A religião trata das coisas sagradas, mas ajuda o homem a lidar com o aqui e agora. O avanço da ciência não anulou a força das crenças que agora encaram o desafio de responder à crise ambiental
Por Flavia Pardini
Charles Darwin consumiu mais de duas décadas entre a famosa viagem do Beagle e a publicação de A Origem das Espécies, livro em que expôs a teoria da seleção natural e germinou a idéia de que o homem descende de um quadrúpede cabeludo, com orelhas pontudas e uma longa cauda. Era 1859, vigia na Inglaterra a crença de que homem e natureza eram obra do Criador, e Darwin provavelmente sabia o impacto que sua teoria causaria. No século seguinte, estudiosos apontaram a teoria da evolução como a responsável por “desencantar o mundo”.
Mesmo tendo retirado os espíritos do imaginário humano, a ciência não anulou a religião – quase 150 anos depois, vicejam em todas as partes do globo as mais diversas crenças, com os mais diferentes impactos sobre a vida dos homens e o planeta. Parte integrante da cultura humana, a religião não passa incólume diante do enorme desafio ambiental nesse início de século XXI. Cidades submersas com a subida do nível do mar, clima subvertido com o rompimento de correntes oceânicas, enormes deslocamentos humanos, extinção em massa de animais e plantas – o cenário é apocalíptico e a reação, rápida: Deus nos livre.
Para evitar engano, é bom lembrar que 2.500 cientistas trabalharam ao longo de décadas e, em novembro, anunciaram a síntese de suas conclusões sobre a participação do homem nas mudanças climáticas, seu efeito para o planeta e os seres vivos, e as ações necessárias para evitar imagens dignas do apocalipse. O recado da ciência está dado: é preciso agir, buscar tecnologias ainda desconhecidas e usar as que se tem à mão. Para livrar-nos do mal, o expediente será humano.
Mas fica a pergunta. Pode a religião, produto primeiro e longevo da cultura humana, contribuir para a tarefa à frente?
ESTA VIDA, ESTE MUNDO
As lideranças religiosas parecem acreditar que sim. Basta ver os movimentos recentes. O Papa Bento XVI, chefe da Igreja Católica – que congrega pouco mais de um bilhão de pessoas ao redor do mundo -, pede aos jovens que ajudem a “salvar o planeta”, enquanto o Vaticano realiza conferências sobre aquecimento global e anuncia que pretende instalar painéis para gerar energia solar. O líder ortodoxo Bartolomeu reúne personalidades de várias áreas para uma excursão pela Amazônia para chamar a atenção para a questão ambiental e declara que a degradação ambiental é pecado. Em suas andanças pelo mundo, o dalai-lama participa de eventos sobre sustentabilidade. Dezesseis líderes religiosos australianos e parte dos evangélicos americanos começam a pressionar seus governos, os dois únicos a ficar de fora do Protocolo de Kyoto.
No Brasil, a Campanha da Fraternidade promovida pela Igreja Católica neste ano tem como tema “Amazônia, vida e missão neste chão”. E, lembra dom Pedro Luiz Stringhini, bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, esta não é a primeira a abordar o meio ambiente. Em 1979, a campanha teve o mote “Preserve o que é de todos” e, em 2004, “Água, fonte da vida”. “A questão ambiental é uma preocupação da humanidade”, diz dom Pedro. “Espera-se que não haja um cidadão que não esteja preocupado com isso”. Assim, preocupa-se também a Igreja.
Sessenta e quatro por cento dos brasileiros se dizem católicos, segundo pesquisa realizada pelo Datafolha em março deste ano. Outros 17% declaram-se evangélicos pentecostais – fiéis da Assembléia de Deus, Congregação Cristã no Brasil, Igreja Universal do Reino de Deus, entre outras – e 5%, evangélicos não-pentecostais – luteranos, batistas, metodistas, presbiterianos, anglicanos e congregacionais. Sete por cento se dividem entre judaísmo, kardecismo, espiritismo, umbanda e candomblé. Apenas 7% afirmam não adotar qualquer religião.
Para as religiões que mais crescem em solo brasileiro, as evangélicas, a ênfase tradicional é apocalíptica e a preocupação não como que se passa na Terra, mas coma evangelização. “Há um certo desprezo pelos problemas do mundo”, conta Ricardo Mariano, pesquisador da sociologia da religião da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “A idéia é evangelizar e ter uma vida correta para poder ser salvo e apressar a vinda de Cristo.” Nas últimas décadas, entretanto, os evangélicos passaram a se interessar por “esta vida, este mundo”, e a focar nos problemas efetivos do homem. “No momento em que se fala em aquecimento global, no crescente problema da água, as igrejas reagem”, diz Mariano. “Mas são as lideranças, as ações concretas são poucas.”
Uma delas é a Oikos – Ecologia e Sociedade, uma organização não governamental criada há dois anos por Éser Pacheco, pastor-colaborador da Segunda Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, com o objetivo de ajudar os cristãos a responder ao desafio ambiental. “Estamos voltados ao público evangélico porque falamos sua linguagem e porque é o que tem chegado mais atrasado nessa questão”, diz Pacheco. Segundo ele, a teologia evangélica é uma teologia de prosperidade – a fé em Deus como forma de progredir na vida -, com grande apelo para as faixas de renda mais baixas da população. Nas ações de sensibilização ecológica promovidas pela Oikos, admite o pastor, o público é a classe média.
RAÍZES RELIGIOSAS
Independentemente de a quem se destina o recente discurso ecológico das igrejas, as mensagens religiosas estão inculcadas na grande maioria dos seres humanos – atualmente, mais de 85% dos habitantes do planeta pertencem a alguma religião – desde tempos imemoriais. E, com elas, vêm visões de mundo que ajudaram a moldar as sociedades humanas e, por conseqüência, o ambiente a seu redor.
Ao contrário das religiões orientais, que consideram o divino como inerente ao ser humano, as religiões ocidentais são dualistas: separam o material do espiritual, o ser humano da natureza. Para o historiador Lynn White, que em 1967 escreveu o influente artigo “As raízes históricas de nossa crise ecológica”, “a fantástica história da criação” herdada do judaísmo pelo cristianismo dominou a visão do Ocidente sobre a natureza e levou à crise ambiental.
Escreveu White: “Em estágios graduais, um Deus amoroso e todo-poderoso criou a luz e a escuridão, os corpos celestiais, a terra e todas as suas plantas, animais, pássaros e peixes. Finalmente, Deus criou Adão e, como se tivesse pensado de novo, Eva, para evitar que o homem se sentisse só. O homem nomeou todos os animais, estabelecendo, portanto, seu domínio sobre eles. Deus planejou tudo isso explicitamente para o benefício e o governo do homem: nenhum item na criação física teve qualquer outra função a não ser servir os objetivos do homem. E, embora o corpo do homem seja feito de argila, ele simplesmente não é parte da natureza: foi feito à imagem de Deus”.
Com tal visão, segundo White, o cristianismo substituiu o paganismo, em que cada elemento natural – árvore, rio ou montanha – tinha seu espírito guardião, acessível ao homem, mas diferente dele. Qualquer modificação no mundo natural exigia, a priori, pacificar tais espíritos. Retirados os espíritos, e com a ciência e a tecnologia para modificar o mundo natural, o homem botou mãos à obra. “Por quase dois milênios, missionários cristãos vêm cortando florestas sagradas”, afirmou White. No “Novo Mundo” catequizado pelos jesuítas, não foi diferente.
A única exceção foi São Francisco de Assis, o santo dos animais, a quem White chama de “o maior radical na história do Cristianismo desde Cristo”. “A chave para entender São Francisco é sua crença na virtude da humildade, não meramente para o indivíduo, mas para o homem como espécie”, escreveu o historiador. “São Francisco tentou depor o homem de sua monarquia sobre a criação e estabelecer a democracia de todas as criaturas de Deus.”
NADA É UM MONOLITO
A visão antropocêntrica descrita por White aparece no relato bíblico do Gênese na forma do mandato divino para que os homens sujeitem e dominem a natureza. Mas, no mesmo texto, há outro mandato, esse envolvendo o binômio cultivar-e-guardar. “Há duas possibilidades de interpretação”, explica o teólogo Haroldo Reimer, professor de Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás. “Por conta da sintonia da interpretação bíblica com o projeto da modernidade, preferiu-se o domínio da subjugação da natureza.” Diante da crise ambiental, entretanto, é possível ler de outra maneira, enfatizando o trabalho para resguardar o ecossistema para as futuras gerações, acredita o teólogo.
Para Reimer, os textos sagrados são pressupostos e a interpretação depende das perguntas que se quer fazer a eles. “Hoje, as perguntas fundamentais são ecológicas”, garante. Assim como por muito tempo os textos sagrados não foram questionados quanto ao meio ambiente, os códigos jurídicos e outros fundamentos da sociedade ocidental também não o foram, lembra o teólogo.
A reinterpretação é o que pratica o pastor Éser Pacheco, da Oikos. “Trabalhamos uma leitura bíblica diferente a partir de elementos que estão lá”, conta. “Na narrativa do Éden, há uma perspectiva de harmonia com a natureza. Se há opressão, é conseqüência da falibilidade humana.” Uma leitura que vem a calhar com as evidências científicas de que as atividades humanas estão no centro do fenômeno do aquecimento global, por exemplo.
A tendência de reinterpretar os textos sagrados de acordo com as necessidades do momento mostra que as religiões são adaptáveis, mas há também quem veja na religião um fator de adaptação, em particular, ao meio ambiente.
ALÉM DOS GENES
Embora a Teoria da Evolução tenha desencantado de vez o mundo, ela recentemente se voltou para a cultura e, em particular a religião, para explicar o homem em relação ao ambiente natural.
“Da perspectiva evolucionária, pode-se dizer que, se a mente humana é uma adaptação, um produto da seleção natural, então a função das crenças é motivar o comportamento adaptativo”, diz David Sloan Wilson, professor dos departamentos de Biologia e Antropologia da Binghamton University e autor de Darwin’s Cathedral, Evolution, Religion, and the Nature of Society. “É por isso que há tantas crenças falsas, que não correspondem ao mundo real, mas que fazem que nos comportemos de maneira bem-sucedida no mundo real. Esse é o segredo para entender a religião.”
A corrente que Wilson defende dentro da Biologia é a de que a adaptação dos seres humanos ao ambiente envolve não só os genes, mas também a cultura. O apelo das religiões a tantas pessoas deve-se, em parte, à promessa de mudança transformativa – o caminho para a salvação. “Um problema com o pensamento evolucionista é que ele dá a impressão de que não podemos mudar nossos genes e, portanto, estamos fadados a nos comportar do mesmo jeito sempre”, diz o biólogo. “Mas evolução significa mudança, o segredo é que ela vai além da evolução genética e aí entram a cultura e outros processos, como os psicológicos. E fazem toda a diferença.”
A pesquisa de Wilson e outros em busca de uma explicação para a religião em relação ao meio ambiente é um dos últimos capítulos de uma longa história de estudos para compreender os fenômenos religiosos, boa parte desenrolada no âmbito das ciências sociais e com foco em populações tradicionais. No século XIX, os antropólogos cunharam a expressão “animismo” para designar as religiões então consideradas “primitivas” por acreditarem no espírito de elementos do mundo natural. Para a mente ocidental, tais religiões eram perigosas, pois consideravam sagrados a ordem criada e seus elementos, e não o criador. Por isso, previam os estudiosos, estavam fadadas a desaparecer à medida que a civilização ocidental se expandisse. No Brasil, elas sobrevivem principalmente nas crenças afro-brasileiras.
Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, escrito em 1912, o francês Émile Durkheim, um dos pais da Sociologia, apresentou a religião como elemento organizador da vida social, que ajuda a definir os grupos sociais e o comportamento de seus integrantes – uma representação simbólica da sociedade. Para Durkheim, “religião é um sistema unificado de crenças e práticas relacionadas a coisas sagradas, ou seja, coisas separadas e proibidas – crenças e práticas essas que unem em uma única comunidade moral chamada Igreja todos aqueles que aderem a elas”.
A linha inaugurada por Durkheim foi seguida por outros pesquisadores, sempre destacando a função da religião. Ao estudar os Tsembaga Maring, povo tradicional de Papua Nova Guiné, o antropólogo americano Roy Rappaport aprofundou a teoria funcionalista ao defender que o ritual dos Maring envolvendo porcos domesticados mediava a interação com o meio ambiente e garantia a sobrevivência do grupo. Em The Future Eaters, uma história ecológica da Australásia, o paleontólogo Tim Flannery afirma que, para os aborígenes, a religião “codifica a sabedoria ecológica”, mais até do que a tecnologia.
A ERA DO INDIVIDUALISMO
Os funcionalistas, entretanto, foram criticados por reduzir a complexidade religiosa à relação com o meio ambiente e, ao longo do século XX, emergiram outras explicações para a persistência das religiões, sejam elas “primitivas”, sejam “avançadas”. Do lado das ciências sociais, a teoria das escolhas racionais, oriunda da Economia, vê a religião como uma troca entre as pessoas e seres sobrenaturais, envolvendo bens escassos, como chuva durante um período de seca, ou impossíveis, como a vida após a morte.
Nas ciências naturais, tomou corpo a idéia da religião como subproduto de outras adaptações. Uma explicação é que, ao desenvolver a consciência de si mesmo e antever o próprio fim, o homem lança mão da religião para aplacar o medo da morte – uma adaptação secundária à evolução da consciência. Um dos expoentes dessa visão, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, é famoso por seus ataques à religião – o mais recente deles no livro Deus – Um Delírio (God’s Delusion) – e por desenvolver o conceito de meme, em que a cultura é vista como um organismo parasita que explora seu anfitrião humano.
Tais teorias prosperaram especialmente na segunda metade do século XX, época de ouro do capitalismo laissez-faire, em sintonia com idéia de que o bem comum deriva dos esforços na busca de benefícios individuais. A linha desenvolvida por Wilson tenta resgatar os grupos sociais como unidade adaptativa – em lugar do indivíduo – e a religião como um sistema moral que fomenta a cooperação dentro dos grupos para aumentar sua capacidade de adaptação.
Os rituais religiosos, nesse contexto, são vistos como um meio de comunicar, a observadores internos e externos, o comprometimento de cada indivíduo com os valores morais do grupo e de evitar o fenômeno do carona – em que o indivíduo se beneficia mesmo sem comprometer-se com o grupo. Para Richard Sosis, antropólogo da Universidade de Connecticut, um exemplo é o custoso ritual dos judeus ortodoxos, que se vestem de preto mesmo sob altas temperaturas e rezam três vezes ao dia.
NADA DE MAGIA
A visão de evolucionistas como Wilson é um sopro de esperança em uma época em que a cooperação se faz urgente para enfrentar o desafio ambiental global. Mas esbarra em limitações. “Somos desenhados para funcionar cooperativamente em grupos pequenos justamente porque o controle social é fácil, se alguém tenta se aproveitar, é controlado pelos demais”, afirma Wilson. “Se vivemos em uma aldeia global com muitas nações, corporações, religiões, é preciso que haja um equilíbrio de forças. Temos as Nações Unidas e outras instituições, mas estamos muito longe disso.”
A religião, em uma visão global em que a cooperação é essencial para manter as condições naturais do planeta, parece perder seus poderes. “Não se deve levar longe demais a idéia de que a religião determina a relação do homem com a natureza”, alerta o ecossocioeconomista Ignacy Sachs. Para ele, o importante é analisar como as diferentes culturas aproveitam os recursos e o meio ambiente. “Ao mesmo tempo, é uma análise da engenhosidade humana e que tem um efeito pedagógico extraordinário dentro da problemática do desenvolvimento sustentável”, diz.
“O grande desafio é encarar as distintas interfaces entre biologia e cultura”, concorda Paul Little, antropólogo da Universidade de Brasília. “Não existe resposta mágica e esse campo ainda é pouco explorado devido à divisão entre as ciências exatas e as sociais.”
Soluções mágicas ou místicas para a questão ambiental, por outro lado, ultrapassam o campo da percepção racional e assumem um caráter quase religioso, alerta Ignacy Sachs, referindo-se à Deep Ecology, ou Ecologia Profunda.
O termo “Deep Ecology” foi cunhado pelo filósofo norueguês Arne Nœss em 1972 para expressar a idéia de que a natureza tem valor intrínseco, ou seja, separado de sua utilidade para os seres humanos, ensina a Enciclopédia de Religião e Natureza, editada em 2005 nos EUA. Ao defender que todas as formas de vida tenham a possibilidade de florescer e cumprir seu destino evolucionário, a Deep Ecology assume o biocentrismo como valor central, postura contrária às grandes religiões ocidentais que colocam o homem como medida de tudo.
Entre as influências científicas da Deep Ecology está a Teoria de Gaia, desenvolvida por James Lovelock nos anos 70 e que apresenta o planeta Terra como um sistema complexo e interativo que pode ser visto como um único organismo vivo. Controversa desde o princípio, a teoria, assim como a Deep Ecology, foi influente na formação de Partidos Verdes em vários países e permeia o discurso ambientalista. “É quase uma tese mística que atribui à Terra a capacidade de auto-regulação”, afirma Sachs. Mais recentemente, no livro A Vingança de Gaia, Lovelock atribui ao planeta também a capacidade de se vingar dos homens por meio do aquecimento global. Na visão de Sachs, a Deep Ecology, informada pela Teoria de Gaia, “passa a ser radicalmente anti-humanista”.
CHUVA DENTRO DE CASA
Abandonar a dimensão humana soa tão pouco natural quanto a visão radical antropocêntrica de que a natureza existe apenas para servir ao homem. Que o diga Waldemar Boff, que há décadas trabalha com populações carentes na Baixada Fluminense, enfatizando a redução da pobreza e as questões ambientais. “A religião tem um lado que é uma válvula de escape, como dizia Marx, mas é também um espaço de humanização”, conta Waldemar. “Nosso público são os mais excluídos, para quem a religião não é uma questão teórica. Deus é tão natural quanto o sol e a terra e o meio ambiente se reduz a coisas muito concretas, água, esgoto, a chuva dentro de casa.”
Há anos trabalhando com a ONG Água Doce, Waldemar recentemente deu início ao Suruí 2050, um projeto de longo prazo, intergeracional, que visa mudar as condições de vida de cerca de mil famílias que ocupam uma área de Mata Atlântica na região da Bacia do Rio Suruí, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. A idéia é informar e conscientizar a população em relação a questões sociais, ambientais e econômicas.
Waldemar, que como o irmão famoso, o teólogo Leornardo Boff, teve formação católica, acredita que as igrejas chegaram muito tarde ao discurso ambientalista. “As confissões estão preocupadas em converter os outros, são triunfalistas”, afirma. “O papel que existe é para a religião, cujo sentido original é o de religar o homem com o todo”. Ou, quem sabe, manter o encanto que o homem sempre viu no mundo.
O DEUS EM VOCÊ
É impossível manter a religião sem manter a natureza, porque os deuses são a natureza. Oxum é a deusa da água doce. Xangô, deus do trovão. Iansã comanda os raios e as tempestades. Iemanjá é a senhora dos mares. Oxalá, o pai da criação. “O indivíduo é parte da natureza, recebe os orixás dentro de sua cabeça, em seu sangue. Deus passa a fazer parte de você”, diz a antropóloga Rita Amaral. Por isso, há extremo respeito às forças naturais.
Trazido da África, o candomblé “inicialmente significava a ligação afetiva e mágica com o mundo africano”, do qual os escravos haviam sido arrancados, conta o sociólogo Reginaldo Prandi no livro Herdeiras do Axé. No Nordeste do século XIX, o terreiro era a reconstrução simbólica da comunidade africana perdida, onde os escravos podiam se distanciar culturalmente do mundo dominado pelo opressor branco. Mas cresceu nos próprios escravos a necessidade de se integrar no novo país. “O candomblé nasce católico quando o negro precisa ser também brasileiro”, escreve Prandi.
Apesar do sincretismo, o candomblé não adotou a ética católica do Bem e do Mal, a idéia de pecado ou de salvação. É uma religião que afirma o mundo e reorganiza seus valores, segundo Prandi. A ligação e o respeito pela natureza não significa desprezo pelo humano – pelo contrário, o bom filho-de-santo precisa realizar todos os seus desejos para que seu orixá se torne mais forte. “Aceitando o mundo como ele é, o candomblé aceita a humanidade, situando-a no centro do universo, e apresenta-se como religião especialmente dotada para a sociedade narcisista e egoísta em que vivemos”.
A VIDA EM TODAS AS COISAS
“O ser humano é a natureza, nós somos a vida da Terra”, diz a Monja Coen, fundadora da Comunidade Zen Budista de São Paulo. “Toda vida do céu e da terra é uma jóia arredondada, não há dentro nem fora. Somos a vida dessa jóia, não viemos de fora nem vamos para fora”.
Embora o ser humano seja a natureza, “nossa maravilhosa mente” nos separa dela, admite a monja. A partir de elementos naturais, o homem desenvolveu meios para se locomover, vestir, morar, que ficaram muito elaborados. “Esquecemos de onde as coisas vêm e quem somos nós”, diz. “Nós mudamos o meio ambiente e agora ele é também de concreto, de asfalto, com automóveis, plástico. Cuidar dele não quer dizer apenas preservar as árvores e os animais, tem um ser humano aqui”.
Para o zenbudismo, a maneira de se reconectar é por meio da prática da meditação. “Buda é aquele que acorda para a verdade de que somos a vida da Terra”, ensina a monja. “Todos temos a condição de atingir a iluminação, é uma ação constante, olhar e ver com profundidade, ver que estamos em uma teia de relacionamentos”. Fundamental para isso é a educação, desde a mais tenra infância, para formar as futuras gerações. “As religiões têm um papel muito importante, ajudam a fazer a mudança de consciência”, diz Monja Coen. “Ou ganhamos todos ou perdemos todos”.
A idéia de uma vida infinita que vibra através de todas as manifestações também é a base da Vedanta, escola filosófica originada na Índia. O ser humano, entretanto, é a manifestação de mais alto nível. “A natureza é a mãe divina, que dá os cinco elementos essenciais para qualquer tipo de vida: ar, espaço, água, temperatura e a terra”, afirma o Swami Nirmalatmananda, monge residente da Ordem Ramakrishna no Brasil. “A religião ensina o ser humano a ser não-egoísta ao máximo. Nesse processo, ele aprende a importância da natureza, de cuidar de todas as coisas”. É por isso que na Índia os animais são respeitados, em especial as vacas, “que oferecem todo o tipo de produto para uma vida saudável, sem que seja preciso matar nenhuma coisa”, explica o swami. “A vaca é parte da família”.
Evitar ao máximo os danos a qualquer ser vivo é o que prega o jainismo, uma das religiões mais antigas do mundo, também originária da Índia. Os adeptos praticam o vegetarianismo e cobrem a boca com máscaras.
DOS TEMPLOS PARA O MERCADO DE AÇÕES
Nos Estados Unidos, lugar de pregar não são só os templos e o fenômeno do “acionista religioso” chegou até na mídia. Patrícia Daly, da ordem Sisters of Saint Dominic of Caldwell, foi personagem central de uma reportagem do The New York Times em agosto sobre o ativismo socioambiental de organizações religiosas. O fundo de pensão da ordem dominicana, por exemplo, detém ações da Exxon Mobil e a irmã Daly escreve as resoluções apresentadas aos acionistas para pressionar a empresa a se posicionar quanto ao aquecimento global. Esse ano, 31,1% dos acionistas apoiaram uma resolução exigindo que a administração da Exxon adote metas quantitativas para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa.
A irmã Daly não atua só na Exxon, nem está sozinha. O Interfaith Center on Coporate Responsibility (ICCR), por exemplo, congrega 275 investidores institucionais ligados a comunidades religiosas e apresenta cerca de 200 resoluções por ano nas empresas das quais detêm ações. “Os integrantes do ICCR usam o investimento religioso e outros recursos para mudar políticas corporativas danosas ou injustas, trabalhando para paz, justiça econômica e responsabilidade pela Terra”, diz o website da entidade.
A religião trata das coisas sagradas, mas ajuda o homem a lidar com o aqui e agora. O avanço da ciência não anulou a força das crenças que agora encaram o desafio de responder à crise ambiental
Por Flavia Pardini
Charles Darwin consumiu mais de duas décadas entre a famosa viagem do Beagle e a publicação de A Origem das Espécies, livro em que expôs a teoria da seleção natural e germinou a idéia de que o homem descende de um quadrúpede cabeludo, com orelhas pontudas e uma longa cauda. Era 1859, vigia na Inglaterra a crença de que homem e natureza eram obra do Criador, e Darwin provavelmente sabia o impacto que sua teoria causaria. No século seguinte, estudiosos apontaram a teoria da evolução como a responsável por “desencantar o mundo”.
Mesmo tendo retirado os espíritos do imaginário humano, a ciência não anulou a religião – quase 150 anos depois, vicejam em todas as partes do globo as mais diversas crenças, com os mais diferentes impactos sobre a vida dos homens e o planeta. Parte integrante da cultura humana, a religião não passa incólume diante do enorme desafio ambiental nesse início de século XXI. Cidades submersas com a subida do nível do mar, clima subvertido com o rompimento de correntes oceânicas, enormes deslocamentos humanos, extinção em massa de animais e plantas – o cenário é apocalíptico e a reação, rápida: Deus nos livre.
Para evitar engano, é bom lembrar que 2.500 cientistas trabalharam ao longo de décadas e, em novembro, anunciaram a síntese de suas conclusões sobre a participação do homem nas mudanças climáticas, seu efeito para o planeta e os seres vivos, e as ações necessárias para evitar imagens dignas do apocalipse. O recado da ciência está dado: é preciso agir, buscar tecnologias ainda desconhecidas e usar as que se tem à mão. Para livrar-nos do mal, o expediente será humano.
Mas fica a pergunta. Pode a religião, produto primeiro e longevo da cultura humana, contribuir para a tarefa à frente?
ESTA VIDA, ESTE MUNDO
As lideranças religiosas parecem acreditar que sim. Basta ver os movimentos recentes. O Papa Bento XVI, chefe da Igreja Católica – que congrega pouco mais de um bilhão de pessoas ao redor do mundo -, pede aos jovens que ajudem a “salvar o planeta”, enquanto o Vaticano realiza conferências sobre aquecimento global e anuncia que pretende instalar painéis para gerar energia solar. O líder ortodoxo Bartolomeu reúne personalidades de várias áreas para uma excursão pela Amazônia para chamar a atenção para a questão ambiental e declara que a degradação ambiental é pecado. Em suas andanças pelo mundo, o dalai-lama participa de eventos sobre sustentabilidade. Dezesseis líderes religiosos australianos e parte dos evangélicos americanos começam a pressionar seus governos, os dois únicos a ficar de fora do Protocolo de Kyoto.
No Brasil, a Campanha da Fraternidade promovida pela Igreja Católica neste ano tem como tema “Amazônia, vida e missão neste chão”. E, lembra dom Pedro Luiz Stringhini, bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, esta não é a primeira a abordar o meio ambiente. Em 1979, a campanha teve o mote “Preserve o que é de todos” e, em 2004, “Água, fonte da vida”. “A questão ambiental é uma preocupação da humanidade”, diz dom Pedro. “Espera-se que não haja um cidadão que não esteja preocupado com isso”. Assim, preocupa-se também a Igreja.
Sessenta e quatro por cento dos brasileiros se dizem católicos, segundo pesquisa realizada pelo Datafolha em março deste ano. Outros 17% declaram-se evangélicos pentecostais – fiéis da Assembléia de Deus, Congregação Cristã no Brasil, Igreja Universal do Reino de Deus, entre outras – e 5%, evangélicos não-pentecostais – luteranos, batistas, metodistas, presbiterianos, anglicanos e congregacionais. Sete por cento se dividem entre judaísmo, kardecismo, espiritismo, umbanda e candomblé. Apenas 7% afirmam não adotar qualquer religião.
Para as religiões que mais crescem em solo brasileiro, as evangélicas, a ênfase tradicional é apocalíptica e a preocupação não como que se passa na Terra, mas coma evangelização. “Há um certo desprezo pelos problemas do mundo”, conta Ricardo Mariano, pesquisador da sociologia da religião da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “A idéia é evangelizar e ter uma vida correta para poder ser salvo e apressar a vinda de Cristo.” Nas últimas décadas, entretanto, os evangélicos passaram a se interessar por “esta vida, este mundo”, e a focar nos problemas efetivos do homem. “No momento em que se fala em aquecimento global, no crescente problema da água, as igrejas reagem”, diz Mariano. “Mas são as lideranças, as ações concretas são poucas.”
Uma delas é a Oikos – Ecologia e Sociedade, uma organização não governamental criada há dois anos por Éser Pacheco, pastor-colaborador da Segunda Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, com o objetivo de ajudar os cristãos a responder ao desafio ambiental. “Estamos voltados ao público evangélico porque falamos sua linguagem e porque é o que tem chegado mais atrasado nessa questão”, diz Pacheco. Segundo ele, a teologia evangélica é uma teologia de prosperidade – a fé em Deus como forma de progredir na vida -, com grande apelo para as faixas de renda mais baixas da população. Nas ações de sensibilização ecológica promovidas pela Oikos, admite o pastor, o público é a classe média.
RAÍZES RELIGIOSAS
Independentemente de a quem se destina o recente discurso ecológico das igrejas, as mensagens religiosas estão inculcadas na grande maioria dos seres humanos – atualmente, mais de 85% dos habitantes do planeta pertencem a alguma religião – desde tempos imemoriais. E, com elas, vêm visões de mundo que ajudaram a moldar as sociedades humanas e, por conseqüência, o ambiente a seu redor.
Ao contrário das religiões orientais, que consideram o divino como inerente ao ser humano, as religiões ocidentais são dualistas: separam o material do espiritual, o ser humano da natureza. Para o historiador Lynn White, que em 1967 escreveu o influente artigo “As raízes históricas de nossa crise ecológica”, “a fantástica história da criação” herdada do judaísmo pelo cristianismo dominou a visão do Ocidente sobre a natureza e levou à crise ambiental.
Escreveu White: “Em estágios graduais, um Deus amoroso e todo-poderoso criou a luz e a escuridão, os corpos celestiais, a terra e todas as suas plantas, animais, pássaros e peixes. Finalmente, Deus criou Adão e, como se tivesse pensado de novo, Eva, para evitar que o homem se sentisse só. O homem nomeou todos os animais, estabelecendo, portanto, seu domínio sobre eles. Deus planejou tudo isso explicitamente para o benefício e o governo do homem: nenhum item na criação física teve qualquer outra função a não ser servir os objetivos do homem. E, embora o corpo do homem seja feito de argila, ele simplesmente não é parte da natureza: foi feito à imagem de Deus”.
Com tal visão, segundo White, o cristianismo substituiu o paganismo, em que cada elemento natural – árvore, rio ou montanha – tinha seu espírito guardião, acessível ao homem, mas diferente dele. Qualquer modificação no mundo natural exigia, a priori, pacificar tais espíritos. Retirados os espíritos, e com a ciência e a tecnologia para modificar o mundo natural, o homem botou mãos à obra. “Por quase dois milênios, missionários cristãos vêm cortando florestas sagradas”, afirmou White. No “Novo Mundo” catequizado pelos jesuítas, não foi diferente.
A única exceção foi São Francisco de Assis, o santo dos animais, a quem White chama de “o maior radical na história do Cristianismo desde Cristo”. “A chave para entender São Francisco é sua crença na virtude da humildade, não meramente para o indivíduo, mas para o homem como espécie”, escreveu o historiador. “São Francisco tentou depor o homem de sua monarquia sobre a criação e estabelecer a democracia de todas as criaturas de Deus.”
NADA É UM MONOLITO
A visão antropocêntrica descrita por White aparece no relato bíblico do Gênese na forma do mandato divino para que os homens sujeitem e dominem a natureza. Mas, no mesmo texto, há outro mandato, esse envolvendo o binômio cultivar-e-guardar. “Há duas possibilidades de interpretação”, explica o teólogo Haroldo Reimer, professor de Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás. “Por conta da sintonia da interpretação bíblica com o projeto da modernidade, preferiu-se o domínio da subjugação da natureza.” Diante da crise ambiental, entretanto, é possível ler de outra maneira, enfatizando o trabalho para resguardar o ecossistema para as futuras gerações, acredita o teólogo.
Para Reimer, os textos sagrados são pressupostos e a interpretação depende das perguntas que se quer fazer a eles. “Hoje, as perguntas fundamentais são ecológicas”, garante. Assim como por muito tempo os textos sagrados não foram questionados quanto ao meio ambiente, os códigos jurídicos e outros fundamentos da sociedade ocidental também não o foram, lembra o teólogo.
A reinterpretação é o que pratica o pastor Éser Pacheco, da Oikos. “Trabalhamos uma leitura bíblica diferente a partir de elementos que estão lá”, conta. “Na narrativa do Éden, há uma perspectiva de harmonia com a natureza. Se há opressão, é conseqüência da falibilidade humana.” Uma leitura que vem a calhar com as evidências científicas de que as atividades humanas estão no centro do fenômeno do aquecimento global, por exemplo.
A tendência de reinterpretar os textos sagrados de acordo com as necessidades do momento mostra que as religiões são adaptáveis, mas há também quem veja na religião um fator de adaptação, em particular, ao meio ambiente.
ALÉM DOS GENES
Embora a Teoria da Evolução tenha desencantado de vez o mundo, ela recentemente se voltou para a cultura e, em particular a religião, para explicar o homem em relação ao ambiente natural.
“Da perspectiva evolucionária, pode-se dizer que, se a mente humana é uma adaptação, um produto da seleção natural, então a função das crenças é motivar o comportamento adaptativo”, diz David Sloan Wilson, professor dos departamentos de Biologia e Antropologia da Binghamton University e autor de Darwin’s Cathedral, Evolution, Religion, and the Nature of Society. “É por isso que há tantas crenças falsas, que não correspondem ao mundo real, mas que fazem que nos comportemos de maneira bem-sucedida no mundo real. Esse é o segredo para entender a religião.”
A corrente que Wilson defende dentro da Biologia é a de que a adaptação dos seres humanos ao ambiente envolve não só os genes, mas também a cultura. O apelo das religiões a tantas pessoas deve-se, em parte, à promessa de mudança transformativa – o caminho para a salvação. “Um problema com o pensamento evolucionista é que ele dá a impressão de que não podemos mudar nossos genes e, portanto, estamos fadados a nos comportar do mesmo jeito sempre”, diz o biólogo. “Mas evolução significa mudança, o segredo é que ela vai além da evolução genética e aí entram a cultura e outros processos, como os psicológicos. E fazem toda a diferença.”
A pesquisa de Wilson e outros em busca de uma explicação para a religião em relação ao meio ambiente é um dos últimos capítulos de uma longa história de estudos para compreender os fenômenos religiosos, boa parte desenrolada no âmbito das ciências sociais e com foco em populações tradicionais. No século XIX, os antropólogos cunharam a expressão “animismo” para designar as religiões então consideradas “primitivas” por acreditarem no espírito de elementos do mundo natural. Para a mente ocidental, tais religiões eram perigosas, pois consideravam sagrados a ordem criada e seus elementos, e não o criador. Por isso, previam os estudiosos, estavam fadadas a desaparecer à medida que a civilização ocidental se expandisse. No Brasil, elas sobrevivem principalmente nas crenças afro-brasileiras.
Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, escrito em 1912, o francês Émile Durkheim, um dos pais da Sociologia, apresentou a religião como elemento organizador da vida social, que ajuda a definir os grupos sociais e o comportamento de seus integrantes – uma representação simbólica da sociedade. Para Durkheim, “religião é um sistema unificado de crenças e práticas relacionadas a coisas sagradas, ou seja, coisas separadas e proibidas – crenças e práticas essas que unem em uma única comunidade moral chamada Igreja todos aqueles que aderem a elas”.
A linha inaugurada por Durkheim foi seguida por outros pesquisadores, sempre destacando a função da religião. Ao estudar os Tsembaga Maring, povo tradicional de Papua Nova Guiné, o antropólogo americano Roy Rappaport aprofundou a teoria funcionalista ao defender que o ritual dos Maring envolvendo porcos domesticados mediava a interação com o meio ambiente e garantia a sobrevivência do grupo. Em The Future Eaters, uma história ecológica da Australásia, o paleontólogo Tim Flannery afirma que, para os aborígenes, a religião “codifica a sabedoria ecológica”, mais até do que a tecnologia.
A ERA DO INDIVIDUALISMO
Os funcionalistas, entretanto, foram criticados por reduzir a complexidade religiosa à relação com o meio ambiente e, ao longo do século XX, emergiram outras explicações para a persistência das religiões, sejam elas “primitivas”, sejam “avançadas”. Do lado das ciências sociais, a teoria das escolhas racionais, oriunda da Economia, vê a religião como uma troca entre as pessoas e seres sobrenaturais, envolvendo bens escassos, como chuva durante um período de seca, ou impossíveis, como a vida após a morte.
Nas ciências naturais, tomou corpo a idéia da religião como subproduto de outras adaptações. Uma explicação é que, ao desenvolver a consciência de si mesmo e antever o próprio fim, o homem lança mão da religião para aplacar o medo da morte – uma adaptação secundária à evolução da consciência. Um dos expoentes dessa visão, o biólogo evolucionista Richard Dawkins, é famoso por seus ataques à religião – o mais recente deles no livro Deus – Um Delírio (God’s Delusion) – e por desenvolver o conceito de meme, em que a cultura é vista como um organismo parasita que explora seu anfitrião humano.
Tais teorias prosperaram especialmente na segunda metade do século XX, época de ouro do capitalismo laissez-faire, em sintonia com idéia de que o bem comum deriva dos esforços na busca de benefícios individuais. A linha desenvolvida por Wilson tenta resgatar os grupos sociais como unidade adaptativa – em lugar do indivíduo – e a religião como um sistema moral que fomenta a cooperação dentro dos grupos para aumentar sua capacidade de adaptação.
Os rituais religiosos, nesse contexto, são vistos como um meio de comunicar, a observadores internos e externos, o comprometimento de cada indivíduo com os valores morais do grupo e de evitar o fenômeno do carona – em que o indivíduo se beneficia mesmo sem comprometer-se com o grupo. Para Richard Sosis, antropólogo da Universidade de Connecticut, um exemplo é o custoso ritual dos judeus ortodoxos, que se vestem de preto mesmo sob altas temperaturas e rezam três vezes ao dia.
NADA DE MAGIA
A visão de evolucionistas como Wilson é um sopro de esperança em uma época em que a cooperação se faz urgente para enfrentar o desafio ambiental global. Mas esbarra em limitações. “Somos desenhados para funcionar cooperativamente em grupos pequenos justamente porque o controle social é fácil, se alguém tenta se aproveitar, é controlado pelos demais”, afirma Wilson. “Se vivemos em uma aldeia global com muitas nações, corporações, religiões, é preciso que haja um equilíbrio de forças. Temos as Nações Unidas e outras instituições, mas estamos muito longe disso.”
A religião, em uma visão global em que a cooperação é essencial para manter as condições naturais do planeta, parece perder seus poderes. “Não se deve levar longe demais a idéia de que a religião determina a relação do homem com a natureza”, alerta o ecossocioeconomista Ignacy Sachs. Para ele, o importante é analisar como as diferentes culturas aproveitam os recursos e o meio ambiente. “Ao mesmo tempo, é uma análise da engenhosidade humana e que tem um efeito pedagógico extraordinário dentro da problemática do desenvolvimento sustentável”, diz.
“O grande desafio é encarar as distintas interfaces entre biologia e cultura”, concorda Paul Little, antropólogo da Universidade de Brasília. “Não existe resposta mágica e esse campo ainda é pouco explorado devido à divisão entre as ciências exatas e as sociais.”
Soluções mágicas ou místicas para a questão ambiental, por outro lado, ultrapassam o campo da percepção racional e assumem um caráter quase religioso, alerta Ignacy Sachs, referindo-se à Deep Ecology, ou Ecologia Profunda.
O termo “Deep Ecology” foi cunhado pelo filósofo norueguês Arne Nœss em 1972 para expressar a idéia de que a natureza tem valor intrínseco, ou seja, separado de sua utilidade para os seres humanos, ensina a Enciclopédia de Religião e Natureza, editada em 2005 nos EUA. Ao defender que todas as formas de vida tenham a possibilidade de florescer e cumprir seu destino evolucionário, a Deep Ecology assume o biocentrismo como valor central, postura contrária às grandes religiões ocidentais que colocam o homem como medida de tudo.
Entre as influências científicas da Deep Ecology está a Teoria de Gaia, desenvolvida por James Lovelock nos anos 70 e que apresenta o planeta Terra como um sistema complexo e interativo que pode ser visto como um único organismo vivo. Controversa desde o princípio, a teoria, assim como a Deep Ecology, foi influente na formação de Partidos Verdes em vários países e permeia o discurso ambientalista. “É quase uma tese mística que atribui à Terra a capacidade de auto-regulação”, afirma Sachs. Mais recentemente, no livro A Vingança de Gaia, Lovelock atribui ao planeta também a capacidade de se vingar dos homens por meio do aquecimento global. Na visão de Sachs, a Deep Ecology, informada pela Teoria de Gaia, “passa a ser radicalmente anti-humanista”.
CHUVA DENTRO DE CASA
Abandonar a dimensão humana soa tão pouco natural quanto a visão radical antropocêntrica de que a natureza existe apenas para servir ao homem. Que o diga Waldemar Boff, que há décadas trabalha com populações carentes na Baixada Fluminense, enfatizando a redução da pobreza e as questões ambientais. “A religião tem um lado que é uma válvula de escape, como dizia Marx, mas é também um espaço de humanização”, conta Waldemar. “Nosso público são os mais excluídos, para quem a religião não é uma questão teórica. Deus é tão natural quanto o sol e a terra e o meio ambiente se reduz a coisas muito concretas, água, esgoto, a chuva dentro de casa.”
Há anos trabalhando com a ONG Água Doce, Waldemar recentemente deu início ao Suruí 2050, um projeto de longo prazo, intergeracional, que visa mudar as condições de vida de cerca de mil famílias que ocupam uma área de Mata Atlântica na região da Bacia do Rio Suruí, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. A idéia é informar e conscientizar a população em relação a questões sociais, ambientais e econômicas.
Waldemar, que como o irmão famoso, o teólogo Leornardo Boff, teve formação católica, acredita que as igrejas chegaram muito tarde ao discurso ambientalista. “As confissões estão preocupadas em converter os outros, são triunfalistas”, afirma. “O papel que existe é para a religião, cujo sentido original é o de religar o homem com o todo”. Ou, quem sabe, manter o encanto que o homem sempre viu no mundo.
O DEUS EM VOCÊ
É impossível manter a religião sem manter a natureza, porque os deuses são a natureza. Oxum é a deusa da água doce. Xangô, deus do trovão. Iansã comanda os raios e as tempestades. Iemanjá é a senhora dos mares. Oxalá, o pai da criação. “O indivíduo é parte da natureza, recebe os orixás dentro de sua cabeça, em seu sangue. Deus passa a fazer parte de você”, diz a antropóloga Rita Amaral. Por isso, há extremo respeito às forças naturais.
Trazido da África, o candomblé “inicialmente significava a ligação afetiva e mágica com o mundo africano”, do qual os escravos haviam sido arrancados, conta o sociólogo Reginaldo Prandi no livro Herdeiras do Axé. No Nordeste do século XIX, o terreiro era a reconstrução simbólica da comunidade africana perdida, onde os escravos podiam se distanciar culturalmente do mundo dominado pelo opressor branco. Mas cresceu nos próprios escravos a necessidade de se integrar no novo país. “O candomblé nasce católico quando o negro precisa ser também brasileiro”, escreve Prandi.
Apesar do sincretismo, o candomblé não adotou a ética católica do Bem e do Mal, a idéia de pecado ou de salvação. É uma religião que afirma o mundo e reorganiza seus valores, segundo Prandi. A ligação e o respeito pela natureza não significa desprezo pelo humano – pelo contrário, o bom filho-de-santo precisa realizar todos os seus desejos para que seu orixá se torne mais forte. “Aceitando o mundo como ele é, o candomblé aceita a humanidade, situando-a no centro do universo, e apresenta-se como religião especialmente dotada para a sociedade narcisista e egoísta em que vivemos”.
A VIDA EM TODAS AS COISAS
“O ser humano é a natureza, nós somos a vida da Terra”, diz a Monja Coen, fundadora da Comunidade Zen Budista de São Paulo. “Toda vida do céu e da terra é uma jóia arredondada, não há dentro nem fora. Somos a vida dessa jóia, não viemos de fora nem vamos para fora”.
Embora o ser humano seja a natureza, “nossa maravilhosa mente” nos separa dela, admite a monja. A partir de elementos naturais, o homem desenvolveu meios para se locomover, vestir, morar, que ficaram muito elaborados. “Esquecemos de onde as coisas vêm e quem somos nós”, diz. “Nós mudamos o meio ambiente e agora ele é também de concreto, de asfalto, com automóveis, plástico. Cuidar dele não quer dizer apenas preservar as árvores e os animais, tem um ser humano aqui”.
Para o zenbudismo, a maneira de se reconectar é por meio da prática da meditação. “Buda é aquele que acorda para a verdade de que somos a vida da Terra”, ensina a monja. “Todos temos a condição de atingir a iluminação, é uma ação constante, olhar e ver com profundidade, ver que estamos em uma teia de relacionamentos”. Fundamental para isso é a educação, desde a mais tenra infância, para formar as futuras gerações. “As religiões têm um papel muito importante, ajudam a fazer a mudança de consciência”, diz Monja Coen. “Ou ganhamos todos ou perdemos todos”.
A idéia de uma vida infinita que vibra através de todas as manifestações também é a base da Vedanta, escola filosófica originada na Índia. O ser humano, entretanto, é a manifestação de mais alto nível. “A natureza é a mãe divina, que dá os cinco elementos essenciais para qualquer tipo de vida: ar, espaço, água, temperatura e a terra”, afirma o Swami Nirmalatmananda, monge residente da Ordem Ramakrishna no Brasil. “A religião ensina o ser humano a ser não-egoísta ao máximo. Nesse processo, ele aprende a importância da natureza, de cuidar de todas as coisas”. É por isso que na Índia os animais são respeitados, em especial as vacas, “que oferecem todo o tipo de produto para uma vida saudável, sem que seja preciso matar nenhuma coisa”, explica o swami. “A vaca é parte da família”.
Evitar ao máximo os danos a qualquer ser vivo é o que prega o jainismo, uma das religiões mais antigas do mundo, também originária da Índia. Os adeptos praticam o vegetarianismo e cobrem a boca com máscaras.
DOS TEMPLOS PARA O MERCADO DE AÇÕES
Nos Estados Unidos, lugar de pregar não são só os templos e o fenômeno do “acionista religioso” chegou até na mídia. Patrícia Daly, da ordem Sisters of Saint Dominic of Caldwell, foi personagem central de uma reportagem do The New York Times em agosto sobre o ativismo socioambiental de organizações religiosas. O fundo de pensão da ordem dominicana, por exemplo, detém ações da Exxon Mobil e a irmã Daly escreve as resoluções apresentadas aos acionistas para pressionar a empresa a se posicionar quanto ao aquecimento global. Esse ano, 31,1% dos acionistas apoiaram uma resolução exigindo que a administração da Exxon adote metas quantitativas para reduzir suas emissões de gases de efeito estufa.
A irmã Daly não atua só na Exxon, nem está sozinha. O Interfaith Center on Coporate Responsibility (ICCR), por exemplo, congrega 275 investidores institucionais ligados a comunidades religiosas e apresenta cerca de 200 resoluções por ano nas empresas das quais detêm ações. “Os integrantes do ICCR usam o investimento religioso e outros recursos para mudar políticas corporativas danosas ou injustas, trabalhando para paz, justiça econômica e responsabilidade pela Terra”, diz o website da entidade.
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