores maiores, e as individuais, menores. Acho esse sistema razoável.
22: A propósito da questão da representação, que análise a senhora faz do atual debate acerca da reforma eleitoral? Haveria, talvez, nas entrelinhas dessa discussão, uma intenção de voltar a questionar o sistema de governo?
AF: É bem possível. O sistema político almejado por uma parte da elite política brasileira é o parlamentarismo, com sistema distrital, dois partidos, sendo um majoritário. Esse é o sistema em que se tem menos transparência, menos capacidade de controle. Funciona bem na Inglaterra, por exemplo. Mas lá não é um país que tem uma democracia semelhante à daqui. Primeiro porque a representação aqui é muito mais justa do que lá, no sentido de você ter a possibilidade de entrar no sistema político, de ser representado. Na Inglaterra não tem. O sistema eleitoral distrital é o pior em conversão de votos em cadeira. É o que mais deixa gente que tem voto sem cadeira.
Na Inglaterra, o terceiro partido, que é o Partido Liberal, tem cerca de 16% dos votos do país e só 10% de representação. E nunca faz parte da política, não influencia. Então você tem votos inutilizados. No nosso sistema não. Tem alguns partidos de aluguel, mas é preferível deixá-los do que tirar a oportunidade de ter partidos efetivos. Se nós estivéssemos no sistema distrital, o PT não existiria, o PcdoB não existiria, o PSTU, o PDT, não existiria nada. Não teriam surgido, não teriam chance. Teríamos uma versão do PMDB e da Arena. É isso que queríamos para o Brasil?
22: Mudanças de sistema de governo podem reduzir a corrupção? Algo indica, por exemplo, que o parlamentarismo tenderia a abrigar níveis mais baixos de corrupção em relação ao presidencialismo?
AF: O Japão é parlamentarista, e é um dos países mais corruptos. Só que eles têm uma cultura brava. Quando pegos, costumam se matar. Tenho uma opinião muito clara: acho que corrupção tem a ver com impunidade. Num sistema político, a única coisa que previne a corrupção é maior abertura, em termos de instituições políticas. É por isso que, por exemplo, sou contra a lista fechada (sistema pelo qual os votos, dados às legendas e não a pessoas, são distribuídos aos candidatos de acordo com uma ordem estabelecida pelo partido).
Acho que os partidos, hoje, no Brasil, têm bastante poder para ser relevantes para os candidatos, ou seja, para botar os candidatos na linha. Seria um esvaziamento do poder dos congressistas individuais e de seus eleitores, e um reforço do poder das lideranças, que já é muito grande. Poderia reduzir pequenos casos de corrupção, no varejo, mas acho que seria uma regressão em termos de processo democrático e poderia ampliar outros tipos de corrupção, em maior escala.
22: Como combater a impunidade?
AF: Acho que, aos poucos, as instituições do Estado estão se aperfeiçoando e colaborando nesse sentido. Por exemplo, a Receita Federal. Antigamente ninguém pagava imposto. Hoje em dia ainda é pouco, são os assalariados, basicamente. Os profissionais liberais, que quase não pagavam, estão começando a pagar agora. Até pouco tempo atrás era natural um psicanalista, por exemplo, alguém que vai cuidar da sua saúde mental, perguntar se você queria com ou sem recibo. Estão começando a ficar com vergonha de fazer isso, mas era prática corrente de médicos, psicólogos, fisioterapeutas, todo mundo, ou não era? Os empresários, em geral, continuam pagando muito menos do que deveriam.
A “terrível” CPMF chegou como uma ótima oportunidade de identificar gente que dava cheques incompatíveis com a renda declarada. E, à medida que esses mecanismos vão permitindo uma fiscalização mais ampla e eficiente, o quadro vai melhorando. Sou a favor de quem não paga imposto ir para a cadeia. Não tem isso no Brasil, mas deveria ter. Estamos numa sociedade muito elitista. Até pouco tempo atrás, quando não se via tanta gente de classe alta ser presa, alguém reclamava de ir algemado para o camburão?
22: Como a senhora avalia o nível de participação popular no Brasil atualmente? Os movimentos sociais, por exemplo, têm ajudado a tornar no País a cena pública mais democrática?
AF: Não posso dizer em geral, para não ser confundida com pessoas que consideram os movimentos sociais sempre maravilhosos nem com aquelas que os rejeitam a priori. As instituições representativas da democracia podem ser o que for, mas pelo menos cada um sabe como e quanto participa, que peso a sua participação tem, como suas decisões são levadas em conta e de que modo influem. Nos movimentos sociais, muitas vezes não dá para saber. Mas, ao mesmo tempo, eles permitem formas de atuação mais direta. São duas formas de participar diferentes, podem ser complementares, podem ajudar uma à outra, mas o movimento social não é o bem nem o mal encarnados. Muitos, inclusive, na verdade não são movimentos sociais, são movimentos de liderança.
Dito isso, eu acho que houve um aumento da participação, sim. Além de uma certa impressão generalizada, há dados que mostram um aumento significativo do grau de associativismo no País. Essas associações cresceram principalmente em setores ligados à defesa de direitos, sejam de minorias, ambientais, de consumidores… e sobretudo no Nordeste e no Norte do País, o que me parece interessante. Um levantamento do Ipea, que compara dados de 1996 e 2002, mostra isso claramente.
22: Em regiões ainda muito associadas ao atraso, a currais eleitorais…
AF: Isso deveria nos levar a enxergar melhor até mesmo algumas afirmações, por exemplo, de que o Lula teria sido eleito pelo “grotão”. Sobretudo o Nordeste, eu acho que não dá mais para chamar de “grotão”. Primeiro porque a população da região é muito grande. Ainda existem grotões, mas não é daí que vem o grosso dos votos.
22: A senhora está apontando vários processos graduais que colaboram para a expansão e consolidação democráticas. Trata-se de uma análise otimista?
AF: Quando eu falo do panorama político brasileiro, não quero dizer que ele não tem problemas. Evidentemente há muito que caminhar e melhorar. Mas não acho que temos problemas tão graves nas instituições políticas. Acho, por exemplo, que temos alguns problemas muito graves no que se refere à impunidade. E não só impunidade na área política, isso é bom deixar claro. Por exemplo, existe uma cultura generalizada, que não é exatamente “cultura”, é falta de uma instituição que de fato funcione, de que não devemos pagar imposto.
A classe alta sonega e considera isso normal. Parte desse problema que estamos tendo aí, Renan Calheiros etc., é isso. Casos particulares que exemplificam condutas de maiorias. E, quando essas mesmas maiorias devem julgar e punir, ficam numa saia justa. Na verdade, o grande problema que esses fatos estão colocando é a relação do poder político com o poder econômico. O que não é uma coisa estranha a qualquer democracia. Mas é um problema que deve ser tratado seriamente.
22: Com o financiamento público das campanhas, por exemplo?
AF: Não tenho nada contra. Mas acho que não tem a ver com corrupção. Nós já temos o financiamento, uma parte dele é pública: o horário eleitoral gratuito, o horário partidário e o fundo partidário. São três formas de financiamento público. Horário gratuito, aliás, que é uma forma de os brasileiros em geral se informarem minimamente. Não se pode dizer que ninguém mais vê, não é verdade. Mas, voltando ao financiamento público, ele não tem nada a ver com combate ao caixa 2.
Tem é que aumentar a fiscalização da Justiça Eleitoral. Grande parte do processo de aumento do comparecimento do eleitor e do sufrágio no Brasil tem a ver com o papel da Justiça Eleitoral, que tem sido muito importante. Porque as pessoas esquecem que a Justiça Eleitoral põe urna lá no interior do Amazonas, leva a população para votar, o que faz acabar com aquela coisa de depender de político. E institui a urna eletrônica, que é a forma mais tranqüila de apurar e de identificar a intenção do eleitor. Mas a Justiça Eleitoral não desempenha bem a função fiscalizatória. Poderia ser mais atuante e exigente.
22: E quanto a doações individuais e de empresas?
AF: Acho que poderiam ser mais bem regulamentadas, de maneira a dar um incentivo para a pessoa poder doar. Por exemplo, em caso de doação individual, poder descontar do Imposto de Renda. Alguma forma, que seria mais uma contribuição indireta do governo, pública, que seria a renúncia fiscal, mas que obrigaria a ter um controle, de quem doa e de quem recebe, tudo teria de ser declarado. E as empresas teriam que ter limite de doação para cada candidato. Esse negócio de a empresa poder dar 2% do seu faturamento é um exagero. Imagine as empreiteiras, as grandes empreiteiras, veja o faturamento delas, e como os políticos dependem delas.
22: A senhora mencionou um aumento de comparecimento às eleições. Qual a dimensão desse fenômeno?
AF: Segundo estudos do Ipea, o comparecimento no Brasil está acima da média das democracias que têm voto obrigatório. A população está toda incluída, ela vota. Em 2002, quase 90% dos eleitores compareceram às urnas. Enquanto o percentual do eleitorado que efetivamente vota, em geral, está declinando, inclusive nos países onde o voto é obrigatório, no Brasil vem aumentando. É engraçado, porque nem os cientistas políticos chamam atenção para certos fatos. O grau de identificação dos eleitores com os partidos políticos, que já foi muito pequeno, vem aumentando e, hoje em dia, é bem razoável se comparado com as democracias européias. Diante da pergunta “você tem simpatia por algum partido?”, cerca de 60% dos brasileiros respondem que sim. E esse percentual vem crescendo desde a redemocratização do início dos anos 80 para cá.
22: Nas discussões acerca dos efeitos do trabalho legislativo e sua influência sobre os rumos do País, uma crítica recorrente refere-se ao que alguns vêem como um excesso de direitos sociais estabelecidos na Constituição, que seria um dos grandes culpados pelo baixo crescimento econômico. É justa essa avaliação?
AF: As grandes bandeiras da última Constituinte eram resgatar a dívida social e aumentar a participação política. Democratizar em todos os sentidos. E o Congresso respondeu, no sentido de garantir esses direitos, que são os mais universais. O problema, a meu ver, é que grupos de interesse conseguiram manter privilégios criados na ditadura. Para dar um exemplo que conheço bem, o tipo de aposentadoria por tempo de serviço para professor. Não me parece razoável que um professor, especialmente de nível universitário, que está na faixa mais alta de expectativa de vida, ganhe aposentaria integral com 25 anos de serviço. E há os privilégios do Judiciário, dos militares…
Só agora, há pouco tempo, acabou-se com as pensões ad aeternum para filhas de militares. Isto são coisas de sociedades muito elitistas, em que a elite conta, como contou durante 20 anos, com o apoio de um governo autoritário. Muitos desses privilégios foram colocados na Constituinte. O problema da Previdência, hoje, o grande gasto dela, é com aposentadorias altas pagas por longos períodos. Não é razoável que uma elite de beneficiários se aposente aos 50 anos e fique até os 75, 80, 90 anos ganhando integral do Estado. Mas dizer que o benefício mínimo da Previdência poderia ser menor que o salário mínimo é um absurdo.
22: Vários economistas criticam, por exemplo, a “aposentadoria rural”, o benefício concedido a trabalhadores com mais de 60 anos, mesmo que não tenham contribuído para a Previdência.
AF: Os economistas igualam tudo. Acham que nós, cientistas sociais, somos gastadores. Só que é preciso diferenciar. Tem de ver de onde tirar, identificar onde realmente está o excesso. O problema é que é difícil para a elite, que está no poder, tirar dela própria, não é?
22: Qual é a avaliação da senhora sobre a forma como a imprensa costuma mostrar os processos de tomada de negociação e decisão política, sobretudo no Congresso?
AF: Eu diria que, freqüentemente, os meios de comunicação agem de uma maneira que beira a ignorância. Digo isso a vários jornalistas. Um jornalista veio me dizer: “Ah, essa coisa dos sanguessugas não deu em nada, 150 deputados foram mencionados e ninguém foi cassado”. E eu perguntei se ele queria que cassassem 150 deputados simplesmente porque foram mencionados. Outra crítica permanentemente malfeita diz respeito ao sistema de trabalho do Congresso. O importante lá não é apenas estar no plenário. Esse negócio de ficar fotografando plenário vazio mostra, e propaga, um grande desconhecimento sobre como as coisas acontecem na instituição.
Todo Legislativo, no mundo inteiro, vai ao plenário na hora que tem de votar. E há esse espanto com o fato de que o Congresso só funciona de terça a quinta em Brasília. Não há problema nisso, se compararmos com outros lugares do mundo. Alguns funcionam só dois dias por semana. Em todo lugar, o congressista tem de estar presente também em sua base eleitoral.
22: A senhora se lembra de algum exemplo de funcionamento do Legislativo no exterior…
AF: Uma vez, em Washington, eu fui assistir a uma sessão, devia ser uma quarta-feira. Fui ao Capitólio e resolvi assistir a uma sessão na Câmara. Não tinha nada na Câmara. Então fui ao Senado, e assisti a uma discussão sobre como tornar o orçamento mais equilibrado. No dia seguinte, havia uma boa reportagem, de quase meia página, no New York Times, na qual falavam apenas os três senadores que haviam estado no plenário. E não teve uma linha para dizer que eram “só” aqueles três. O importante é que eles estavam discutindo um problema relevante, a respeito do qual os demais parlamentares, provavelmente, viriam a opinar e decidir no momento oportuno.
No Brasil, perdemos muito tempo com bobagens em vez de abordar assuntos importantes e aprofundar discussões. Quanto mais eu vejo e leio a respeito, menos identifico peculiaridades no Parlamento brasileiro. Não há diferenças tão grandes em relação aos do resto do mundo. Poderíamos ter melhores representantes, mas para isso é preciso mais exercício democrático, mais tempo. Não dá para comparar o Brasil com países que tenham 70, 80 anos de democracia sem interrupção, que, aliás, são raros.