Regina Horta Duarte é uma das mais destacadas pesquisadoras de um novo ramo do conhecimento, a história ambiental. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Regina defende uma abordagem politizada do tema, mas alerta sobre os riscos de distorção e autoritarismo decorrentes de uma historiografia militante. Segundo ela, os desafios impostos pelas questões socioambientais exigem a superação das visões tradicionais que imperam nos dois extremos do debate: o das biociências e o das ciências sociais. “A história tem boas novas”, diz a estudiosa. E parte dessas “novidades” se refere a uma dimensão ainda pouco compreendida da diversidade que nos envolve: aquela que tem sido historicamente criada pelos homens em suas inúmeras formas de interpretação da natureza e de relação com o meio ambiente.
Por Flavio Lobo
PÁGINA 22: Como a senhora enxerga o papel do pensamento religioso na história da relação homem-natureza?
REGINA HORTA: A dimensão religiosa tem, sem dúvida, um papel importante nessa relação. Enxergo duas vertentes, e, para mim, nenhuma delas se mostra satisfatória. Há a idéia da Mãe Terra, de uma coisa meio mística, não necessariamente religiosa, algo do gênero ecomístico, do tipo “vou me misturar à natureza, vou sentir a água, o sol…” Não confio muito nessa visão, justamente porque a sociedade humana difere da natureza. Temos o estatuto cultural, criamos representações sobre a natureza e por isso podemos pensar sobre ela. Essa vertente mística pode ser prazerosa para as pessoas, mas ela não me seduz muito, inclusive por remeter à idéia de algo como, por exemplo, a “Gaia”, que está acima da história e da qual derivam verdades inquestionáveis. Por outro lado, há outra perspectiva religiosa, que é a perspectiva de que Deus criou o mundo… Na Bíblia, tudo é criado para o homem, e esse antropocentrismo é perigoso. Se a natureza é criada para nós, podemos dispor dela.
22: E quanto a modelos diferentes de pensamento religioso, como os das culturas indígenas?
RH: Eles têm uma história. Quando pensamos nos índios brasileiros, primeiro temos de pensar que há várias populações indígenas e que nem todas tiveram a mesma relação com a natureza. Cada uma construiu a sua. Ao longo do tempo, eles também mudaram muito. Penso duas coisas. Primeiro, que é importantíssimo que existam essas populações indígenas, com saberes e práticas diferentes. Assim como há a necessidade da biodiversidade, a diversidade cultural é muito valiosa. É essencial que existam outras formas de sociedade no Brasil, que essas populações sejam protegidas, que elas tenham direito à terra, que elas tenham possibilidade de manter seu modo de vida e sua cultura. Mas, ao mesmo tempo, em torno desse tema, há uma espécie de suspensão da crítica, como se tudo o que viesse dos índios fosse necessariamente bom. Vou dar um exemplo. Estudei muito a caça aos pássaros entre o fim do século XIX e o começo do XX, que foi uma hecatombe promovida para atender a demanda por penas para confecção de roupas e enfeites. E hoje tenho visto que uma das atividades dos índios em Minas Gerais tem sido o artesanato com pena.
22: E essa prática é aceita por serem índios?
RH: Muitas vezes, acho que sim. Tenho visto muito brinco de pena, colar de pena, minhas alunas todas enfeitadinhas com colares de pena. Outro dia houve um festival aqui na faculdade, e tinha índios vendendo artesanato. Aquele monte de brincos de pena, as coisas mais lindas, penas coloridas, penas pequenininhas. Perguntei de onde vinham as penas, eles me disseram que eram de arara e admitiram que, na verdade, não poderiam fazer aquilo. Perguntei se eles tinham matado muitas araras para fazer os brincos. A resposta de um deles foi: “Mas lá tem muita arara”. Ações desse tipo não são inócuas. Na discussão que atualmente acontece no Brasil, uma vertente, composta, sobretudo, por antropólogos, defende que as populações tradicionais vivem em harmonia com a natureza, e que é desnecessário retirá-los dos lugares onde vivem. Do outro lado, muitos biólogos afirmam que é preciso manter reservas sem a presença humana. Acho que os dois grupos têm razão, e que nenhum deles tem toda a razão. Para os biólogos, em geral, falta dar mais valor à diversidade cultural e aos direitos de certas populações. Já os antropólogos deveriam perceber que, se a retirada forçada das comunidades dos lugares onde vivem pode ser algo autoritário, a própria idéia de população tradicional também pode.
22: O que há de autoritário na defesa das populações tradicionais?
RH: Para começar há uma negação do tempo, da história. A aplicação da idéia de preservação a pessoas é muito complicada porque veta ou dificulta a liberdade de transformação. Também acho um equívoco imaginar que nessas sociedades não existem formas de autoritarismo, dominação, relações de poder. Não são sociedades? Então há, sim, transformação, conflitos, história, relações de poder… Portanto não dá para pensar que tudo o que eles façam será sempre, por princípio, compatível com a defesa do meio ambiente e com os melhores interesses da sociedade brasileira. O guará, por exemplo, é um pássaro gravemente ameaçado de extinção e bastante visado por algumas populações indígenas. Um amigo meu foi a uma reserva e descobriu que os índios dali estavam usando os guarás realmente para uma atividade muito insustentável: para a alimentação dos porcos. A questão ambiental é complexa porque não tem um lado só. Conciliar preservação ambiental e a defesa de culturas diferenciadas é um desafio que deve ser enfrentado. E acho que requer a superação de discursos mistificadores e autoritários que existem nos dois extremos da discussão.
22: Quais as origens do que hoje se define como “história ambiental”?
RH: A natureza não é um tema novo na historiografia. No Brasil, por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda publicou Visões do Paraíso na década de 50 e, na minha opinião, é o melhor livro de história ambiental que já foi produzido por aqui. Mesmo em Raízes do Brasil, também do Sérgio Buarque, e em alguns trechos da obra do Caio Prado Júnior e do Capistrano de Abreu, há ótimos exemplos de abordagem da relação do homem com
o meio ambiente. Gilberto Freyre não é propriamente um historiador, mas Nordeste é um ensaio ambiental, digamos assim, sobre a região. Ele mesmo diz: “Este aqui é um ensaio ecológico impressionista”. Há uma transição historiográfica importante em relação ao tema nos escritos desses autores. Atualmente, desde a vinda do Warren Dean (historiador americano falecido em 1994) para o Brasil, formou-se uma geração de pesquisadores nessa área.
22: É possível identificar uma liderança mundial nessa área de estudo?
RH: É, sim. A chamada “história ambiental” que se assume com esse nome surgiu nos Estados Unidos, nos anos 70. A American Society for Environmental History (Sociedade Americana de História Ambiental) foi fundada em 1976, promove encontros anuais e é extremamente ativa. A equivalente européia surge nos anos 80, no Reino Unido, que é a sede, e conta com a participação de vários outros países, como a Itália e a Espanha. Já existe também uma sociedade latino-americana, a Sociedade Latino-Americana e Caribenha de História Ambiental (Solcha), de cujo conselho diretor eu participo. Nosso próximo congresso bianual, cuja organização eu estou coordenando, será em aqui em Belo Horizonte, entre 28 e 30 de maio de 2008. Temos 110 brasileiros que vão apresentar trabalhos, uns 30 americanos, vários mexicanos, colombianos, panamenhos, chilenos, costa-riquenhos… O que me agrada particularmente na Solcha é que há uma forte perspectiva política na história que é produzida. A questão da justiça social, das relações de poder e exploração, temas muito presentes na historiografi a latino-americana, também estão presentes na história ambiental.
22: Nesses eventos o debate se restringe aos historiadores da natureza?
RH: Não, haverá gente de diversas áreas. Além dos que trabalham mesmo com história ambiental, haverá outros que buscam interfaces, gente das bio e geociências, por exemplo. É muito fácil achar interfaces com história ambiental. A história ambiental é institucionalizada, sim. Nos últimos congressos da Anpuh (Associação Nacional de Professores Universitários de História), sempre há um grupo de trabalho sobre história da natureza. Mas trata-se de algo inicial. A metodologia é ainda muito imprecisa, eu acho. Nos encontros, percebem-se tipos muito diversos de perspectivas históricas. Existem algumas pessoas com visões mais deterministas, mais ligadas às áreas da geografi a, ou da geologia, e existem perspectivas mais sociais e políticas. É bem variado, a metodologia ainda não está bem defi nida e generalizada. E a qualidade dos trabalhos apresentados ao debate é também bastante desigual. Mas há muita coisa interessante.
22: Essa multidisciplinaridade é intrínseca à história ambiental ou só um sintoma da sua juventude como área do conhecimento?
RH: É um desafi o que precisa mesmo ser enfrentado pelos pesquisadores. Não dá para fazer história ambiental de qualidade sem um esforço de compreensão das ciências relacionadas ao tema. Isso difi culta o caminho do pesquisador, mas traz a possibilidade do diálogo e de alargamento das perspectivas, porque termina por abalar o antropocentrismo dos historiadores, defrontados com o fato de que nem tudo depende do homem, e, do outro lado, abala o cientifi cismo que impera nas ciências naturais.
22: Em relação à própria historiografia, especializações como a da história ambiental trazem que tipo de vantagem e de risco?
RH: Depende do jeito que se faz. Há uma quantidade de conhecimento enorme, do qual nenhuma pessoa dá conta sozinha. Cada vez mais a produção de conhecimento é coletiva, porque as pessoas não dão conta de acompanhar nem sequer a própria área do saber a que se dedicam. Creio ser necessária uma refl exão metodológica sobre questões básicas: sobre o que é a verdade, o que é o tempo, como é que o conhecimento histórico se forma e caminha, qual é o papel da história. Para que a história serve? Uma pergunta básica, que parece banal, mas é muito importante.
22: E para que serve a história?
RH: Creio que, inclusive, para nos dar boas novas – é o que falo para meus alunos. Podemos pensar, principalmente morando num lugar como o Brasil, que muitas vezes a história nos puxa para baixo: que o Brasil sempre foi corrupto, desorganizado, fadado ao fracasso, uma sociedade que não consegue guiar-se por um verdadeiro debate público. A história pode servir apenas para confi rmar isso, nos passar um atestado de incompetência, e de que nos aguarda um futuro quase inexorável de manutenção desse estado de coisas: de incapacidade de criar uma república verdadeira, efetiva, com cidadania, participação popular e justiça social. Mas a história também pode mostrar que, a cada momento da história, o futuro é algo a ser construído. Certamente há fatores de condições históricas. O homem não é absolutamente livre para criar o seu futuro. Mas existem possibilidades históricas diversas no nosso presente e, assim como no passado o futuro era indeterminado, nosso futuro será decidido, em grande parte, pelo que fi zermos e escolhermos, pela maneira como atuarmos. Se pensada como a identifi cação de estruturas determinantes às quais não se pode escapar, a história, a meu ver, não vale a pena.
22: Mas as visões da história apenas como acúmulo de fatos ou como explicitação de determinações inescapáveis ainda são as mais comuns, não?
RH: Provavelmente. Mas é preciso abordá-la de outra forma. Porque ou ela serve à vida ou ela não serve para nada. Servir à vida seria servir à esperança de transformação, ao demonstrar a possibilidade humana de criar sociedades absolutamente diversas. Houve uma época em que eu gostava muito de história antiga, e cheguei a estudá-la por alguns anos. Alguns autores, dos quais eu gostava especialmente, diziam que era impossível entender os valores de um ateniense do século V a.C. ou de alguém que vivia na República Romana, a partir dos nossos valores burgueses. A história nos dá a possibilidade de encontrar outros homens, inúmeras possibilidades sociais, evidências de que as coisas podem mudar — e que de fato mudam profundamente. É uma boa notícia, não é?
22: Mas não haveria um risco oposto ao da “história morta”, que projeta o passado sobre o futuro? Ao servir à vida, portanto ao presente, ela não pode se transformar em militância e adaptar o passado aos objetivos presentes?
RH: Há uma expressão de um filósofo de quem eu gosto muito, o Cornelius Castoriadis, que diz: “O que me interessa na história são os outros possíveis do homem”. O importante é esse encontro com o outro, com os outros possíveis do homem. Quero a história pelo que tem de transformador, pelo que ela me conta que possa transformar minha vida. Mas ao mesmo tempo não tenho o direito de projetar todos os meus desejos, os meus anseios, sobre esse passado, porque senão perco o mais importante, que são esses “outros homens”. Por exemplo, um pensador marxista pensa toda a história pela luta de classes. Ele estaria aplicando a categoria atual a toda a história da humanidade, quando na verdade é justamente o contrário o que se quer: a capacidade de perceber a alteridade, para que se possa relativizar as visões e certezas atuais, algo que pode, inclusive, nos tornar mais aptos a transformar a realidade. Assumir que a história é interessada não implica torná-la militante no sentido de ser interpretada para servir a uma causa política específica. A militância tende a comprovar apenas o que já se sabe, a respaldar e justificar idéias e ações preconcebidas. A atitude que defendo é quase
o contrário disso. Quero a história como possibilidade de renovar o meu mundo, a minha vida, e a sociedade em que vivo, mas justamente porque eu relativizo tudo isso que sou e penso, e descubro permanentemente que as identidades, pensamentos e projetos a que estamos acostumados não são os únicos possíveis. Mesmo que continue defendendo certos ideais ou certas práticas, dou a eles um estatuto histórico, relativo, questionável.
22: Trata-se de alargar o debate e aprofundar o questionamento?
RH: E de retirar da cena um plano metafísico, onde haveria algo fora do campo do questionamento. Tudo está sob questionamento. Você pode defender seus ideais, é claro, mas sem se esquecer de que são históricos. Não é uma história militante nem que se pretende imparcial, mas que se assume como responsável. Mesmo não sendo imparcial, tenho de mostrar que aquilo que defendo e a minha perspectiva também estão inseridos na história. Temos de assumir que construímos a história dentro da história. Não há lugar fora da história para falar dela. A parcialidade tem de ser explicitada. Porque a militância é cega, não é? Tende a esquecer que a verdade é construída historicamente. Pode servir a objetivos legítimos, mas pode — e precisa — ser questionada.
22: No âmbito da história ambiental há quem critique, por exemplo, uma atitude militante por parte de pesquisadores que vêem em figuras como a de José Bonifácio precursores do ambientalismo contemporâneo, não é? Como a senhora se posiciona em relação a essas questões?
RH: Considero isso um anacronismo muito grande projetar o ambientalismo moderno sobre o reformismo ilustrado do séculos XVIII e XIX representado pelo José Bonifácio. Mas há duas perspectivas em relação a essa questão. A primeira é a importância de percebermos que dentro da nossa história houve outras tradições além das dominantes. Isso é muito importante. Creio que os autores que trabalham com essa perspectiva estão querendo quebrar com a idéia de que a sociedade brasileira só gerou práticas destrutivas. Acho importante recuperar personagens, práticas e pensamentos que fogem dessa generalização. Agora, o esforço de construir uma continuidade entre o passado e o presente é perigoso. Se construirmos a continuidade, acabamos por dar ao discurso ecológico um estatuto de verdade que se sobrepõe aos contextos históricos. O discurso ecológico não é necessariamente bom, positivo. Ele também pode ser fascista, sobretudo quando recorre a uma busca da origem. Quando a história é abordada com rigor e cuidado, essa busca de origem é sempre complicada. Na lógica da busca de origem, vou procurar ver o José Bonifácio pelo que imagino que deva ser o militante ambiental, e vou minimizar as enormes diferenças entre José Bonifácio e, por exemplo, o Fabio Feldman. O José Bonifácio é muito diferente de um ambientalista moderno. Para compreendê-lo é preciso estudar o reformismo ilustrado, o contexto de expansão dos grandes impérios europeus por todos os continentes…
P22: Como era a preocupação ambiental de gente como o José Bonifácio?
RH: Há estudos que mostram, por exemplo, como naquela época, no século XVIII, eles tiveram percepções muito interessantes. Como havia muitas ilhas que tinham ocupação colonial, e houve uma destruição muito rápida da vegetação nesses lugares, eles perceberam muito claramente quais as conseqüências dessa destruição, e podiam projetar isso para extensões maiores. Acho importante que nossa sociedade saiba, até para superar a idéia de que necessariamente vamos destruir tudo à nossa volta. Houve outras possibilidades na história, e há outras agora. Uma pergunta fundamental a ser feita é: “Por que o José Bonifácio perdeu?” E também: “Por que correntes de pensamento mais previdentes e responsáveis em relação ao meio ambiente têm sido pouco infl uentes?” Isso me interessa muito. Se houve alguns momentos da nossa história em que pessoas muito importantes, em postos de destaque, produziram um discurso a favor de poupar a natureza e da busca de formas sustentáveis de obter lucro, por que isso não vingou? O José Bonifácio tem textos, por exemplo, defendendo que fossem coibidas algumas práticas de caça às baleias. Ele percebeu os danos causados pela caça nos períodos de acasalamento.
P22: Há outros exemplos de defensores de uma relação menos predatória com a natureza na nossa história?
RH: Sem dúvida. Tenho estudado muito os anos 30, em que vários cientistas do Museu Nacional demonstravam uma impressionante preocupação com essa questão. Entre eles, Roquette-Pinto, Melo Leitão, e Alberto Sampaio. Eles tinham uma percepção muito clara da destruição da natureza, da necessidade da transformação de práticas destrutivas, e tiveram um destaque muito grande, uma aproximação com o governo Vargas muito importante. No entanto, o esforço deles fracassou, eles perderam. Com o desenvolvimentismo, eles perderam. Eles publicaram muitos trabalhos, empreenderam uma série de movimentos, aproximaram-se do governo e pressionaram pela adoção de políticas públicas. Na verdade, algumas eles conseguiram implementar, como o Código de Caça e Pesca, de 1934, e a criação de parques nacionais, formalizada pelo Vargas em 1937, por exemplo. Mas as vitórias foram relativamente poucas e pequenas e tanto o pensamento quanto a luta daqueles pesquisadores foram praticamente esquecidos. Acho importante tentar entender por que isso aconteceu.
22: É possível esboçar uma resposta para isso?
RH: Creio que, no caso dos cientistas do Museu Nacional, parte da explicação tem a ver com o autoritarismo com que eles conduziram as propostas. Eles se colocaram como grandes guias de uma, digamos, educação ambiental. Provavelmente, uma mudança real da relação da sociedade com a natureza teria de incorporar movimentos e clamores sociais mais amplos.
22: É justo a sociedade brasileira enxergar-se como especialmente destruidora da natureza, tendo em vista que, apesar de tudo, temos a maior floresta do mundo?
RH: Há um livro do Warren Dean, A Ferro e Fogo, que faz muito sucesso. Ele diz algo do tipo: “Olhe como os brasileiros são culpados, como são incompetentes, como destruíram a Mata Atlântica”. E, ao fi m do livro, ele fala da Amazônia: “Vejam bem o perigo, hoje em dia, de a Amazônia ser destruída”. Como se ele estivesse nos dando um atestado de incompetência. “Vocês destruíram a Mata Atlântica, e agora resta a Amazônia, que corre grande perigo diante dessa elite tão corrupta.” Mas a Europa destruiu tudo, eles não têm nada. Se passearmos pela França só veremos área agrícola, tudo agricultado, na Espanha idem e por aí vai. Mas creio que a auto-imagem da sociedade brasileira é de destruidora, mais que a dos europeus e americanos, por exemplo. Que a nossa elite é especialmente imediatista, egoísta e destruidora, não há como negar.
Regina Horta Duarte é uma das mais destacadas pesquisadoras de um novo ramo do conhecimento, a história ambiental. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Regina defende uma abordagem politizada do tema, mas alerta sobre os riscos de distorção e autoritarismo decorrentes de uma historiografia militante. Segundo ela, os desafios impostos pelas questões socioambientais exigem a superação das visões tradicionais que imperam nos dois extremos do debate: o das biociências e o das ciências sociais. “A história tem boas novas”, diz a estudiosa. E parte dessas “novidades” se refere a uma dimensão ainda pouco compreendida da diversidade que nos envolve: aquela que tem sido historicamente criada pelos homens em suas inúmeras formas de interpretação da natureza e de relação com o meio ambiente.
Por Flavio Lobo
PÁGINA 22: Como a senhora enxerga o papel do pensamento religioso na história da relação homem-natureza?
REGINA HORTA: A dimensão religiosa tem, sem dúvida, um papel importante nessa relação. Enxergo duas vertentes, e, para mim, nenhuma delas se mostra satisfatória. Há a idéia da Mãe Terra, de uma coisa meio mística, não necessariamente religiosa, algo do gênero ecomístico, do tipo “vou me misturar à natureza, vou sentir a água, o sol…” Não confio muito nessa visão, justamente porque a sociedade humana difere da natureza. Temos o estatuto cultural, criamos representações sobre a natureza e por isso podemos pensar sobre ela. Essa vertente mística pode ser prazerosa para as pessoas, mas ela não me seduz muito, inclusive por remeter à idéia de algo como, por exemplo, a “Gaia”, que está acima da história e da qual derivam verdades inquestionáveis. Por outro lado, há outra perspectiva religiosa, que é a perspectiva de que Deus criou o mundo… Na Bíblia, tudo é criado para o homem, e esse antropocentrismo é perigoso. Se a natureza é criada para nós, podemos dispor dela.
22: E quanto a modelos diferentes de pensamento religioso, como os das culturas indígenas?
RH: Eles têm uma história. Quando pensamos nos índios brasileiros, primeiro temos de pensar que há várias populações indígenas e que nem todas tiveram a mesma relação com a natureza. Cada uma construiu a sua. Ao longo do tempo, eles também mudaram muito. Penso duas coisas. Primeiro, que é importantíssimo que existam essas populações indígenas, com saberes e práticas diferentes. Assim como há a necessidade da biodiversidade, a diversidade cultural é muito valiosa. É essencial que existam outras formas de sociedade no Brasil, que essas populações sejam protegidas, que elas tenham direito à terra, que elas tenham possibilidade de manter seu modo de vida e sua cultura. Mas, ao mesmo tempo, em torno desse tema, há uma espécie de suspensão da crítica, como se tudo o que viesse dos índios fosse necessariamente bom. Vou dar um exemplo. Estudei muito a caça aos pássaros entre o fim do século XIX e o começo do XX, que foi uma hecatombe promovida para atender a demanda por penas para confecção de roupas e enfeites. E hoje tenho visto que uma das atividades dos índios em Minas Gerais tem sido o artesanato com pena.
22: E essa prática é aceita por serem índios?
RH: Muitas vezes, acho que sim. Tenho visto muito brinco de pena, colar de pena, minhas alunas todas enfeitadinhas com colares de pena. Outro dia houve um festival aqui na faculdade, e tinha índios vendendo artesanato. Aquele monte de brincos de pena, as coisas mais lindas, penas coloridas, penas pequenininhas. Perguntei de onde vinham as penas, eles me disseram que eram de arara e admitiram que, na verdade, não poderiam fazer aquilo. Perguntei se eles tinham matado muitas araras para fazer os brincos. A resposta de um deles foi: “Mas lá tem muita arara”. Ações desse tipo não são inócuas. Na discussão que atualmente acontece no Brasil, uma vertente, composta, sobretudo, por antropólogos, defende que as populações tradicionais vivem em harmonia com a natureza, e que é desnecessário retirá-los dos lugares onde vivem. Do outro lado, muitos biólogos afirmam que é preciso manter reservas sem a presença humana. Acho que os dois grupos têm razão, e que nenhum deles tem toda a razão. Para os biólogos, em geral, falta dar mais valor à diversidade cultural e aos direitos de certas populações. Já os antropólogos deveriam perceber que, se a retirada forçada das comunidades dos lugares onde vivem pode ser algo autoritário, a própria idéia de população tradicional também pode.
22: O que há de autoritário na defesa das populações tradicionais?
RH: Para começar há uma negação do tempo, da história. A aplicação da idéia de preservação a pessoas é muito complicada porque veta ou dificulta a liberdade de transformação. Também acho um equívoco imaginar que nessas sociedades não existem formas de autoritarismo, dominação, relações de poder. Não são sociedades? Então há, sim, transformação, conflitos, história, relações de poder… Portanto não dá para pensar que tudo o que eles façam será sempre, por princípio, compatível com a defesa do meio ambiente e com os melhores interesses da sociedade brasileira. O guará, por exemplo, é um pássaro gravemente ameaçado de extinção e bastante visado por algumas populações indígenas. Um amigo meu foi a uma reserva e descobriu que os índios dali estavam usando os guarás realmente para uma atividade muito insustentável: para a alimentação dos porcos. A questão ambiental é complexa porque não tem um lado só. Conciliar preservação ambiental e a defesa de culturas diferenciadas é um desafio que deve ser enfrentado. E acho que requer a superação de discursos mistificadores e autoritários que existem nos dois extremos da discussão.
22: Quais as origens do que hoje se define como “história ambiental”?
RH: A natureza não é um tema novo na historiografia. No Brasil, por exemplo, Sérgio Buarque de Holanda publicou Visões do Paraíso na década de 50 e, na minha opinião, é o melhor livro de história ambiental que já foi produzido por aqui. Mesmo em Raízes do Brasil, também do Sérgio Buarque, e em alguns trechos da obra do Caio Prado Júnior e do Capistrano de Abreu, há ótimos exemplos de abordagem da relação do homem com
o meio ambiente. Gilberto Freyre não é propriamente um historiador, mas Nordeste é um ensaio ambiental, digamos assim, sobre a região. Ele mesmo diz: “Este aqui é um ensaio ecológico impressionista”. Há uma transição historiográfica importante em relação ao tema nos escritos desses autores. Atualmente, desde a vinda do Warren Dean (historiador americano falecido em 1994) para o Brasil, formou-se uma geração de pesquisadores nessa área.
22: É possível identificar uma liderança mundial nessa área de estudo?
RH: É, sim. A chamada “história ambiental” que se assume com esse nome surgiu nos Estados Unidos, nos anos 70. A American Society for Environmental History (Sociedade Americana de História Ambiental) foi fundada em 1976, promove encontros anuais e é extremamente ativa. A equivalente européia surge nos anos 80, no Reino Unido, que é a sede, e conta com a participação de vários outros países, como a Itália e a Espanha. Já existe também uma sociedade latino-americana, a Sociedade Latino-Americana e Caribenha de História Ambiental (Solcha), de cujo conselho diretor eu participo. Nosso próximo congresso bianual, cuja organização eu estou coordenando, será em aqui em Belo Horizonte, entre 28 e 30 de maio de 2008. Temos 110 brasileiros que vão apresentar trabalhos, uns 30 americanos, vários mexicanos, colombianos, panamenhos, chilenos, costa-riquenhos… O que me agrada particularmente na Solcha é que há uma forte perspectiva política na história que é produzida. A questão da justiça social, das relações de poder e exploração, temas muito presentes na historiografi a latino-americana, também estão presentes na história ambiental.
22: Nesses eventos o debate se restringe aos historiadores da natureza?
RH: Não, haverá gente de diversas áreas. Além dos que trabalham mesmo com história ambiental, haverá outros que buscam interfaces, gente das bio e geociências, por exemplo. É muito fácil achar interfaces com história ambiental. A história ambiental é institucionalizada, sim. Nos últimos congressos da Anpuh (Associação Nacional de Professores Universitários de História), sempre há um grupo de trabalho sobre história da natureza. Mas trata-se de algo inicial. A metodologia é ainda muito imprecisa, eu acho. Nos encontros, percebem-se tipos muito diversos de perspectivas históricas. Existem algumas pessoas com visões mais deterministas, mais ligadas às áreas da geografi a, ou da geologia, e existem perspectivas mais sociais e políticas. É bem variado, a metodologia ainda não está bem defi nida e generalizada. E a qualidade dos trabalhos apresentados ao debate é também bastante desigual. Mas há muita coisa interessante.
22: Essa multidisciplinaridade é intrínseca à história ambiental ou só um sintoma da sua juventude como área do conhecimento?
RH: É um desafi o que precisa mesmo ser enfrentado pelos pesquisadores. Não dá para fazer história ambiental de qualidade sem um esforço de compreensão das ciências relacionadas ao tema. Isso difi culta o caminho do pesquisador, mas traz a possibilidade do diálogo e de alargamento das perspectivas, porque termina por abalar o antropocentrismo dos historiadores, defrontados com o fato de que nem tudo depende do homem, e, do outro lado, abala o cientifi cismo que impera nas ciências naturais.
22: Em relação à própria historiografia, especializações como a da história ambiental trazem que tipo de vantagem e de risco?
RH: Depende do jeito que se faz. Há uma quantidade de conhecimento enorme, do qual nenhuma pessoa dá conta sozinha. Cada vez mais a produção de conhecimento é coletiva, porque as pessoas não dão conta de acompanhar nem sequer a própria área do saber a que se dedicam. Creio ser necessária uma refl exão metodológica sobre questões básicas: sobre o que é a verdade, o que é o tempo, como é que o conhecimento histórico se forma e caminha, qual é o papel da história. Para que a história serve? Uma pergunta básica, que parece banal, mas é muito importante.
22: E para que serve a história?
RH: Creio que, inclusive, para nos dar boas novas – é o que falo para meus alunos. Podemos pensar, principalmente morando num lugar como o Brasil, que muitas vezes a história nos puxa para baixo: que o Brasil sempre foi corrupto, desorganizado, fadado ao fracasso, uma sociedade que não consegue guiar-se por um verdadeiro debate público. A história pode servir apenas para confi rmar isso, nos passar um atestado de incompetência, e de que nos aguarda um futuro quase inexorável de manutenção desse estado de coisas: de incapacidade de criar uma república verdadeira, efetiva, com cidadania, participação popular e justiça social. Mas a história também pode mostrar que, a cada momento da história, o futuro é algo a ser construído. Certamente há fatores de condições históricas. O homem não é absolutamente livre para criar o seu futuro. Mas existem possibilidades históricas diversas no nosso presente e, assim como no passado o futuro era indeterminado, nosso futuro será decidido, em grande parte, pelo que fi zermos e escolhermos, pela maneira como atuarmos. Se pensada como a identifi cação de estruturas determinantes às quais não se pode escapar, a história, a meu ver, não vale a pena.
22: Mas as visões da história apenas como acúmulo de fatos ou como explicitação de determinações inescapáveis ainda são as mais comuns, não?
RH: Provavelmente. Mas é preciso abordá-la de outra forma. Porque ou ela serve à vida ou ela não serve para nada. Servir à vida seria servir à esperança de transformação, ao demonstrar a possibilidade humana de criar sociedades absolutamente diversas. Houve uma época em que eu gostava muito de história antiga, e cheguei a estudá-la por alguns anos. Alguns autores, dos quais eu gostava especialmente, diziam que era impossível entender os valores de um ateniense do século V a.C. ou de alguém que vivia na República Romana, a partir dos nossos valores burgueses. A história nos dá a possibilidade de encontrar outros homens, inúmeras possibilidades sociais, evidências de que as coisas podem mudar — e que de fato mudam profundamente. É uma boa notícia, não é?
22: Mas não haveria um risco oposto ao da “história morta”, que projeta o passado sobre o futuro? Ao servir à vida, portanto ao presente, ela não pode se transformar em militância e adaptar o passado aos objetivos presentes?
RH: Há uma expressão de um filósofo de quem eu gosto muito, o Cornelius Castoriadis, que diz: “O que me interessa na história são os outros possíveis do homem”. O importante é esse encontro com o outro, com os outros possíveis do homem. Quero a história pelo que tem de transformador, pelo que ela me conta que possa transformar minha vida. Mas ao mesmo tempo não tenho o direito de projetar todos os meus desejos, os meus anseios, sobre esse passado, porque senão perco o mais importante, que são esses “outros homens”. Por exemplo, um pensador marxista pensa toda a história pela luta de classes. Ele estaria aplicando a categoria atual a toda a história da humanidade, quando na verdade é justamente o contrário o que se quer: a capacidade de perceber a alteridade, para que se possa relativizar as visões e certezas atuais, algo que pode, inclusive, nos tornar mais aptos a transformar a realidade. Assumir que a história é interessada não implica torná-la militante no sentido de ser interpretada para servir a uma causa política específica. A militância tende a comprovar apenas o que já se sabe, a respaldar e justificar idéias e ações preconcebidas. A atitude que defendo é quase
o contrário disso. Quero a história como possibilidade de renovar o meu mundo, a minha vida, e a sociedade em que vivo, mas justamente porque eu relativizo tudo isso que sou e penso, e descubro permanentemente que as identidades, pensamentos e projetos a que estamos acostumados não são os únicos possíveis. Mesmo que continue defendendo certos ideais ou certas práticas, dou a eles um estatuto histórico, relativo, questionável.
22: Trata-se de alargar o debate e aprofundar o questionamento?
RH: E de retirar da cena um plano metafísico, onde haveria algo fora do campo do questionamento. Tudo está sob questionamento. Você pode defender seus ideais, é claro, mas sem se esquecer de que são históricos. Não é uma história militante nem que se pretende imparcial, mas que se assume como responsável. Mesmo não sendo imparcial, tenho de mostrar que aquilo que defendo e a minha perspectiva também estão inseridos na história. Temos de assumir que construímos a história dentro da história. Não há lugar fora da história para falar dela. A parcialidade tem de ser explicitada. Porque a militância é cega, não é? Tende a esquecer que a verdade é construída historicamente. Pode servir a objetivos legítimos, mas pode — e precisa — ser questionada.
22: No âmbito da história ambiental há quem critique, por exemplo, uma atitude militante por parte de pesquisadores que vêem em figuras como a de José Bonifácio precursores do ambientalismo contemporâneo, não é? Como a senhora se posiciona em relação a essas questões?
RH: Considero isso um anacronismo muito grande projetar o ambientalismo moderno sobre o reformismo ilustrado do séculos XVIII e XIX representado pelo José Bonifácio. Mas há duas perspectivas em relação a essa questão. A primeira é a importância de percebermos que dentro da nossa história houve outras tradições além das dominantes. Isso é muito importante. Creio que os autores que trabalham com essa perspectiva estão querendo quebrar com a idéia de que a sociedade brasileira só gerou práticas destrutivas. Acho importante recuperar personagens, práticas e pensamentos que fogem dessa generalização. Agora, o esforço de construir uma continuidade entre o passado e o presente é perigoso. Se construirmos a continuidade, acabamos por dar ao discurso ecológico um estatuto de verdade que se sobrepõe aos contextos históricos. O discurso ecológico não é necessariamente bom, positivo. Ele também pode ser fascista, sobretudo quando recorre a uma busca da origem. Quando a história é abordada com rigor e cuidado, essa busca de origem é sempre complicada. Na lógica da busca de origem, vou procurar ver o José Bonifácio pelo que imagino que deva ser o militante ambiental, e vou minimizar as enormes diferenças entre José Bonifácio e, por exemplo, o Fabio Feldman. O José Bonifácio é muito diferente de um ambientalista moderno. Para compreendê-lo é preciso estudar o reformismo ilustrado, o contexto de expansão dos grandes impérios europeus por todos os continentes…
P22: Como era a preocupação ambiental de gente como o José Bonifácio?
RH: Há estudos que mostram, por exemplo, como naquela época, no século XVIII, eles tiveram percepções muito interessantes. Como havia muitas ilhas que tinham ocupação colonial, e houve uma destruição muito rápida da vegetação nesses lugares, eles perceberam muito claramente quais as conseqüências dessa destruição, e podiam projetar isso para extensões maiores. Acho importante que nossa sociedade saiba, até para superar a idéia de que necessariamente vamos destruir tudo à nossa volta. Houve outras possibilidades na história, e há outras agora. Uma pergunta fundamental a ser feita é: “Por que o José Bonifácio perdeu?” E também: “Por que correntes de pensamento mais previdentes e responsáveis em relação ao meio ambiente têm sido pouco infl uentes?” Isso me interessa muito. Se houve alguns momentos da nossa história em que pessoas muito importantes, em postos de destaque, produziram um discurso a favor de poupar a natureza e da busca de formas sustentáveis de obter lucro, por que isso não vingou? O José Bonifácio tem textos, por exemplo, defendendo que fossem coibidas algumas práticas de caça às baleias. Ele percebeu os danos causados pela caça nos períodos de acasalamento.
P22: Há outros exemplos de defensores de uma relação menos predatória com a natureza na nossa história?
RH: Sem dúvida. Tenho estudado muito os anos 30, em que vários cientistas do Museu Nacional demonstravam uma impressionante preocupação com essa questão. Entre eles, Roquette-Pinto, Melo Leitão, e Alberto Sampaio. Eles tinham uma percepção muito clara da destruição da natureza, da necessidade da transformação de práticas destrutivas, e tiveram um destaque muito grande, uma aproximação com o governo Vargas muito importante. No entanto, o esforço deles fracassou, eles perderam. Com o desenvolvimentismo, eles perderam. Eles publicaram muitos trabalhos, empreenderam uma série de movimentos, aproximaram-se do governo e pressionaram pela adoção de políticas públicas. Na verdade, algumas eles conseguiram implementar, como o Código de Caça e Pesca, de 1934, e a criação de parques nacionais, formalizada pelo Vargas em 1937, por exemplo. Mas as vitórias foram relativamente poucas e pequenas e tanto o pensamento quanto a luta daqueles pesquisadores foram praticamente esquecidos. Acho importante tentar entender por que isso aconteceu.
22: É possível esboçar uma resposta para isso?
RH: Creio que, no caso dos cientistas do Museu Nacional, parte da explicação tem a ver com o autoritarismo com que eles conduziram as propostas. Eles se colocaram como grandes guias de uma, digamos, educação ambiental. Provavelmente, uma mudança real da relação da sociedade com a natureza teria de incorporar movimentos e clamores sociais mais amplos.
22: É justo a sociedade brasileira enxergar-se como especialmente destruidora da natureza, tendo em vista que, apesar de tudo, temos a maior floresta do mundo?
RH: Há um livro do Warren Dean, A Ferro e Fogo, que faz muito sucesso. Ele diz algo do tipo: “Olhe como os brasileiros são culpados, como são incompetentes, como destruíram a Mata Atlântica”. E, ao fi m do livro, ele fala da Amazônia: “Vejam bem o perigo, hoje em dia, de a Amazônia ser destruída”. Como se ele estivesse nos dando um atestado de incompetência. “Vocês destruíram a Mata Atlântica, e agora resta a Amazônia, que corre grande perigo diante dessa elite tão corrupta.” Mas a Europa destruiu tudo, eles não têm nada. Se passearmos pela França só veremos área agrícola, tudo agricultado, na Espanha idem e por aí vai. Mas creio que a auto-imagem da sociedade brasileira é de destruidora, mais que a dos europeus e americanos, por exemplo. Que a nossa elite é especialmente imediatista, egoísta e destruidora, não há como negar.
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