Por José Eli da Veiga
Quem já teve algum contato com a polêmica sobre os organismos geneticamente modificados sabe que ela é motivada por doenças e contaminações no meio ambiente que eles poderiam provocar. O que poucos sabem, infelizmente, é que não há como entender tal disputa por simplória oposição entre “verdades” e “mentiras”, como tentam fazer crer comunicadores que abordam a tragicômica novela em que se transformou o funcionamento da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança). Seja em reportagens de capa das grandes revistas semanais, seja apenas em concisos editoriais de jornais diários.
Contra esse obscurantismo da mídia, só se pode enfatizar que a polêmica resulta de séria controvérsia científica, e não de meros pontos de vista influenciados por ideologias progressistas ou retrógradas. Menos ainda por perfunctórias crenças de fundo religioso. Ao contrário da tônica adotada pelos meios de comunicação brasileiros, está-se diante de uma controvérsia que não será superada por uma previsível derrota de mentirosos que atacam a transgenia, para a felicidade geral dos que a defendem, porque estariam com a verdade.
A rigor, o que nada tem de científico, sendo, ao contrário, visceralmente esotérico, é essa generalizada suposição de que a percepção do risco por indivíduos ou grupos sociais possa ser entendida como simples reflexo de um dilemma entre verdade e mentira. É uma suposição das mais ingênuas e simplistas, de quem parece se orgulhar de sua própria ignorância sobre o conhecimento já acumulado a respeito do fenômeno.
Infelizmente, a “gestão de riscos” é um assunto que ainda não despertou a atenção da mídia brasileira. Se tivesse despertado, ajudaria muito a superar essa infantilidade de imaginar que possam ser facilmente ultrapassados os obstáculos enfrentados por esta sociedade na relação que vem mantendo com o advento dos organismos geneticamente modificados. Particularmente se o debate público continuar baseado nesse maniqueísmo que pretende tudo resumir a uma quixotesca guerra de pretensos donos da verdade contra hipotéticos mentirosos.
O recurso básico dos maniqueístas é lembrar que todo avanço tecnológico assusta muito no início, mas acaba sendo incorporado como prática rotineira. A tal ponto que ninguém consegue pensar como seria a vida sem ele. Recorrem a exemplos que não poderiam ser mais convenientes. Em meados do século XIX, a mortalidade entre as mulheres grávidas era altíssima, simplesmente porque os médicos mexiam em cadáveres e nem lavavam as mãos antes de realizar partos. A assepsia com solução de cloreto de cal reduziu a mortalidade das parturientes a menos de um décimo. Também surgiu a anestesia, dando às pessoas o direito de ser tratadas sem sentir dor. Uma bênção. Agora imagine a vida sem assepsia nem anestesia.
Nem deve continuar a ler este artigo quem estiver convencido de que a incerteza colocada por questões como a dos transgênicos (ou a do aquecimento global) é realmente comparável às circunstâncias da adoção da anestesia (ou da assepsia). E de muito menos servirá a leitura do livro que será lançado em breve pela Editora Senac-SP, voltado justamente à rejeição do tão querido maniqueísmo do “Pró versus Contra”. O que interessa é conhecer os melhores argumentos dos dois lados, e começar a afastar a idéia de que a controvérsia científica esteja para a sociedade como o pecado está para o crente. Daí porque esse livro oferecerá ao leitor três aprofundamentos sobre a questão dos transgênicos: um na “defesa”; outro no “ataque”; e um terceiro — “no meio-de-campo” — que reconstrói o debate sobre outras bases.
No primeiro, os agroeconomistas da Unicamp José Maria da Silveira e Antonio Marcio Buainain garantem a viabilidade e o interesse de difundir racionalmente os transgênicos na agricultura, desde que em ambiente institucional que seja estimulante do processo de inovação. Para tanto, argumentam que tais instituições devem ser capazes de reduzir fenômenos complexos a rotinas de procedimentos claros, difundidas de forma ampla entre os atores sociais, de modo a pautar as ações legítimas de cada segmento, sem necessariamente travar os processos de inovação.
Em seguida, o agrônomo Gabriel Fernandes, da ONG AS-PTA, começa por denunciar a tentativa de colar nos críticos dos transgênicos o rótulo de “serem contra tudo”. Para isso, os defensores extremistas dos organismos geneticamente modificados apresentam a transgenia como sinônimo de biotecnologia. Em seguida, postulam que biotecnologia é sinônimo de ciência. E presumem, é claro, que tal ciência necessariamente conduza a sociedade ao desenvolvimento. Esta é, segundo o agrônomo, a base do preconceito, ou mesmo da suspeição, contra os atores, sejam eles da sociedade civil, sejam da academia, que tiveram o mérito de tornar público o tema dos transgênicos.
Depois, o sociólogo Ricardo Abramovay argumenta que a controvérsia desempenha um papel decisivo no funcionamento tanto da ciência como dos mercados. Não se trata apenas de constatar o fato óbvio de que a ciência se alimenta das críticas. Ou de que os mercados sejam o domínio do confronto de interesses opostos. O importante, no campo científico, é que as controvérsias não se limitam e não podem limitar-se aos especialistas. Elas se desenvolvem com base numa vasta rede, em que variados atores fazem parte daquilo que a ciência realmente é.