Por Edilson Cazeloto (Professor de Jornalismo da Universidade Mackenzie)
Uma transformação parece se desenhar, ainda que de modo incipiente e sujeita a reveses, no imaginário das sociedades tecnologicamente desenvolvidas. Provocada em grande parte pelos receios quanto à continuidade da espécie humana, trata-se de uma revisão do papel da ciência, principalmente em sua dimensão mais prática. O aquecimento global e a degradação do meio ambiente estariam levando a produção de objetos tecnológicos a considerar, em suas estruturas de poder e práticas cotidianas, valores éticos emergentes na sociedade civil. Com isso, parece renovada a esperança de que a tecnociência se torne efetivamente “politizável”, ou seja, permeável às necessidades humanas engendradas pelo campo social.
Academias de ciências dos países mais ricos do mundo e de “centros periféricos” como o Brasil, a África do Sul, a China e o México pediram que a urgência de pesquisas sobre tecnologias para combater o efeito estufa fosse contemplada na reunião do G8, em junho, na Alemanha.
Embora a reunião tenha terminado sem avanços concretos no estabelecimento de metas para a redução da emissão dos gases de efeito estufa, após o encontro, o porta-voz da Casa Branca, Tony Snow, declarou que “a forma mais eficaz de combater o aquecimento global é perseguir agressivamente tecnologias que mitiguem o problema”. A declaração admite que a tecnociência produzida pela nação mais poderosa do mundo deve ser dirigida para dar respostas aos anseios sociais.
Pode-se pensar que o pedido dos cientistas, no fim das contas, não deu em nada. Mas sua mera formulação chama a atenção por indicar a mudança que a necessidade parece impor ao imaginário tecnocrático do mundo moderno: trata-se de admitir que a tecnociência não pode mais ser considerada um campo autônomo, regido exclusivamente pela lógica do “progresso” sem limites ou pela razão de Estado. A tecnologia assume-se sujeita aos imperativos éticos que devem presidir a ação dos cidadãos, em vez de pairar incólume como uma semideusa sobre os destinos da humanidade.
Pleitear que pesquisas sejam encaminhadas nesta ou naquela direção significa tentar dirigir o desenvolvimento tecnológico para fins humanos. Não que tal desenvolvimento tenha estado efetivamente livre de pressões em sua história, mas agora ele parece obrigado a perseguir metas estabelecidas pelo campo da ética.
Há pouquíssimo tempo, tais solicitações seriam consideradas formas de obscurantismo, atentados contra a liberdade sagrada da pesquisa e contra o progresso ou, no mínimo, ingenuidades políticas estéreis.
Nas últimas décadas, a discussão de uma ética tecnológica esteve praticamente restrita ao campo religioso ou acadêmico, na maioria das vezes ignorada como uma espécie de relíquia medieval.
Vários setores do campo tecnocientífico, entretanto, ainda sustentam o mito de uma pesquisa imparcial, objetiva, neutra e autônoma. Essa visão ainda é predominante tanto na mídia quanto nas escolas e na formação dos profissionais que atuam em campos de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico relacionados às “ciências duras” – não por acaso também chamadas de “exatas”.
O mito da “ciência pura”
Fato é que a ciência nunca foi “imparcial, objetiva, neutra e autônoma”, como alguns querem crer. Se deixarmos o âmbito da chamada ciência de base para adentrar o universo da tecnociência, veremos que valores e ambições “externos” sempre foram a regra. Durante todo o século passado, as forças capazes de dar sentido ao desenvolvimento tecnológico foram o Estado e o mercado. O primeiro, por meio de políticas militares e desenvolvimentistas, buscando a superioridade bélica e econômica; o segundo, movido pela necessidade de aumentar a produtividade e pelo desejo de explorar nichos abertos pela inovação tecnológica. Agora, a sociedade civil ganha legitimidade para questionar e cobrar responsabilidade dos laboratórios e centros de pesquisa.
Foi a modernidade que elevou o desenvolvimento tecnológico ao status de força incontrolável, uma espécie de muralha contra a qual os argumentos éticos e morais se batiam em vão. A crença do espírito moderno era em uma tecnologia neutra, cabendo ao mundo rasteiro da política apenas decidir sobre o uso dos objetos tecnológicos, jamais sobre sua concepção. O desejo atual, de guiar o desenvolvimento para fins previamente concebidos, revela a corrosão do mito ao assumir que certas tecnologias possuem efeitos intrinsecamente nocivos.
Como não se pode “desinventar” um objeto técnico, o jeito é cuidar de seu destino antes que ele veja a luz do mundo, ou então, privilegiar “invenções” comprometidas com o bem-estar geral da humanidade. Arthur C. Clarke, na apresentação ao livro Macroshift – Navigating the transformation to a sustainable world, de Ervin László, incorpora a necessidade de “politizar” a tecnociência e endossa a idéia de que o “imperativo tecnológico” não deve ser obedecido: “Nem tudo o que pode ser produzido deve ser produzido”. Um alerta que ganha dramaticidade se recordarmos que Clarke criou, entre outros “personagens tecnológicos”, o computador assassino HAL 9000 de 2001: Uma Odisséia no Espaço.
Interlocutora legítima
No Brasil, a recente “febre da cana” ilustra a emergência do campo político como ator legítimo na discussão tecnocientífica. Enquanto governo e empresários do setor do álcool insistem na mensagem de que o etanol, além de alternativa importante para a produção de energia limpa, representa oportunidade de ouro para o desenvolvimento nacional, outros critérios incorporam-se ao debate.
Há anos, Ignacy Sachs, do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo da École des Hautes Études en Sciences Sociales, interpreta o desconforto da sociedade civil com a possibilidade de implementação de qualquer forma tecnológica que atenda apenas as necessidades mercantis. “[…] prevenir desmatamentos, garantir a produção de alimentos, a sustentabilidade e a inclusão de pequenos produtores e trabalhadores rurais são tarefas que o Estado deveria concluir o quanto antes”, disse Sachs à PÁGINA 22 (número 6, março 2007).
A busca por soluções para a questão energética não deve se pautar apenas por interesses do Estado e do mercado, mas levar em conta valores éticos mais amplos. No caso do etanol brasileiro, a tecnologia deve atender a demandas de setores como os trabalhadores e os pequenos produtores.
Independentemente de resultados concretos dessa disputa que ainda se desenrola, percebe-se que novos critérios podem emergir no horizonte do desenvolvimento tecnológico e novos atores sociais se apresentam com discursos válidos para além dos limites da economia e da soberania. O elemento “político”, aqui entendido como os desígnios da sociedade civil, luta para não permanecer estranho ao desenvolvimento tecnológico: ele quer ajudar a definir o que deve e o que não deve ser inventado. O desenvolvimento econômico ainda é o “fetiche” das nações, mas a sociedade civil começa a demonstrar que não aceitará fórmulas antigas. O resultado, espera-se, é que a caixa-preta da pesquisa tecnológica seja aberta às demandas dos cidadãos.
O processo ainda é incipiente o bastante para ser considerado mais uma esperança do que uma tendência. Mas a cidadania parece avançar sobre a tecnologia, colocando- a diretamente na pauta das discussões públicas, por meio das instituições políticas ou, mais sutilmente, dos movimentos pelo “consumo consciente” que usam as leis do mercado para legitimar processos e práticas produtivas menos nocivas e incentivar pesquisas privadas para o desenvolvimento de tecnologias “limpas”.
Como lembra o filósofo e urbanista Paul Virilio, em matéria de tecnologia, todo ganho implica perdas: uma tecnologia pode não substituir outra, mas desloca o seu papel e sentido sociais, como a invenção dos elevadores fez mudar as escadas. Cabe ao campo político decidir que perdas são aceitáveis diante dos ganhos prometidos e, principalmente, quem ganha e quem perde com o desenvolvimento tecnológico.