Baseada nas idéias, a economia criativa depende menos dos recursos naturais e ajuda a agregar valor às commodities, mas dificilmente vai florescer só com inspiração – é preciso investimento em educação e inovação.
Saem de cena o petróleo, a soja, o minério de ferro. Entram a inteligência e a inovação. Visionário, Celso Furtado, um dos mais importantes economistas brasileiros, aventava no fim da década de 70 a possibilidade de superação da dependência econômica característica dos países em desenvolvimento por meio da criatividade. Dizia ele, no livro Criatividade e Dependência, que “implícito na criatividade existe um elemento de poder”. Economia criativa, economia da cultura, indústrias criativas, iconomia. Os nomes variam e os conceitos – cada vez mais freqüentes na mídia e em círculos acadêmicos – diferem aqui e ali, mas uma coisa têm em comum: a aposta de que a troca de idéias pode gerar valor e riqueza.
Não é para menos. As chamadas indústrias criativas respondem por 8% do PIB em um mundo em que o processo cada vez mais intenso de globalização traz profundos impactos na distribuição geográfica da riqueza. Enquanto as nações desenvolvidas perderam capacidade manufatureira e encaram o desafio de reinventar suas economias, a China tornou-se o grande fornecedor do globo – com impactos sociais e ambientais crescentes – e ávido competidor de países como o Brasil.
“Estamos na era da economia pós-industrial. As indústrias pesadas saíram do centro e se deslocaram para a periferia do mundo. Os países têm de repensar a economia”, diz Edna dos Santos-Duisenberg, chefe do programa de economia e indústrias criativas da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), organismo ativo na produção de estatísticas e estudos sobre as atividades que têm na criatividade e na cultura sua matéria-prima.
Mais do que peso econômico, os adeptos da economia criativa acreditam que ela pode representar uma mudança de paradigma tão radical quanto a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX. Diante da crise ambiental, a humanidade vai precisar reinventar o trabalho, o consumo, o vestir. “Os paradigmas têm de mudar, temos de reinventar tudo. Para isso, a cultura tem papel fundamental, pois ela gera valores sociais que podem fazer a sociedade caminhar rumo à sustentabilidade e isso muda o padrão de consumo, gera demandas nessa direção. Está tudo integrado”, afirma Wilson Nobre, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas.
Para os países do Hemisfério Sul, a criatividade pode ser a tão esperada chance de se desenvolver, de maneira sustentável, sem depender das nações centrais. Afinal, idéias não são recursos escassos nem esgotáveis. E, melhor, são essenciais para a construção de um modelo em que a inclusão social e o respeito ao meio ambiente andem juntos com a economia.
Para o Brasil, que comprovadamente tem capacidade de construir marcas fortes, produtos com design, desenvolver tecnologia e inovar, o segredo está em criar um ambiente no qual a criatividade possa florescer. Audiovisual, música, software, TV, rádio, moda, design, artesanato e tecnologia são atividades propulsoras da inovação e da ampliação da capacidade produtiva, inclusive de setores considerados mais tradicionais da economia.
“O preço de um quilo de algodão exportado pelo Brasil é de US$ 1, um quilo de vestuário é exportado por US$ 25 e o quilo de moda (em média) é negociado entre US$ 80 e US$ 120. É o valor agregado embutido pela marca.” Quem diz é Graça Cabral, vice-presidente do IN-MOD, braço institucional da São Paulo Fashion Week (SPFW), a vitrine mais importante da moda nacional e que deu uma forte dose de vitamina à indústria têxtil.
O último SPFW marcou um novo momento na moda brasileira, antes restrito a setores da indústria: investidores começam a adquirir as principais grifes e a formar grupos de gestão nos moldes dos que existem na Europa e nos EUA. Com isso, empresas que eram negócios quase familiares passam às mãos de gestores profissionais com objetivos ambiciosos. A holding I’M Identidade Moda, que havia comprado a Zoomp, arrematou em janeiro as grifes Herchcovitch; Alexandre e Fause Haten. A catarinense AMC Têxtil comprou a Sommer. Espera-se que a profissionalização do segmento de moda – movido à criatividade nacional – traga um ciclo virtuoso para toda a cadeia.
Riqueza em toda parte
Pelas características da população – tamanho, renda, escolaridade, faixas etárias – e a desigualdade de renda, o Brasil não pode se dar ao luxo de prescindir dos setores agrícola e manufatureiro, que geram empregos e amortecem as instabilidades do comércio internacional.
Nem é essa a idéia. “O Brasil tem de aproveitar suas vantagens competitivas e entre elas estão as commodities. O potencial e o desafio estão em quebrar a dependência com relação a elas”, diz Ana Carla Fonseca Reis, especialista em economia criativa e consultora da ONU. “O valor gerado pela criatividade pode contribuir em muito para isso, influenciando uma ótica de agregação de valor às commodities, do café (o ‘café com origem’) aos minérios (e sua transformação)”, exemplifica Ana Carla, referindo-se aos cafés gourmets e aos produtos manufaturados.
Além disso, e de incentivar o uso positivo do imenso emaranhado de relações possibilitado pelas novas tecnologias, a economia criativa tem na manga o trunfo de não depender de recursos não renováveis e escassos. O que importa está na cabeça das pessoas. O combustível são as idéias.
“É uma economia menos intensiva em energia e assim incide menos sobre recursos naturais”, diz o embaixador Rubens Ricupero (leia mais na entrevista) , diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado e ex-secretário-geral da Unctad. “É uma forma de mostrar que culturas locais podem ter grande marca na economia mundial, mesmo em países relativamente atrasados, como na África.
A riqueza cultural está em toda parte.” Para se ter idéia do potencial, apenas uma parcela da economia criativa – a produção de bens culturais – é de um dinamismo imenso. Na Europa, o setor cultural emprega cerca de 5 milhões de pessoas, o que corresponde a 2,4% do total de empregos, e cresce 12% mais rapidamente do que segmentos tradicionais da economia. A União Européia é hoje o maior exportador de bens culturais do mundo, com uma fatia de 51,8% das vendas totais. O continente asiático aparece em seguida, com 20,6%. A força asiática está nos videogames e nas artes visuais chineses.
No Brasil, o Ministério da Cultura (MinC) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) trabalham para começar a mapear o setor cultural. Segundo a pesquisa “Sistemas de Informações e Indicadores Culturais”, divulgada no fim de 2007, aproximadamente 1,6 milhão de pessoas trabalham nas 321 mil empresas envolvidas com atividades culturais no País.
Definições e um alerta
Faltam não só estatísticas apuradas sobre o que pode vir a compor o setor criativo no Brasil, mas também consenso em torno da definição do que é, afinal, esse olhar econômico sobre os bens e produtos culturais. As indústrias criativas podem ser entendidas como um conjunto de setores escolhidos conforme seu impacto econômico potencial na geração de riqueza, trabalho, arrecadação tributária e divisas de exportação, incluindo esferas tão díspares quanto artesanato, software, turismo, gastronomia e novas mídias. O que as une é a criatividade como matéria-prima.
O conceito de economia criativa é mais abrangente, explica Ana Carla, e diz respeito não só às indústrias criativas, mas também ao impacto de seus bens e serviços em outros setores e às conexões que se estabelecem entre eles, provocando mudanças sociais, organizacionais, políticas, educacionais e econômicas. Economia da cultura é o termo adotado pelo MinC para tirar do seu guarda-chuva tudo o que não esteja diretamente ligado à cultura, como software.
Gilson Schwartz, professor de economia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), define a nova onda como iconomia. “É a economia dos ativos intangíveis, dos ícones, dos símbolos, da criatividade. É a linguagem das novas mídias em que a produção de valor se define pela capacidade de apropriação de símbolos”, diz. Schwartz alerta que é preciso ter cuidado ao falar de iconomia como alternativa de modelo inclusivo para o Brasil. “Em tese, poderia ser mais democrático. Na prática, o acesso ao conhecimento e à tecnologia sempre vai ser mais fácil para a elite, e a massa vai continuar correndo atrás.”
O risco, de fato, existe e faz refletir. Falar em economia criativa em um país com alto índice de analfabetismo parece fora de lugar. Se as crianças mal sabem interpretar um texto, como esperar o bom desempenho de um setor que pressupõe capacidade de raciocínio? Não é só a habilidade de transformar um punhado de capim-dourado em objetos de design que está em jogo. “Enquanto tivermos uma sociedade francamente desigual em termos de capacidade de reflexão e acesso às informações, teremos uma economia criativa sem fluidez, que também funcionará por bolsões”, acredita Ana Carla.
Apesar da urgência em aumentar a capacitação da grande maioria dos brasileiros para que possam operar em uma economia cada vez mais alimentada pelo capital intelectual, há apenas ações pontuais em vigor no País.
O fomento à economia da cultura é um dos eixos prioritários do MinC, que por meio do Programa de Desenvolvimento da Economia da Cultura (Prodec) injeta, desde 2006, de R$ 10 milhões a R$ 13 milhões anuais em quatro áreas: desenvolvimento de pesquisa e indicadores, promoção de negócios, formulação de produtos financeiros e capacitação para as pessoas lidarem com contratos e questões ligadas à propriedade intelectual. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tem linhas especiais de crédito, como o Programa de Apoio à Cadeia Produtiva do Audiovisual (Procult), que existe desde o fim de 2006. Até 2008, vai funcionar como programa piloto, com orçamento de R$ 175 milhões para financiar todos os elos da cadeia: infra-estrutura, laboratórios, produção e distribuição.
A criatividade pode não só estar no fim, mas no meio também. O Banco do Nordeste (BNB), por exemplo, bolou novas formas de garantir o pagamento de um empréstimo. Um ator ou músico podem, por exemplo, oferecer como garantia a receita com a venda dos ingressos de um espetáculo que ainda vai acontecer. Ou, simplesmente, a qualidade. Henilton Menezes, gerente da área cultural do BNB, explica: “O maior bem de um estúdio não é o equipamento, mas a habilidade do operador da mesa de som. É ele que atrai as bandas para gravar. Portanto, o contrato prevê que durante a vigência do financiamento aquele operador continue trabalhando naquele estúdio”.
Santo de casa
“O Brasil é um celeiro de boas experiências e eu gosto de falar que santo de casa faz milagre, sim”, brinca Lala Deheinzelin, especialista em economia criativa e desenvolvimento. Mas, como bem diz Ana Carla, “a existência de uma oportunidade não implica diretamente seu aproveitamento. Embora a criatividade seja tão ubíqua quanto o oxigênio, a economia criativa não se concretiza por combustão espontânea”. O setor público, lembra a especialista, está diante de um grande desafio: alinhar e articular as políticas públicas setoriais em uma trajetória comum e integrada. “A economia criativa é transversal e estabelece conexões com educação, turismo, tecnologia e meio ambiente”, diz. “É também uma forma de interação social.” Tanto Ana Carla como Lala avaliam positivamente a ação do MinC, mas consideram um erro o ministério falar em economia da cultura e não em economia criativa. “Isso exclui do debate os ministérios de Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o que é um problema”, afirma Lala.
O poder das idéias e a capacidade de inovar são fundamentais para a economia de baixo carbono para a qual o mundo caminha, e o Brasil prova seu valor ao liderar no segmento de biocombustíveis, em especial com o etanol. “Não há sustentabilidade fazendo o usual, é preciso mudança, é preciso inovação para sair do padrão anterior. Sustentabilidade pressupõe mudança e a inovação é o único caminho em direção a isso”, afirma Nobre, da FGV.
Há no País interesse pelas novas tecnologias – pelo menos por quem tem acesso a elas –, como ficou evidente na Campus Party, evento realizado em fevereiro em São Paulo, em que os 3,3 mil inscritos tinham à disposição uma poderosa conexão de 5 Gbps (gigabits por segundo) para trocar experiências, idéias e conhecimentos. Resultado: mais de 460 Gbytes, entre filmes, músicas, games, programas e desenhos foram baixados nos sete dias do evento.
Por fim, o Brasil, sem dúvida, pode se beneficiar do caudaloso caldo cultural, de sua diversidade regional, música e festas tradicionais. Mas, sem o investimento em educação de qualidade, a revisão da educação superior para contemplar as profissões que surgem a todo instante, a massificação do acesso às novas tecnologias e a elaboração de um marco regulatório que fomente a inovação e reaproxime a academia do setor privado, vai ser difícil recriar a economia. Essas são tarefas urgentes mesmo sem o foco na economia criativa e exigem planejamento, visão de longo prazo, articulação e trabalho árduo.
“Outro modelo de negócios é possível: valorizar as pessoas, estimular pequenos produtores. Para isso são necessárias políticas públicas de Estado. É um trabalho de convergência”, afirma Graça Cabral, do IN-MOD. Décadas depois da visão de Celso Furtado, poucos duvidam do poder da criatividade. O que todos sabem é que não basta uma idéia na cabeça.
Onde tudo começou
Da Austrália para o mundo, esquentando o debate sobre propriedade intelectual
Foi na Austrália, em 1994, que o termo “economia criativa” começou a ser empregado. O governo australiano queria, por um meio do projeto Creative Nations (Nações Criativas), fomentar o investimento nas artes em geral, mas principalmente elaborar uma política pública que preservasse a herança cultural dos aborígenes e reconhecesse os nativos australianos – que habitaram o território por mais de 40 mil anos antes dos europeus – como parte importante da construção da identidade do país.
No curso contrário ao dos colonizadores ingleses que chegaram à Austrália no século XVIII, o conceito atravessou o mundo e ganhou força na Inglaterra. Em 1997, o então premier britânico Tony Blair, diante de uma economia cada vez mais competitiva, deu a sua equipe uma tarefa: analisar as contas do Reino Unido, as tendências de mercado e as vantagens competitivas nacionais. Resultado: foram identificados 13 setores de maior potencial, batizados de indústrias criativas – “indústrias que têm sua origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que apresentam potencial para a criação de riqueza e empregos por meio da geração e exploração da propriedade intelectual”.
Os setores escolhidos foram propaganda, arquitetura, artes e antiguidades, artesanato, design de moda, filme e vídeo, software de lazer interativo, artes performáticas, publicações, música, TV e rádio, software e serviços para computadores.
O peso dado aos direitos de propriedade intelectual é um dos pontos mais controversos da política inglesa.
Na opinião da economista Ana Carla Fonseca Reis, especialista no tema, “enquanto a idéia de direitos do autor se aplica à indústria criativa, que não tem foco no desenvolvimento sustentável, na economia criativa ela ou não se aplica ou deve ter novos modelos. O conceito de economia criativa não deve incluir patentes científicas”.
Em tempos de trocas sem fim de dados pela internet e de software livre, falar em propriedade intelectual cada vez mais perde o sentido. Não que os artistas devam deixar de receber pelo que criam. “Os modelos de comercialização atuais exigem uma nova legislação internacional que favoreça o autor e proteja os países em desenvolvimento. Esse promete ser um dos grandes debates do século XXI”, aposta Edna dos Santos-Duisenberg, chefe do programa de economia e indústrias criativas da Unctad.