O objetivo de incutir responsabilidade ambiental nas várias instâncias do Estado esbarra em interesses setoriais e em velhas práticas de poder
Por Aldem Bourscheit
Passados cerca de dois meses da anunciada reestruturação ambiental do governo federal, a nova máquina planejada pela ministra do Meio Ambiente Marina Silva ainda não decolou. A batata mais quente nas mãos d a petista é a polêmica divisão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) —órgão -chave par a concretizar sonhos governistas de crescimento econômico. Trata-se de mais um capítulo no frustrado sonho de transversalizar a questão socioambiental no governo federal.
Com parcos recursos, raro apoio governamental e em minoria entre população e Parlamento, ambientalistas dependem sempre de esforço redobrado para manter projetos distantes de interesses pontuais ou voltados à redução da proteção ecológica.
A tramitação na Câmara e no Senado da medida provisória que partiu o Ibama para criar o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (IchiBio) jogou lenha na fogueira da quarta e mais aguerrida paralisação de servidores ambientais do governo Lula e novamente evidenciou interesses de alguns setores em mudanças na legislação voltada à proteção da natureza.
Enquanto isso, a poderosa bancada ruralista “só pensa naquilo”: alterar o Código Florestal, de 1965, para ampliar os limites de desmatamento na Amazônia e outras regiões e obter indenizações a proprietários de terras atingidas pela criação de parques e áreas protegidas pelo poder público. Desejos antigos que voltam à tona sempre que algum projeto ambiental de peso ganha espaço no Congresso.
Na tramitação da Medida Provisória 366 / 200 7, ruralistas tentaram alterar a Lei de Crimes Ambientais (9.605/1998), para aliviar penas a funcionários que emitam licenças não exatamente dentro da lei e sugeriram limitar em 90 dias a concessão de licenciamentos prévios para novos empreendimentos. Também propuseram que unidades de conservação dependam de sinal verde do Legislativo.
“Criar reservas não pode depender apenas do Executivo, trazendo prejuízos a proprietários que aguardarão décadas por indenizações” , argumenta o deputado Colbert Martins (PMDB-BA).
Em 5 de Junho, Dia Mundial do Meio Ambiente, a ministra Marina Silva pretendia lançar novo pacote com parques, reservas biológica s e outra s áreas protegidas. Mas os decretos estão parados na Casa Civil. Enquanto isso, o primeiro parque nacional brasileiro, o de Itatiaia, completou 70 anos com graves problemas fundiários e fazendas em seu interior.
Brasília guarda casos clássicos e indicativos de como a questão ambiental é tratada no País. A aprovação da Lei de Gestão de Florestas Públicas, promessa governista para conter desmatamentos ilegais concedendo florestas para o chamado manejo sustentável, quase foi emperrada pelo senador José Agripino Maia (DEM-RN). Ele pleiteava verbas para a construção de uma ponte, em Sergipe, que serviu como moeda de troca para o apoio do senador à lei.
Outro clássico foi a tramitação da lei que regulamentou plantios e vendas de transgênicos. Assistindo de camarote à disputa entre os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, o governo não se posicionou claramente sobre o assunto e deixou ao sabor dos lobbies setoriais o destino da biossegurança brasileira.
Segundo fontes do Ministério do Meio Ambiente (MMA), parlamentares como o então senador Ney Suassuna (PMDB-PB) e os senadores Osmar Dias (PDT-PR) e Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) atuaram fortemente na época para que hoje a Comissão Técnica Nacional sobre Biossegurança tomasse sozinha “decisões políticas” quanto à liberação comercial de transgênicos.
A recente redução dos votos mínimos na comissão para permitir a venda desses itens foi vista como nova “puxada de tapete” na área ambiental. “O governo deve ser convencido de que desenvolvimento não é só geração de empregos e crescimento econômico, precisa também de proteção ambiental. Pressões nacionais e internacionais poderão ajudar na superação desse problema”, acredita o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ).
Ibama Canibalizado
A divisão do Ibama é vista por servidores públicos, parlamentares e ambientalistas como uma medida autoritária e pouco debatida na sociedade, que não resolverá problemas históricos da gestão ambiental brasileira. “Um órgão para unidades de conservação é velha inspiração dos ecologistas, mas (o IchiBio) não pode canibalizar o Ibama, que deveria ser reforçado em licenciamento e fiscalização”, avalia o deputado Gabeira.
Há indícios de que a estrutura do Ibama poderá ser reduzida. No Amazonas, 11 dos 12 escritórios regionais poderão fechar as portas. Destes, seis abrigarão estruturas do IchiBio, que só pode atuar dentro de reservas federais. Em caso de desmate ilegal fora da Floresta Nacional de Humaitá, por exemplo, seus servidores nada poderão fazer. “Isso não podia ocorrer. O governo deveria reafirmar compromissos na área ambiental. Deveria reforçar o Ibama na região”, diz o senador João Pedro (PT-AM).
O fato preocupa, sobretudo no Amazonas, estado que abriga a maior parcela preservada de Floresta Amazônica e onde ocorrem queimadas e desmates clandestinos que ampliam a contribuição nacional às mudanças climáticas. Alguns focos de ilegalidade são o trecho da BR-364 entre Rio Branco (AC) e Porto Velho (RO), financiada pelo Banco Mundial, e o limite entre Amazonas e Mato Grosso, tradicional líder em desmate.
Para ambientalistas, o MMA também peca ao não esclarecer de onde virão recursos, pessoal e infra-estrutura para reforçar o trabalho dos novos órgãos ambientais. Sem isso, a mera divisão do Ibama reproduzirá problemas históricos. O resultado pode ser mais burocracia e lentidão para concessão de licenças e perda de eficiência em fiscalização e gestão. “A simples divisão do Ibama é insuficiente”, diz Cláudio Maretti, superintendente de Conservação dos Programas Regionais do WWF-Brasil. A MP 366, diz ele, poderia incorporar mecanismos modernos, como a compensação pelo fornecimento de água e outros serviços dependentes das reservas naturais, promover a formação de corredores e mosaicos ligando áreas protegidas — e até reverter recursos ao IchiBio ao taxar o consumo de gasolina e outros combustíveis fósseis, a exemplo da Costa Rica. No Conselho Nacional do Meio Ambiente já se avalia a gestão de áreas protegidas com parcerias entre governo e ONGs, que dão suporte à ministra Marina Silva.
Um exemplo de maior burocracia envolve a extração de madeira em florestas nacionais, que vai depender da papelada de três órgãos. O IchiBio definirá onde o manejo florestal pode ocorrer, o Serviço Florestal Brasileiro fará a concessão de áreas para exploração de matas e, finalmente, o Ibama seguirá analisando e fiscalizando planos de manejo. Processos como esses, no entanto, dependerão do humor de quase 6,5 mil servidores federais. A maioria, por enquanto, muito descontente.
No pressionado licenciamento federal, cerca de 100 analistas se dividem nas áreas de transposição de rios, energia (elétrica, hidrelétrica e nuclear), transportes, mineração, obras civis, petróleo e gás. Seu salário bruto inicial é de R$ 2.573,00, mais até 35% como adicional por bom desempenho. Graças aos únicos dois concursos realizados, poucos têm experiência com Amazônia e energia nuclear, por exemplo. Isso leva à contratação de consultores para tarefas especiais.
Os baixos salários, o acúmulo de processos — são em média 20 nos escaninhos de cada analista —, a carência de computadores e até de mobiliário levariam à perda anual de 5% dos funcionários, que trocam o Ibama por outros órgãos da administração pública que oferecem maiores salários, melhor estrutura e mais tranqüilidade.
Pressão e Mimos
O resultado é ainda mais pressão. O prazo máximo de 36 meses para finalizar novos licenciamentos quase nunca é cumprido. A demora também alcança a renovação de licenças, que inclui vistorias a empreendimentos. No caso de uma hidrelétrica, por exemplo, a demora é em média de um mês, se tudo estiver dentro da lei. “O ideal seria dobrar o número de analistas no licenciamento”, diz Jonas Corrêa, presidente da Associação dos Servidores do Ibama.
Durante o licenciamento das usinas do Rio Madeira, analistas foram chamados em fins de semana e feriados para acelerar estudos e participar de reuniões. “Nunca vi uma pressão como essa sobre o órgão”, diz o analista Marcelo Belisário.
Um ex-diretor de licenciamento federal registrava em seu celular cerca de “30 chatos”. Eram funcionários públicos e de empresas privadas que constantemente ligavam pressionando por licenças. A cada fim de ano, empreendedores enviam generosos presentes a analistas do Ibama. Os “mimos” vão de agendas e canetas a malas (vazias) e cestas de chocolate da Kopenhagen. Os presentes mais caros seriam devolvidos e os demais, sorteados entre os servidores, conta um ex-funcionário, que pede para manter anonimato.