As dificuldades econômicas levaram Cuba a reduzir os impactos sobre o meio ambiente na marra. Como resultado, a Ilha é o único país que oferece um Índice de Desenvolvimento Humano decente e uma pegada ecológica moderada.
Por Regina Scharf
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Quando a Cortina de Ferro começou a cair, no fim dos anos 80, ficou claro que o comunismo não havia sido gentil com o meio ambiente. Quem pegasse um Trabant, espécie de Fusquinha de esquerda, e viajasse de Berlim Oriental ao Estreito de Bering, passaria por cidades com ar rarefeito pelo dióxido de enxofre, rios contaminados, pouquíssimos aterros sanitários ou sistemas de tratamento de esgotos. O legado comunista incluía desastres como o de Chernobil, maior acidente nuclear já registrado, e a redução do Mar de Aral à metade, devido à excessiva drenagem dos seus dois rios tributários.
Agora que Fidel Castro pendurou o quépi, começam as especulações sobre o balanço ambiental de seus 49 anos de governo.
Teriam os cubanos seguido os passos de seus camaradas do Leste Europeu?
Há vários indícios de que Cuba tem um nível de sustentabilidade muito melhor do que a de seus pares. Segundo a edição de 2006 do Living Planet Report, publicação do WWF, a Ilha é o único país do mundo que oferece, simultaneamente, um Índice de Desenvolvimento Humano decente e uma pegada ecológica moderada. Em outras palavras, ela tem indicadores razoáveis de longevidade, alfabetização e PIB per capita, além de exercer uma pressão comparativamente pequena sobre os recursos naturais.
O relatório deixa claro que essa conclusão se baseia nos dados oficiais do país, aquilo que o governo decidiu comunicar às Nações Unidas. Mesmo assim, ela merece atenção.
Segundo o relatório, cada cubano precisa de 1,5 hectare para atender suas necessidades de consumo e para diluir os resíduos que produz. É o que se chama de “pegada ecológica”. A média mundial é 2,2 — acima do limite de 1,8 oferecido pelo planeta. Para efeito de comparação, o mesmo indicador no Brasil conta 2,1 hectares.
Esse desempenho tem algumas explicações claras: as dificuldades econômicas, o embargo americano e a proposta comunista impuseram aos cubanos um padrão de consumo mínimo. Aliás, Fidel pregou esse modelo durante a Eco-92. “Se uns poucos países tivessem menos luxo e desperdício, a maior parte da Terra seria menos pobre e faminta”, discursou o Comandante. “Estilos de vida e de consumo que arruínam o meio ambiente não devem mais ser transplantados para o Terceiro Mundo.” Naquela época, os cubanos enfrentavam uma penúria sem precedentes, devido à queda do regime soviético. Até então, Cuba tinha na URSS e em outros países do bloco seus principais parceiros comerciais, dispostos a comprar açúcar com ágio para fortalecer o regime de Fidel. Em troca, ofereciam alimentos, insumos químicos, maquinário e combustível. Quando a União Soviética desapareceu, a Ilha perdeu 40% de sua economia e a sua segurança alimentar simplesmente naufragou.
Dados da ONU indicam que o cubano médio viu sua dieta minguar de 3.000 para menos de 1.900 calorias diárias nessa fase.
Em pouco tempo, os gatos de Havana desapareceram, transformados em almoço.
Uma reportagem publicada pelo The New York Times no auge da crise, em 1993, fala de escolas que substituíram o leite da merenda por água açucarada, de tratores abandonados por falta de diesel, de cartões de racionamento. O título — “Os últimos dias da Cuba de Castro” — apostava que o regime cairia em pouco tempo.
Fidel, como se sabe, não caiu. Isso se deve, em parte, à proliferação de hortas urbanas e à redescoberta de técnicas de cultivo que dispensavam agrotóxicos e maquinário sofisticado1. Num espaço de apenas uma década, a agricultura cubana sofreu uma revolução, tornando-se virtualmente orgânica. Quintais, terrenos baldios e estacionamentos foram tomados por pomares, hortas e galinheiros2. Donas de casa, engenheiros e médicos pegaram em enxadas e aprenderam a semear.
Numa entrevista à revista Harper’s, Miguel Salcines López, agrônomo que dirige o Vivero Organopónico Alamar, espécie de vitrine do modelo, contou que inicialmente se pretendia construir um hospital e um complexo esportivo no mesmo local. “Por causa da crise, o governo concluiu que isso era mais importante.” No Vivero Alamar, mudas de manjericão e cravo-de-defunto atraem insetos polinizadores, e pés de neem, árvore que produz um inseticida natural, afastam as pragas3.
O caos obrigou o país a reduzir a pressão exercida sobre o meio ambiente na marra.
E não só no âmbito agrícola. O número de carros per capita até hoje é baixo, por motivos semelhantes. Quando já não conseguia combustível com os soviéticos, Fidel importou ao menos 1 milhão de bicicletas da China e produziu mais meio milhão, de modo que elas se integraram rapidamente à paisagem, substituindo os decrépitos carros dos anos 50, que são marca registrada da Ilha.
O balanço do legado político de Fidel deverá dividir gregos e baianos por muito tempo. Para alguns, ele é o líder de uma revolução que reduziu as disparidades sociais e garantiu saúde e habitação aos cubanos, contra tudo e contra todos — principalmente o seu poderoso vizinho. Para outros, é o ditador que cerceou o direito de circulação e de voz de seus concidadãos e que só obteve vitórias graças ao longo apoio soviético e ao tamanho diminuto da ilha. Polêmica à parte, vale a pena estudar as conquistas ambientais do seu governo, para replicar o que deu certo e proteger o que merece quando Cuba for absorvida pelo modelo dominante.
Regina Scharf – Jornalista especializada em meio ambiente
1 http://gristmill.grist.org/story/2005/4/11/143016/228
2 http://peopleandplanet.net/doc.php?id=3003
3 http://www.harpers.org/archive/2005/04/0080501
As dificuldades econômicas levaram Cuba a reduzir os impactos sobre o meio ambiente na marra. Como resultado, a Ilha é o único país que oferece um Índice de Desenvolvimento Humano decente e uma pegada ecológica moderada.
Por Regina Scharf
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Quando a Cortina de Ferro começou a cair, no fim dos anos 80, ficou claro que o comunismo não havia sido gentil com o meio ambiente. Quem pegasse um Trabant, espécie de Fusquinha de esquerda, e viajasse de Berlim Oriental ao Estreito de Bering, passaria por cidades com ar rarefeito pelo dióxido de enxofre, rios contaminados, pouquíssimos aterros sanitários ou sistemas de tratamento de esgotos. O legado comunista incluía desastres como o de Chernobil, maior acidente nuclear já registrado, e a redução do Mar de Aral à metade, devido à excessiva drenagem dos seus dois rios tributários.
Agora que Fidel Castro pendurou o quépi, começam as especulações sobre o balanço ambiental de seus 49 anos de governo.
Teriam os cubanos seguido os passos de seus camaradas do Leste Europeu?
Há vários indícios de que Cuba tem um nível de sustentabilidade muito melhor do que a de seus pares. Segundo a edição de 2006 do Living Planet Report, publicação do WWF, a Ilha é o único país do mundo que oferece, simultaneamente, um Índice de Desenvolvimento Humano decente e uma pegada ecológica moderada. Em outras palavras, ela tem indicadores razoáveis de longevidade, alfabetização e PIB per capita, além de exercer uma pressão comparativamente pequena sobre os recursos naturais.
O relatório deixa claro que essa conclusão se baseia nos dados oficiais do país, aquilo que o governo decidiu comunicar às Nações Unidas. Mesmo assim, ela merece atenção.
Segundo o relatório, cada cubano precisa de 1,5 hectare para atender suas necessidades de consumo e para diluir os resíduos que produz. É o que se chama de “pegada ecológica”. A média mundial é 2,2 — acima do limite de 1,8 oferecido pelo planeta. Para efeito de comparação, o mesmo indicador no Brasil conta 2,1 hectares.
Esse desempenho tem algumas explicações claras: as dificuldades econômicas, o embargo americano e a proposta comunista impuseram aos cubanos um padrão de consumo mínimo. Aliás, Fidel pregou esse modelo durante a Eco-92. “Se uns poucos países tivessem menos luxo e desperdício, a maior parte da Terra seria menos pobre e faminta”, discursou o Comandante. “Estilos de vida e de consumo que arruínam o meio ambiente não devem mais ser transplantados para o Terceiro Mundo.” Naquela época, os cubanos enfrentavam uma penúria sem precedentes, devido à queda do regime soviético. Até então, Cuba tinha na URSS e em outros países do bloco seus principais parceiros comerciais, dispostos a comprar açúcar com ágio para fortalecer o regime de Fidel. Em troca, ofereciam alimentos, insumos químicos, maquinário e combustível. Quando a União Soviética desapareceu, a Ilha perdeu 40% de sua economia e a sua segurança alimentar simplesmente naufragou.
Dados da ONU indicam que o cubano médio viu sua dieta minguar de 3.000 para menos de 1.900 calorias diárias nessa fase.
Em pouco tempo, os gatos de Havana desapareceram, transformados em almoço.
Uma reportagem publicada pelo The New York Times no auge da crise, em 1993, fala de escolas que substituíram o leite da merenda por água açucarada, de tratores abandonados por falta de diesel, de cartões de racionamento. O título — “Os últimos dias da Cuba de Castro” — apostava que o regime cairia em pouco tempo.
Fidel, como se sabe, não caiu. Isso se deve, em parte, à proliferação de hortas urbanas e à redescoberta de técnicas de cultivo que dispensavam agrotóxicos e maquinário sofisticado1. Num espaço de apenas uma década, a agricultura cubana sofreu uma revolução, tornando-se virtualmente orgânica. Quintais, terrenos baldios e estacionamentos foram tomados por pomares, hortas e galinheiros2. Donas de casa, engenheiros e médicos pegaram em enxadas e aprenderam a semear.
Numa entrevista à revista Harper’s, Miguel Salcines López, agrônomo que dirige o Vivero Organopónico Alamar, espécie de vitrine do modelo, contou que inicialmente se pretendia construir um hospital e um complexo esportivo no mesmo local. “Por causa da crise, o governo concluiu que isso era mais importante.” No Vivero Alamar, mudas de manjericão e cravo-de-defunto atraem insetos polinizadores, e pés de neem, árvore que produz um inseticida natural, afastam as pragas3.
O caos obrigou o país a reduzir a pressão exercida sobre o meio ambiente na marra.
E não só no âmbito agrícola. O número de carros per capita até hoje é baixo, por motivos semelhantes. Quando já não conseguia combustível com os soviéticos, Fidel importou ao menos 1 milhão de bicicletas da China e produziu mais meio milhão, de modo que elas se integraram rapidamente à paisagem, substituindo os decrépitos carros dos anos 50, que são marca registrada da Ilha.
O balanço do legado político de Fidel deverá dividir gregos e baianos por muito tempo. Para alguns, ele é o líder de uma revolução que reduziu as disparidades sociais e garantiu saúde e habitação aos cubanos, contra tudo e contra todos — principalmente o seu poderoso vizinho. Para outros, é o ditador que cerceou o direito de circulação e de voz de seus concidadãos e que só obteve vitórias graças ao longo apoio soviético e ao tamanho diminuto da ilha. Polêmica à parte, vale a pena estudar as conquistas ambientais do seu governo, para replicar o que deu certo e proteger o que merece quando Cuba for absorvida pelo modelo dominante.
Regina Scharf – Jornalista especializada em meio ambiente
1 http://gristmill.grist.org/story/2005/4/11/143016/228
2 http://peopleandplanet.net/doc.php?id=3003
3 http://www.harpers.org/archive/2005/04/0080501
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