Por Marcelo Godoy*
Só podemos exercer o poder mediante a produção de verdades. Bandido tem de morrer. A Justiça é lenta, e os recursos são tantos que um criminoso jamais é punido. Se a polícia prende, o juiz solta. O governo rouba, os políticos enriquecem; alguém tem de fazer alguma coisa. O soldado P. sabe o que essa frase significa. Ele entrou em contato com O Estado de S. Paulo em junho de 2006, após os ataques do PCC, que assassinou duas dúzias de policiais. A PM reagiu: em poucos dias, matou 89 suspeitos. P estava exausto dessa guerra ineficaz. O soldado da Rota queria desabafar. Contou como os colegas escolhiam as pessoas que iam morrer. Bastava ter ficha policial ou estar, por exemplo, em liberdade condicional e ser parado numa blitz. Revelou como roubos e tiroteios foram encenados para encobrir dezenas de execuções. “Isso é uma prática corriqueira e tem de parar. Não adianta, não vai resolver nada. Nessa brincadeira, ô Marcelo, algumas pessoas que não tinham nada a ver foram embora também.”
P. conhece o discurso e as pessoas que crêem que alguém tem de fazer alguma coisa. Ontem, chamavam o capitão-do-mato. Hoje querem o Capitão Nascimento. Há uma lógica por trás das passeatas de pessoas cansadas que procuram os quartéis como vivandeiras alvoroçadas, da reação ao filme Tropa de Elite e do pouco estupor que causa o uso da mentira, do seqüestro e da execução de suspeitos por policiais da Rota após os atentados do PCC.
Embora não se admita ou saiba, essa lógica traz reflexos da antiga militarização da política, da ação pública. É como se a guerra não fosse o que dizia o prussiano Carl von Clausewitz: a continuação da política complementada por outros meios, e a violência deixasse de ser a ultima ratio. Como se a política se transformasse na continuação da guerra; e a paz, uma espécie de conflito bélico latente, como na análise de Michel Foucault.
O que está por trás desse sentimento difuso é uma atitude mental que sobreviveu à Guerra Fria. Essa belicosidade levada à vida social, política e acadêmica teve sua expressão mais pura nas obras de militares franceses, como os coronéis Trinquier, Lacheroy ou Bonnet, que formularam nos anos 50 a doutrina da guerra insurrecional ou revolucionária. Derrotados no Vietnã pelos soldados comunistas do Viet-Minh, os franceses estudaram a estratégia adversária, que transformara a revolução proletária em guerra popular prolongada. Leram os escritos militares e políticos do líder chinês Mao Tsé-tung e concluíram que o conflito moderno começava quando o primeiro panfleto era distribuído e não com o disparar do primeiro tiro.
Estado de exceção e permanente
É por isso que certo anticomunismo histérico tratava e ainda trata as críticas ou mudanças do status quo como uma bala deflagrada pelo inimigo. Há sombras daquela doutrina entre os que foram rondar os bivaques do Comando Militar do Sudeste aos gritos de “milicos, cadê vocês?”, como fez recentemente certa passeata de fim de semana em São Paulo.
Se o que nos faz pensar é o sentir-se intrigado, o espanto, a surpresa, o admirar-se, há muito sobre o que pensar nesses dias. Quem assistir, por exemplo, ao filme Tropa de Elite sairá do cinema se fazendo uma pergunta: “Eu apertaria o gatilho?” A questão procura uma resposta como ela tivesse de ser dada pela consciência moral, ética e religiosa de cada um. O problema é que o policial do filme ou da Rota que aperta o gatilho funciona em outra freqüência, cujos valores importantes não são os da “consciência social”, mas os da eficiência e rapidez, de um conceito de Justiça baseado na vingança contra marginais, cuja integridade física não devia ser protegida pela lei.
Quando os policiais do Bope ocupam favelas, tem-se a impressão de que estamos diante de uma nova Batalha de Argel. No filme do diretor Gillo Pontecorvo, era o coronel Mathieu que explicava em que tipo de guerra os franceses estavam metidos. Ali não havia espaço para compaixão com o inimigo. A engrenagem de tortura, execução e desaparecimento era própria da doutrina da guerra revolucionária. Era a forma de tirar o peixe (terrorista) do aquário (população muçulmana) — o que nos remete ao paralelo brasileiro em que os personagens são o bandido e a população favelada.
A busca de informações sobre o inimigo é o que leva à tortura, transformada em mais uma arma para destruir a organização adversária, que se esconde na sociedade. É a rapidez e a eficiência que determinam as armas. Clausewitz dizia que “só as almas filosóficas pensam que é possível desarmar e derrotar o inimigo sem verter demasiado sangue”, mas na guerra, “os erros devidos à bondade humana são a pior das coisas”.
De fato, as armas usadas pelos policiais do Bope no filme, pelos franceses na Argélia, pelos militares sul-americanos, pelos americanos no Vietnã são eficientes e levaram, na maioria dos casos, a vitórias militares. O problema é que todos eles esqueceram que o objetivo maior da guerra revolucionária contra um inimigo que não veste farda não é a conquista de terreno, mas das pessoas. Assim, quando usam aquelas armas, os exércitos são capazes de vencer o conflito bélico, o que significa vencer uma batalha numa guerra onde o importante é a esfera política, em que o apoio popular é essencial. Derrota-se o criminoso, mas se perde a população. Pior: sempre haverá alguém para substituir o bandido morto. Eis por que a tortura e o assassinato se tornam ineficazes, uma razão a mais para que os policiais não apertem o gatilho.
O espetáculo da bárbarie
Alguém pode objetar: quer dizer que, se matar e torturar fosse eficiente, tudo bem? A essa pergunta, a resposta é que a violência jamais será eficiente para garantir a nossa tranqüilidade. É fato que o criminoso, na medida em que se assemelha ao tirano, pode despertar a mesma antiga indagação sobre a licitude de matá-lo. O filósofo Thomas Hobbes inscreveu essa opinião entre as teorias sediciosas que o Estado deve coibir. Para dissuadir os candidatos a tiranicida, ele questionou a legitimidade de quem julga os tiranos. Matá-los pode parecer um meio adequado de resolver os problemas que causam. Mas nosso espírito só estará tranqüilo, sentindo-se seguro, com um governo que garanta ao cidadão não precisar temer outro cidadão, principalmente se for um policial.
Resta a violência de quem chama pelos milicos. Às vivandeiras, pode-se afirmar, como Marx, que falta uma só coisa para completar o caráter da República desejada pela passeata em frente ao quartel: “substituir Liberdade, Igualdade e Fraternidade pelas palavras inequívocas: Infantaria, Cavalaria e Artilharia”. O candidato a Capitão Nascimento pode, por fim, dizer que a morte dos facínoras tem um caráter exemplar. Ora, “se a sociedade acreditasse realmente no que diz, ela mostraria as cabeças dos executados”, dizia Albert Camus. Quando ele refletiu sobre a pena de morte, fazia 20 anos que o espetáculo da guilhotina deixara de ser encenado nas praças da França, sendo recolhido ao interior dos muros das prisões.
Os policiais que defendem a guerra sem misericórdia e limite contra o crime também preferem a execução anônima. Se eles encenam roubos e tiroteios para justificá- la, não o fazem apenas para acobertá-la e evitar problemas judiciais. O problema é que mesmo eles reconhecem que nem todos aceitariam o espetáculo. Nascido na Argélia, então território francês, Camus conta que o pai, desejoso de ver a execução de um assassino de crianças que o revoltara, voltou para a casa transtornado com a ação da guilhotina. “Quando a suprema justiça faz vomitar ao homem honesto que supõem proteger, parece difícil sustentar que ela seja destinada a trazer mais paz e ordem à cidade.”
Parece difícil que a passeata ao quartel ou a platéia que não sabe que compreender o discurso do capitão não significa aceitá-lo possam dar mais paz a este País. É improvável que os policiais da Rota que encenam mortes tragam mais ordem ao Brasil do que traziam à França os defensores da guilhotina. Apesar de tudo, eles desejam exercer o poder e, para isso, produzem suas verdades.
*Marcelo Godoy é o autor da reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo que, em setembro deste ano, revelou relatos de um soldado da Rota sobre execuções sumárias que teriam sido levadas a cabo por integrantes da tropa de elite da PM paulista. Seu primeiro contato com o soldado P. ocorreu em 2006, mas os relatos só puderam ser divulgados um ano depois, em razão das necessidades de verificação quanto à credibilidade da fonte e da concordância do próprio soldado.