Por Aron Belinky
Muito se fala nas mudanças climáticas, e não faltam pessoas que já apontem em nosso cotidiano seus efeitos. Se faz calor, a culpa é do aquecimento global. Quando de repente chega um frio digno desse nome, é o clima que está maluco. Chuvaradas, ventanias, enchentes, secas e incêndios pululam no noticiário, e não nos deixam esquecer que algo muito sério está acontecendo. Mesmo que boa parte disso seja mera coincidência ou fruto da cobertura seletiva da imprensa, o fato incontestável é que estamos, sim, nos deparando com efeitos inconvenientes de nossas próprias ações. E, quando digo próprias, não me refiro a “nós, a humanidade”. Falo, sim, de nós mesmos, todos os seres humanos vivos e ativos, aqui e agora.
Quando nasci, no início da década de 60, éramos 3 bilhões de pessoas no planeta. Hoje, nos primeiros anos do século XXI, estamos por volta de 6,6 bilhões. No curso de meus primeiros 40 anos de vida, a humanidade dobrou de tamanho, ao mesmo tempo que multiplicou por quatro o volume de bens e serviços produzidos (e por fator bem maior, a quantidade de lixo). Somos nós a geração herdeira do patrimônio tecnológico e organizacional que permitiu tamanho sucesso material, mas somos também a primeira geração que – literalmente – colherá as tempestades dos ventos (ou fumaças) que plantou.
Plantios, estações do ano e ciclos naturais têm sido por milhares de gerações uma referência para as comunidades humanas. Cadências astronômicas governam o dia e a noite, assim como as luas e as marés. Definem a duração de um ano, e o dividem em estações. Plantas e todos os outros seres vivos entram nessa dança, aprendendo a medir seu tempo e a dar ritmo para suas vidas. Para mim, nascido e criado na metrópole de São Paulo, mais do que pelas alternâncias de calor e frio, de chuvas e secas, esses ciclos se revelavam em pequenos prazeres, esperados com época certa e água na boca.
Pinhões e cerejas noticiavam o inverno e o verão, as festas juninas e os Natais. Mais que alimentos ou prazeres, esses frutos sempre foram para mim referências tão importantes como a safra deve ser para os agricultores, o defeso para os pescadores, ou as águas para os criadores. Ao encontrar pinhões, sabia que faltavam seis meses para as cerejas, e depois dessas, mais seis meses para ter novamente os pinhões. Esse meu calendário natural implodiu quando, neste mês de julho – graças à globalização, à queda do dólar e ao transporte aéreo refrigerado – encontrei pinhões e cerejas juntos no supermercado. Algo tão absurdo como o São-João e o Réveillon caírem na mesma semana.
Esse caso é pequeno e subjetivo, mas emblemático do tempo em que vivemos e das decisões que tomamos. Por um lado, é uma óbvia alegoria de como hoje subvertemos o tempo, desconsiderando quaisquer ciclos naturais. Aplicam-se desde as excessivas tarefas em cada hora de trabalho, passa-se pelos dias sem fim de quem roda o mundo acompanhando a ciranda de aberturas e fechamentos das bolsas, e chega-se até a extensão da adolescência, ao encurtamento da infância somado ao adiamento da maturidade.
Ainda em um plano óbvio, a mesma alegoria nos fala de modelos agrícolas e de impactos do consumo. Quanto CO2 foi emitido para trazer de avião essas cerejas da Califórnia a São Paulo? Quanto de aquecimento global está associado a cada saquinho de frutas? Em um mercado onde só conta o valor monetário, ter compradores para essas mercadorias é o suficiente para justificar e sustentar o negócio. E se contabilizássemos os custos socioambientais de tanto transporte? Ainda haveria mercado?
Do outro lado, os pinhões podem ser vistos como ícones de um modelo diferente, onde produtos regionais são demandados por sua especificidade, e assim valorizam as regiões onde são encontrados. Remetem-nos, mesmo que indiretamente, ao conceito de produção local, onde deslocamentos mínimos e pouco impactantes são parte dos benefícios atribuídos ao produto. Representam as possibilidades do extrativismo, em que o produto florestal de um ecossistema ameaçado se coloca como fonte de renda permanente, alternativa à simples derrubada da madeira e exploração da terra.
Finalmente, a analogia menos óbvia, mas talvez mais importante, leva-nos de volta ao ponto de partida: que escolhas estamos nós fazendo agora? Que prioridades nos governam? Que sentido faz aquecer o planeta para comermos cerejas em julho? Que sentido faz destruirmos nossas referências (pessoais, culturais e naturais) em nome da integração à modernidade globalizada?
As respostas não são simples. A humanidade não se move de modo uniforme ou pela simples razão. Também não há dúvida de que, mesmo imperfeitos, os mercados capitalistas globais constituem um inestimável motor do progresso tecnológico e material. Encontrar um caminho efetivo e de equilíbrio nesse processo é um desafio que, como sabemos, não é pequeno. Mas o caminho, com certeza, começa com uma boa olhada em volta, revendo convicções, hábitos e conveniências com os olhos de quem – querendo ou não – pagará a conta. E bem antes do que possamos pensar.