Para a defensora dos direitos indígenas, sob o argumento da soberania escondem-se o preconceito e o interesse em ocupar as últimas fronteiras
Por Amália Safatle
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Rora, verde; ímã, serra. Serra Verde é Roraima, na língua dos Taurepang, um dos cinco povos indígenas no meio da disputa de terras com os produtores de arroz, na Raposa Serra do Sol. Homologada após 30 anos, a reserva que também abriga os Macuxi, Wapixana, Patamona e Ingarikó voltou a ser pivô de uma discussão que, para a advogada especializada em direitos indígenas, Ana Valéria Araújo, reflete a falta de reconhecimento do valor cultural e ambiental do índio e o interesse em se ocupar as últimas grandes extensões de terras do País, sob o argumento da soberania nacional. Coordenadora-executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos, Ana Valéria vê no episódio mais um exemplo da necessidade de se definir o modelo de civilização que o País quer abraçar.
O que há no fundo de disputas como a da Raposa Serra do Sol, entre os Rizicultores e a manutenção de área contínua para os índios? Trata-se de um conflito entre modelos civilizatórios? Você começou pela posição central. Embora as terras indígenas sejam da União, os recursos naturais dessas terras são dos índios. Então, o que está por trás da demarcação das duas últimas grandes áreas no País? Uma briga pela diminuição da extensão dessas áreas para que sobre mais terras para quem ficar de fora explorar. O que está em jogo são duas formas absolutamente distintas de a sociedade brasileira encarar o modelo de desenvolvimento. Muito se fala que temos de cuidar do meio ambiente, de que o desenvolvimento precisa ser sustentável. Então, vamos desenhar políticas de acordo com isso. Tem a questão das mudanças climáticas, a necessidade de manter grandes áreas para preservação. As terras indígenas, se olharmos no mapa do Brasil, na Amazônia mais exatamente, são hoje as maiores reservas de floresta, e as mais preservadas – em prol não só dos índios, mas de todos os brasileiros. Em Roraima, 40% são terras indígenas, dentre elas a Ianomâmi e a Raposa Serra do Sol. E 60% do estado é não indígena, uma área equivalente à soma dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas, para uma população de só 500 mil habitantes.
É muita terra pra pouco branco… Sim. E tem 18 mil índios na outra área, tentando viver segundo seus ritos, costumes, tradições, de forma mais pacífica. Os índios do passado, de quando não existíamos nós, os brancos, ou quando éramos muito menores e não tínhamos chegado até lá, pensavam na terra como uma relação sem fronteira. Eles exploravam um pouco aqui, quando se esgotava mudavam para ali, até a natureza se regenerar, e havia um ciclo… Havia um território minimamente delimitado no imaginário de cada grupo, mas que era explorado de forma sazonal.
Como se fosse um manejo sustentável? Isso, e quando se exige demarcar o território, eles têm muito mais clareza de que é aquele pedaço ali que têm para fazer esse “manejo sustentável”, para as gerações que virão. A relação com o meio ambiente passa a ser bem mais cuidadosa. É o que começamos a ter em relação ao planeta: um espaço limitado, que não podemos explorar inadvertidamente ad aeternum. Embora tenhamos essa noção, continuamos explorando dessa forma.
Qual é a saída para conciliar esses dois modelos civilizatórios? Criar reservas? O que chamamos de reserva, e que a Constituição de 1988 chama de terra indígena, talvez não seja solução para o problema geral, mas é direito deles e dever nosso. A Constituição reconhece que os povos indígenas garantem uma diversidade e são uma riqueza do próprio povo brasileiro. O País é um dos poucos que têm 180 línguas indígenas faladas ainda hoje, por mais de 300 povos. Se entendermos isso, não há por que ter conflito com o índio.
Foi enviada proposta ao Congresso pelo Ministério da Justiça, que regulamenta a exploração mineral em terras indígenas, segundo a qual a comunidade receberia um percentual da extração. O senador Romero Jucá defende um acordo para transferência de parte da renda dos rizicultores para os índios. Isso desvirtua a cultura indígena, inserindo-a na nossa economia de mercado? São duas coisas diferentes. Na mineração, o subsolo é da União. Os recursos naturais que os índios têm são da superfície. Portanto, a União pode minerar em terra indígena. Mas, pela Constituição, para isso, deve haver lei específica, dizendo sob quais condições, porque a mineração é uma atividade extremamente detonadora. Como furar e tirar o que está embaixo sem tocar no que está em cima? Agora que os minérios estão em alta, especialmente em razão da demanda da China, isso voltou a ser um ponto crucial na pauta do Congresso.A Constituição já estabelece a necessidade de ouvir a comunidade minimamente com relação àquela atividade e compensá-la de alguma forma pelos danos. Mas como se compensa, pagam-se royalties? O que é compensar a comunidade? Isso tem de estar estabelecido em lei. Desde 1988 há projetos de lei que não se conseguiu votar no Congresso, por causa de diversos interesses antagônicos. Defensores dos direitos indígenas e alguns projetos dizem que há necessidade de ouvir a comunidade, mas em um processo que respeite minimamente o tempo dessas comunidades, para que elas consigam compreender o que vai acontecer com elas e se preparar para isso. E não um rolo compressor que chega lá, o índio assina embaixo e o Estado oferece qualquer coisa em troca, um recurso qualquer que seja tentador. Se não há uma legislação criando critérios para essa atividade, junto da mineradora vem a bebida, a prostituição, para dentro da vida de uma comunidade. O dano ambiental pode ser eventualmente recuperado depois pela mineradora, mas o que se faz com o dano cultural?
Se esses cuidados forem tomados, a exploração é viável? Não temos como não achar que é possível. Como advogada defensora dos direitos indígenas, diria que o ideal seria não explorar. Mas temos de ser pragmáticos. A mineração é uma atividade que interessa à União e deveríamos pensar nela não só nas terras indígenas – mas principalmente nelas, sob a óptica da sustentabilidade.
A senhora dizia que uma coisa era a mineração e outra coisa era a rizicultura… Admitir que os arrozeiros possam continuar dentro da Raposa Serra do Sol, plantando o arroz, e dando uma parte do recurso para os índios, é admitir que é possível manter uma situação ilegal e compensar os índios por ela. Então, podemos explorar mogno dentro das terras indígenas, desde que você dê um dinheirinho para os índios? Aí você começa a abrir as portas para não ter mais o Estado de Direito, e oficializa a corrupção. Quanto à mineração, temos uma base de legalidade para ela.
Qual é a dificuldade real para retirar esses agricultores? Como se explica a posição do STF? O Supremo é um órgão político que age sempre na tentativa de evitar conflito. Em 2 de março, quando o governo anunciou pela primeira vez que iria mandar as tropas da Polícia Federal para a retirada dos arrozeiros, o líder deles, Paulo César Quartiero, foi ao Supremo e entrou com uma liminar pedindo que suspendesse a ordem. O Supremo negou dizendo que isso daria margem a conflito de terra. Um mês depois, o estado de Roraima pediu a mesma coisa. Então, o Supremo mandou suspender a retirada, de novo sob a justificativa de evitar o conflito. Então são duas decisões, uma o contrário da outra, com a diferença de um mês, e sob a mesma argumentação. Quando o Supremo disse para continuar a operação da PF, qual seria a expectativa do STF e de todos nós? Que, no dia seguinte, o Executivo fosse lá, e usasse de todos os mecanismos possíveis para apoiar a PF para tirar seis arrozeiros.O que é tirar seis arrozeiros? O Brasil está à frente das forças de paz no Haiti, briga por uma vaga no Conselho Permanente da ONU, porque quer arbitrar os conflitos internacionais, maso que está acontecendo em Roraima é demais para a gente.Para a PF entrar por terra, numa área que é grande, remota, a não ser que você vá com uma frota de caminhões, é muito complexo. Então era preciso pegar um aviãozinho da FAB, ou um desses helicópteros grandes.Se a Aeronáutica tivesse apoiado, ou o Exército, com sua estrutura, a PF tinha entrado e retirado. Só que a Aeronáutica e o Exército boicotaram, porque usam o argumento da soberania, que tem por trás essa vontade de não se concretizar os direitos sobre aquela determinada terra, segundo o que a gente discutiu na sua primeira pergunta. O que faltou foi vontade política do Executivo. O presidente da República e o ministro da Justiça deveriam ter chamado o ministro da Defesa e dito: “Como não vai apoiar a retirada”? Mas só se manifestaram quando o Supremo já tinha dito: “Pára tudo”. Ou seja, um mês depois, depois que o Executivo levou tudo em fogo brando. Essa história já se repetiu em outros locais. A União anuncia com muita antecedência uma ação em área conflituosa. Ou ela está anunciando para quem estiver na área se preparar e se prevenir, ou ela não está muito a fim mesmo de fazer, e sim deixar que se crie um fato consumado, para depois dizer que não pôde fazer.
E agora acontecerá o quê? O Supremo deu 60 dias de suspensão da ordem de entrada da PF. Depois disso, a ordem de suspensão acaba, a PF entra, ou até antes, faz um acordo com os arrozeiros e eles vão embora. Essa é outra possibilidade. Quando a Raposa foi demarcada, havia cerca de 75 invasores, entre outros agricultores, pecuaristas. Esses foram saindo, depois da demarcação, quando viram que a área era indígena mesmo, que não haveria volta. Negociaram, receberam indenização. Quem resistiu foram os arrozeiros, que, aliás, foram os últimos a entrar, compraram as terras de quem saía e foram aumentando as suas posses dentro da Raposa.
O que evoluiu, em termos da formulação da lei, do seu cumprimento e da prática dos Direitos Humanos em relação aos povos indígenas desde o desenvolvimentismo dos anos 1970, quando os embates endureceram em nome do chamado “progresso”? Houve evolução ou involução? O governador local disse que a demarcação das terras indígenas ameaça a sociedade roraimense. Esse tipo de discurso só demonstra o quanto a população local desqualifica e desconsidera os índios como cidadãos brasileiros e como parte da sociedade. Isso tem a ver com preconceito, com anos de dificuldade de entendimento de que os índios podem ser outra coisa que não peão de obra. O primeiro órgão de proteção aos índios chamava-se Serviço de Proteção ao Índio (SPI, na década de 60) . Mas não era só isso, era Serviço de Proteção ao Índio e Procura de Trabalhadores e Mão-de-obra. Naquele tempo se achava que tínhamos de aculturar os índios, transformá-los em cidadãos regulares, para que se tornassem brasileiros. Desse ponto de vista, tivemos uma evolução. Na História, o índio sempre foi visto como preguiçoso, aquele que não quer aprender, não quer trabalhar. Nunca tivemos a capacidade de enxergar isso como um diferencial cultural, com o qual talvez a gente tivesse muito o que aprender. Nos canaviais das usinas de Mato Grosso do Sul, onde a mão-de-obra majoritariamente é indígena, há alguns anos, o Ministério Público do Trabalho teve de criar um acordo diferenciado entre os índios e os donos das usinas, onde eles iam se empregar. É que esses índios trabalham apenas para ganhar um dinheirinho.Depois que ganham, descansam, gastam e vão embora. Quando acaba, eles vão nas usinas pedir trabalho de novo… E não há nada que se possa fazer em relação a isso, porque é cultural. Então não tem décimo terceiro, não tem férias? Eles não querem, querem só viver suas vidas. E o que você faz? Obriga os índios a entrar na nossa lógica de acumulação de capital? Ou há a possibilidade de criar um sistema que acate, que traga também a lógica deles, e ao mesmo tempo não deixe os usineiros loucos, porque nunca sabem se no dia de amanhã terão empregados? Então se criou lá um contrato de trabalho diferenciado.
A senhora sustenta que o estado de Roraima existe hoje graças aos índios. Já o geógrafo e sociólogo Demetrio Magnoli, em artigo, cita o risco de perda de identidade nacional e política quando se evocam as nações ancestrais indígenas, porque elas não seguem a fronteira entre os países. As fronteiras nacionais não necessariamente reconhecem as fronteiras dos povos que ali estão. Os ianomâmi estão metade do lado de cá e metade do lado da Venezuela. Nós passamos uma linha no meio, dissemos que aqui é Brasil e ali é Venezuela, e que os que estão do lado de lá são venezuelanos e os de cá, brasileiros. Nem por isso houve problema de perda de soberania. Do ponto de vista jurídico, as terras indígenas são bens da União, inalienáveis e indisponíveis, o que define uma obrigação para o Estado de zelar por sua proteção e, portanto, afasta o “fantasma” da ameaça à soberania nacional. A presença do Exército em área de fronteira não é obstada pela existência de terras indígenas. Já os arrozeiros se recusam a aceitar a decisão do governo, mesmo sabendo que se trata de terra indígena, desafiando o Executivo e o próprio Judiciário. Sendo assim, valeria perguntar: quem afinal ameaça a soberania nacional?
Se de um lado há preconceito contra o índio, existe também a visão romantizada a respeito deles, talvez da idéia do “bom selvagem”. De onde vem essa noção, e a quem serve? Há situações em que o modo de viver dos índios não é tão benéfico ao meio ambiente? Fala-se, por exemplo, que eles alteraram profundamente a Floresta Amazônica. O que existe são estudos demonstrando que a Amazônia, com a sua biodiversidade e exuberância, é também fruto da intensa interação que os povos indígenas mantiveram ao longo dos séculos com o ambiente da região. O professor William Balée estuda isso há anos e comprovou de forma cabal que, sem a presença indígena, e mesmo de seringueiros, a Floresta Amazônica não teria a riqueza de hoje. As florestas na Amazônia são dominadas por espécies que controlam o acesso à luz solar. Grupos humanos, ao abrirem pequenas clareiras, criam oportunidades para que espécies oprimidas tenham uma janela de acesso à luz. O desafio, portanto, está em fugir de concepções extremadas como “ecologistas congênitos” ou “predadores naturais”, para adotar uma atitude de compreensão com o papel dos povos indígenas de bons manejadores dos recursos naturais, com baixo impacto no ambiente. Essa compreensão pode ajudar a sociedade brasileira a valorizar como um ativo importante a posse pelos índios de terras extensas, com taxas diminutas de população, que podem fazer a diferença em uma política de conservação e uso sustentável da Amazônia.É complicado ideologizar as práticas culturais de determinados povos, que orientam o uso dos seus recursos naturais para um grau de controle que evite a sua extinção, o que não significa não utilizá-los. Enquadrar essas práticas nas caixinhas conceituais de sustentabilidade, conservação e preservação não é tarefa impossível, mas sujeita a incompreensões de todos os matizes.
Para a defensora dos direitos indígenas, sob o argumento da soberania escondem-se o preconceito e o interesse em ocupar as últimas fronteiras
Por Amália Safatle
Rora, verde; ímã, serra. Serra Verde é Roraima, na língua dos Taurepang, um dos cinco povos indígenas no meio da disputa de terras com os produtores de arroz, na Raposa Serra do Sol. Homologada após 30 anos, a reserva que também abriga os Macuxi, Wapixana, Patamona e Ingarikó voltou a ser pivô de uma discussão que, para a advogada especializada em direitos indígenas, Ana Valéria Araújo, reflete a falta de reconhecimento do valor cultural e ambiental do índio e o interesse em se ocupar as últimas grandes extensões de terras do País, sob o argumento da soberania nacional. Coordenadora-executiva do Fundo Brasil de Direitos Humanos, Ana Valéria vê no episódio mais um exemplo da necessidade de se definir o modelo de civilização que o País quer abraçar.
O que há no fundo de disputas como a da Raposa Serra do Sol, entre os Rizicultores e a manutenção de área contínua para os índios? Trata-se de um conflito entre modelos civilizatórios? Você começou pela posição central. Embora as terras indígenas sejam da União, os recursos naturais dessas terras são dos índios. Então, o que está por trás da demarcação das duas últimas grandes áreas no País? Uma briga pela diminuição da extensão dessas áreas para que sobre mais terras para quem ficar de fora explorar. O que está em jogo são duas formas absolutamente distintas de a sociedade brasileira encarar o modelo de desenvolvimento. Muito se fala que temos de cuidar do meio ambiente, de que o desenvolvimento precisa ser sustentável. Então, vamos desenhar políticas de acordo com isso. Tem a questão das mudanças climáticas, a necessidade de manter grandes áreas para preservação. As terras indígenas, se olharmos no mapa do Brasil, na Amazônia mais exatamente, são hoje as maiores reservas de floresta, e as mais preservadas – em prol não só dos índios, mas de todos os brasileiros. Em Roraima, 40% são terras indígenas, dentre elas a Ianomâmi e a Raposa Serra do Sol. E 60% do estado é não indígena, uma área equivalente à soma dos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Alagoas, para uma população de só 500 mil habitantes.
É muita terra pra pouco branco… Sim. E tem 18 mil índios na outra área, tentando viver segundo seus ritos, costumes, tradições, de forma mais pacífica. Os índios do passado, de quando não existíamos nós, os brancos, ou quando éramos muito menores e não tínhamos chegado até lá, pensavam na terra como uma relação sem fronteira. Eles exploravam um pouco aqui, quando se esgotava mudavam para ali, até a natureza se regenerar, e havia um ciclo… Havia um território minimamente delimitado no imaginário de cada grupo, mas que era explorado de forma sazonal.
Como se fosse um manejo sustentável? Isso, e quando se exige demarcar o território, eles têm muito mais clareza de que é aquele pedaço ali que têm para fazer esse “manejo sustentável”, para as gerações que virão. A relação com o meio ambiente passa a ser bem mais cuidadosa. É o que começamos a ter em relação ao planeta: um espaço limitado, que não podemos explorar inadvertidamente ad aeternum. Embora tenhamos essa noção, continuamos explorando dessa forma.
Qual é a saída para conciliar esses dois modelos civilizatórios? Criar reservas? O que chamamos de reserva, e que a Constituição de 1988 chama de terra indígena, talvez não seja solução para o problema geral, mas é direito deles e dever nosso. A Constituição reconhece que os povos indígenas garantem uma diversidade e são uma riqueza do próprio povo brasileiro. O País é um dos poucos que têm 180 línguas indígenas faladas ainda hoje, por mais de 300 povos. Se entendermos isso, não há por que ter conflito com o índio.
Foi enviada proposta ao Congresso pelo Ministério da Justiça, que regulamenta a exploração mineral em terras indígenas, segundo a qual a comunidade receberia um percentual da extração. O senador Romero Jucá defende um acordo para transferência de parte da renda dos rizicultores para os índios. Isso desvirtua a cultura indígena, inserindo-a na nossa economia de mercado? São duas coisas diferentes. Na mineração, o subsolo é da União. Os recursos naturais que os índios têm são da superfície. Portanto, a União pode minerar em terra indígena. Mas, pela Constituição, para isso, deve haver lei específica, dizendo sob quais condições, porque a mineração é uma atividade extremamente detonadora. Como furar e tirar o que está embaixo sem tocar no que está em cima? Agora que os minérios estão em alta, especialmente em razão da demanda da China, isso voltou a ser um ponto crucial na pauta do Congresso.A Constituição já estabelece a necessidade de ouvir a comunidade minimamente com relação àquela atividade e compensá-la de alguma forma pelos danos. Mas como se compensa, pagam-se royalties? O que é compensar a comunidade? Isso tem de estar estabelecido em lei. Desde 1988 há projetos de lei que não se conseguiu votar no Congresso, por causa de diversos interesses antagônicos. Defensores dos direitos indígenas e alguns projetos dizem que há necessidade de ouvir a comunidade, mas em um processo que respeite minimamente o tempo dessas comunidades, para que elas consigam compreender o que vai acontecer com elas e se preparar para isso. E não um rolo compressor que chega lá, o índio assina embaixo e o Estado oferece qualquer coisa em troca, um recurso qualquer que seja tentador. Se não há uma legislação criando critérios para essa atividade, junto da mineradora vem a bebida, a prostituição, para dentro da vida de uma comunidade. O dano ambiental pode ser eventualmente recuperado depois pela mineradora, mas o que se faz com o dano cultural?
Se esses cuidados forem tomados, a exploração é viável? Não temos como não achar que é possível. Como advogada defensora dos direitos indígenas, diria que o ideal seria não explorar. Mas temos de ser pragmáticos. A mineração é uma atividade que interessa à União e deveríamos pensar nela não só nas terras indígenas – mas principalmente nelas, sob a óptica da sustentabilidade.
A senhora dizia que uma coisa era a mineração e outra coisa era a rizicultura… Admitir que os arrozeiros possam continuar dentro da Raposa Serra do Sol, plantando o arroz, e dando uma parte do recurso para os índios, é admitir que é possível manter uma situação ilegal e compensar os índios por ela. Então, podemos explorar mogno dentro das terras indígenas, desde que você dê um dinheirinho para os índios? Aí você começa a abrir as portas para não ter mais o Estado de Direito, e oficializa a corrupção. Quanto à mineração, temos uma base de legalidade para ela.
Qual é a dificuldade real para retirar esses agricultores? Como se explica a posição do STF? O Supremo é um órgão político que age sempre na tentativa de evitar conflito. Em 2 de março, quando o governo anunciou pela primeira vez que iria mandar as tropas da Polícia Federal para a retirada dos arrozeiros, o líder deles, Paulo César Quartiero, foi ao Supremo e entrou com uma liminar pedindo que suspendesse a ordem. O Supremo negou dizendo que isso daria margem a conflito de terra. Um mês depois, o estado de Roraima pediu a mesma coisa. Então, o Supremo mandou suspender a retirada, de novo sob a justificativa de evitar o conflito. Então são duas decisões, uma o contrário da outra, com a diferença de um mês, e sob a mesma argumentação. Quando o Supremo disse para continuar a operação da PF, qual seria a expectativa do STF e de todos nós? Que, no dia seguinte, o Executivo fosse lá, e usasse de todos os mecanismos possíveis para apoiar a PF para tirar seis arrozeiros.O que é tirar seis arrozeiros? O Brasil está à frente das forças de paz no Haiti, briga por uma vaga no Conselho Permanente da ONU, porque quer arbitrar os conflitos internacionais, maso que está acontecendo em Roraima é demais para a gente.Para a PF entrar por terra, numa área que é grande, remota, a não ser que você vá com uma frota de caminhões, é muito complexo. Então era preciso pegar um aviãozinho da FAB, ou um desses helicópteros grandes.Se a Aeronáutica tivesse apoiado, ou o Exército, com sua estrutura, a PF tinha entrado e retirado. Só que a Aeronáutica e o Exército boicotaram, porque usam o argumento da soberania, que tem por trás essa vontade de não se concretizar os direitos sobre aquela determinada terra, segundo o que a gente discutiu na sua primeira pergunta. O que faltou foi vontade política do Executivo. O presidente da República e o ministro da Justiça deveriam ter chamado o ministro da Defesa e dito: “Como não vai apoiar a retirada”? Mas só se manifestaram quando o Supremo já tinha dito: “Pára tudo”. Ou seja, um mês depois, depois que o Executivo levou tudo em fogo brando. Essa história já se repetiu em outros locais. A União anuncia com muita antecedência uma ação em área conflituosa. Ou ela está anunciando para quem estiver na área se preparar e se prevenir, ou ela não está muito a fim mesmo de fazer, e sim deixar que se crie um fato consumado, para depois dizer que não pôde fazer.
E agora acontecerá o quê? O Supremo deu 60 dias de suspensão da ordem de entrada da PF. Depois disso, a ordem de suspensão acaba, a PF entra, ou até antes, faz um acordo com os arrozeiros e eles vão embora. Essa é outra possibilidade. Quando a Raposa foi demarcada, havia cerca de 75 invasores, entre outros agricultores, pecuaristas. Esses foram saindo, depois da demarcação, quando viram que a área era indígena mesmo, que não haveria volta. Negociaram, receberam indenização. Quem resistiu foram os arrozeiros, que, aliás, foram os últimos a entrar, compraram as terras de quem saía e foram aumentando as suas posses dentro da Raposa.
O que evoluiu, em termos da formulação da lei, do seu cumprimento e da prática dos Direitos Humanos em relação aos povos indígenas desde o desenvolvimentismo dos anos 1970, quando os embates endureceram em nome do chamado “progresso”? Houve evolução ou involução? O governador local disse que a demarcação das terras indígenas ameaça a sociedade roraimense. Esse tipo de discurso só demonstra o quanto a população local desqualifica e desconsidera os índios como cidadãos brasileiros e como parte da sociedade. Isso tem a ver com preconceito, com anos de dificuldade de entendimento de que os índios podem ser outra coisa que não peão de obra. O primeiro órgão de proteção aos índios chamava-se Serviço de Proteção ao Índio (SPI, na década de 60) . Mas não era só isso, era Serviço de Proteção ao Índio e Procura de Trabalhadores e Mão-de-obra. Naquele tempo se achava que tínhamos de aculturar os índios, transformá-los em cidadãos regulares, para que se tornassem brasileiros. Desse ponto de vista, tivemos uma evolução. Na História, o índio sempre foi visto como preguiçoso, aquele que não quer aprender, não quer trabalhar. Nunca tivemos a capacidade de enxergar isso como um diferencial cultural, com o qual talvez a gente tivesse muito o que aprender. Nos canaviais das usinas de Mato Grosso do Sul, onde a mão-de-obra majoritariamente é indígena, há alguns anos, o Ministério Público do Trabalho teve de criar um acordo diferenciado entre os índios e os donos das usinas, onde eles iam se empregar. É que esses índios trabalham apenas para ganhar um dinheirinho.Depois que ganham, descansam, gastam e vão embora. Quando acaba, eles vão nas usinas pedir trabalho de novo… E não há nada que se possa fazer em relação a isso, porque é cultural. Então não tem décimo terceiro, não tem férias? Eles não querem, querem só viver suas vidas. E o que você faz? Obriga os índios a entrar na nossa lógica de acumulação de capital? Ou há a possibilidade de criar um sistema que acate, que traga também a lógica deles, e ao mesmo tempo não deixe os usineiros loucos, porque nunca sabem se no dia de amanhã terão empregados? Então se criou lá um contrato de trabalho diferenciado.
A senhora sustenta que o estado de Roraima existe hoje graças aos índios. Já o geógrafo e sociólogo Demetrio Magnoli, em artigo, cita o risco de perda de identidade nacional e política quando se evocam as nações ancestrais indígenas, porque elas não seguem a fronteira entre os países. As fronteiras nacionais não necessariamente reconhecem as fronteiras dos povos que ali estão. Os ianomâmi estão metade do lado de cá e metade do lado da Venezuela. Nós passamos uma linha no meio, dissemos que aqui é Brasil e ali é Venezuela, e que os que estão do lado de lá são venezuelanos e os de cá, brasileiros. Nem por isso houve problema de perda de soberania. Do ponto de vista jurídico, as terras indígenas são bens da União, inalienáveis e indisponíveis, o que define uma obrigação para o Estado de zelar por sua proteção e, portanto, afasta o “fantasma” da ameaça à soberania nacional. A presença do Exército em área de fronteira não é obstada pela existência de terras indígenas. Já os arrozeiros se recusam a aceitar a decisão do governo, mesmo sabendo que se trata de terra indígena, desafiando o Executivo e o próprio Judiciário. Sendo assim, valeria perguntar: quem afinal ameaça a soberania nacional?
Se de um lado há preconceito contra o índio, existe também a visão romantizada a respeito deles, talvez da idéia do “bom selvagem”. De onde vem essa noção, e a quem serve? Há situações em que o modo de viver dos índios não é tão benéfico ao meio ambiente? Fala-se, por exemplo, que eles alteraram profundamente a Floresta Amazônica. O que existe são estudos demonstrando que a Amazônia, com a sua biodiversidade e exuberância, é também fruto da intensa interação que os povos indígenas mantiveram ao longo dos séculos com o ambiente da região. O professor William Balée estuda isso há anos e comprovou de forma cabal que, sem a presença indígena, e mesmo de seringueiros, a Floresta Amazônica não teria a riqueza de hoje. As florestas na Amazônia são dominadas por espécies que controlam o acesso à luz solar. Grupos humanos, ao abrirem pequenas clareiras, criam oportunidades para que espécies oprimidas tenham uma janela de acesso à luz. O desafio, portanto, está em fugir de concepções extremadas como “ecologistas congênitos” ou “predadores naturais”, para adotar uma atitude de compreensão com o papel dos povos indígenas de bons manejadores dos recursos naturais, com baixo impacto no ambiente. Essa compreensão pode ajudar a sociedade brasileira a valorizar como um ativo importante a posse pelos índios de terras extensas, com taxas diminutas de população, que podem fazer a diferença em uma política de conservação e uso sustentável da Amazônia.É complicado ideologizar as práticas culturais de determinados povos, que orientam o uso dos seus recursos naturais para um grau de controle que evite a sua extinção, o que não significa não utilizá-los. Enquadrar essas práticas nas caixinhas conceituais de sustentabilidade, conservação e preservação não é tarefa impossível, mas sujeita a incompreensões de todos os matizes.
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