O repórter do The Guardian entra no apartamento da senadora Marina Silva, sete dias após o gesto com que ela encerrou cinco anos, quatro meses e 14 dias à frente do Ministério do Meio Ambiente. Pergunta, desavisado, por que tantas flores, se é aniversário de alguém. A senadora está no sofá ao lado da janela, onde costuma ler, conversar e fazer os deveres do curso de psicopedagogia da Universidade Católica. Os vidros estão abertos, o céu escandalosamente azul do outono brasiliense à mostra. Diferentemente da semana anterior, quando, mesmo com as cortinas fechadas, os flashes dos fotógrafos espocavam a cada vez que uma sombra se aproximava. Agora as coisas estão mais calmas, já aconteceu o primeiro encontro com o novo ministro, Carlos Minc. A vida volta ao normal. Será?
A saída de Marina foi cheia de significados e desnudamentos. Existe uma política ambiental ou o governo apenas suporta a “turma do Meio Ambiente”? É uma queda-de-braço entre Marina e setores do governo e da produção ou se espraia pela sociedade e pode gerar novos alinhamentos e atitudes? Ainda não se sabe, mas é possível ver impactos inesperados no ar. O repórter do The Guardian conta que perguntou ao taxista se sabia da demissão. Não só sabia, como comentou: “Sinto como se tivessem me tirado o tapete de baixo dos pés. Se uma mulher como a Marina Silva não consegue ficar, quem consegue?”
O repórter sai. A senadora se acomoda no sofá, dá um suspiro e fala para ninguém: “A gente tem de saber qual o movimento que vai nos dar força. Às vezes a força está na leveza. Aprendi isso vendo como era potente ouvir o canto do uirapuru ali no meio da floresta. Parecia a voz de uma pessoa falando alguma coisa que não se entendia. Era lindo. Tinha uma força que parecia que as árvores, os outros bichos, a gente mesmo, todo mundo parava para escutar, mas não se sentia paralisado. Ao contrário, a gente sabia que a floresta em torno estava toda viva e isso ficava até mais realçado”. Toca o telefone, um alto integrante do Poder Judiciário quer cumprimentá-la. Continua ressoando na sala um canto imaginário do uirapuru.
Os embates entre proteção ambiental e pressões desenvolvimentistas no núcleo duro do governo eram patentes desde a primeira gestão de Lula. No entanto, a senhora decidiu sair após 5 anos e meio. Acabou a paciência ou a esperança?
Não se trata de acabar a paciência, e nem a esperança. Aliás, o gesto de sair requer paciência, porque a gente sabe o que vai enfrentar a partir da decisão. Pode ser também o momento de renovar a esperança, porque meu objetivo era provocar um novo pacto em torno do que considero a agenda ambiental estratégica, que é viabilizar o desenvolvimento sustentável. Compreendi que comigo ela estaria emperrada, dada às crescentes dificuldades e resistências que vinha enfrentando dentro e fora do governo e que, de certa forma, são de conhecimento público. A gente gosta de localizar o empecilho nos outros, mas, às vezes, é preciso perceber que você é a pedra a ser mexida para reunir novas condições políticas e continuar avançando. Em muitos momentos fui formando essa compreensão, não há um fato específico. Desde questões como transgênicos, licenciamento de hidrelétricas do Rio Madeira, ainda que nesse caso se tenha reclamado mais das exigências para aumentar a qualidade do projeto do que por não ter licença. Antes as licenças eram dadas, mas, de uma média de 145 empreendimentos, 45 estavam parados na Justiça. Em 2007 foram 300 licenciamentos, mas nenhum foi judicializado. Mesmo assim, muita gente prefere o atalho tortuoso ao caminho reto. O bom é que muitas empresas já entenderam as vantagens do caminho, embora ele tenha um pouco mais de dificuldades e desafios no início.
Sua demissão agora é fruto das circunstâncias, ou já imaginava que não chegaria ao fim do governo Lula?
Minha permanência foi tensionada o tempo todo. Quem assume função pública sabe que pode sair a qualquer momento, por sua vontade ou de quem convidou, ou ainda por circunstâncias fora do controle de um e de outro. Não sei se ficaria até o fim deste mandato. Já que, no primeiro, muitas coisas foram conquistadas, apesar das dificuldades, meu sonho era sair quando entendesse que tinha fechado um ciclo e minha participação direta não se fizesse mais necessária, deixando à equipe a tarefa de seguir com a implementação da agenda. No segundo mandato, apresentei um novo termo de referência, com foco na reestruturação do ministério e do Ibama. Talvez as coisas mais difíceis e complexas tenham sido realizadas nos últimos cinco anos: a aprovação da Lei de Gestão de Florestas Públicas; o decreto das áreas prioritárias para conservação da biodiversidade; a criação do Serviço Florestal, do Instituto Chico Mendes, das secretarias de Mudanças Climáticas, de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental, de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável; o licenciamento de obras complexas e até a experiência de transversalidade. As grandes brigas da agenda ambiental foram enfrentadas. O ministro que assume tem uma base sólida. O desafio maior é o do desenvolvimento sustentável, mas não é algo que possa ser operado por um ministro isoladamente, depende da interação dentro do governo e com a sociedade. É um trânsito, mas não pode ser a passo de tartaruga. A missão da nossa geração é mudar da tartaruga para a lebre.
A saída mostra que os instrumentos estão dados e que governos, setor privado e sociedade precisam tomar a decisão de implementar? Desnuda que o Brasil está na hora H?
A maior parte dos instrumentos está dada. Precisamos é da decisão para valer de transitar desse modelo insustentável para uma situação que nos honre como fiéis depositários do futuro dos que ainda não nasceram. Todos querem deixar para os filhos segurança material, conhecimento, valores, cultura. Mas não temos a mesma noção quanto às riquezas e belezas que encontramos no planeta. O desafio fundamental da humanidade está reafirmado dramaticamente: como suprir as legítimas necessidades do presente sem comprometer os direitos dos que estão por vir. É uma interpelação ética, um ponto de vista civilizatório. Os reposicionamentos em relação a meio ambiente e desenvolvimento não são para atrapalhar o processo produtivo e, sim, para resgatar seu sentido no contexto de uma civilização em xeque. Não se pode só perguntar ao outro o que será feito. É uma pergunta que cada um deve fazer a si mesmo.
Qual sua maior frustração ao sair?
O fundamental é consolidar a política ambiental transversal e nesses anos fizemos alguns ensaios. Tivemos bons exemplos de que, quando diferentes setores se envolvem para resolver uma equação, o benefício para a sociedade, o meio ambiente e os empreendimentos é incomparavelmente maior. Um deles é a BR-163, que envolveu 22 ministérios; outros são o plano de combate ao desmatamento e a difícil tarefa de licenciar as usinas do Madeira, com expressivo ganho ambiental em relação à proposta inicial. Chegamos a um projeto com um lago oito vezes menor! Embora promissora, a idéia-força ransversal, no centro das decisões do governo, ficou num pequeno começo. O arranjo feito nas experiências pontuais agora se encontra em risco, porque setores que participaram não assumem aquilo a que se comprometeram, e a sociedade começa a manifestar certa frustração. Parece que as pessoas pensam que o arranjo da BR-163, por exemplo, era para viabilizar a estrada e não que ele próprio precisa se viabilizar como metodologia de ação. Não viram que a estrada era um componente do conjunto, não o elemento principal. Sem governança ambiental, é só uma estrada. Com governança ambiental, sinaliza outro paradigma de infra-estrutura para o desenvolvimento, de relação com a sociedade, as comunidades locais, as empresas, e na dinâmica do governo.
O que emperra a transversalidade?
Quando cito fora do Brasil exemplos nos quais atingimos bom grau de transversalidade na tomada de decisão, as pessoas se impressionam, porque, na maior parte do mundo, o tratamento é fragmentado. A dificuldade é generalizada, mas o Brasil talvez seja um dos países em melhores condições para superá-la. Falta-nos ainda percepção para ver na transversalidade um elemento de pioneirismo civilizatório, em um momento de crise global que coloca a questão ambiental não mais como problema apenas de ambientalistas e governo, mas de qualquer cidadão preocupado com o futuro do planeta. Felizmente ainda podemos reparar esse erro. Os pequenos passos dados demonstram que é possível dar grandes passos e o Brasil pode ser precursor de uma mudança-chave para o crescimento ambientalmente qualificado, que, não há dúvida, é o desafio deste século.
Quais setores foram mais resistentes à transversalidade e onde encontrou receptividade? Os setores no centro da dinâmica do processo econômico, tanto no setor privado quanto no governo, têm mais dificuldade de lidar com a transversalidade. Talvez isso se deva à cultura do desenvolvimento que acha que pode explorar a natureza sem fazer esforço tecnológico ou metodológico para poupá-la. Os setores com os quais, surpreendentemente, tive mais facilidade no governo foram os que lidam com a agenda de comando e controle. As Forças Armadas, o Ministério da Justiça. A Polícia Federal deu uma contribuição fantástica, criando 27 delegacias especializadas, fazendo mais de 20 operações conjuntas com o Ibama, o que levou cerca de 600 pessoas à cadeia e desconstituiu mais de 1.500 empresas criminosas. Com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, fizemos uma parceria com a portaria que inibiu 66 mil propriedades griladas que ocupavam, em média, 2 mil hectares de terras públicas. Se tivessem se consolidado na mão de grileiros, teria sido um estrago ambiental terrível na Amazônia.
Algum setor, na iniciativa privada, surpreendeu pelo engajamento em mudanças no processo de produção?
Se garimpar, encontram-se boas experiências na indústria, na produção agrícola, na pecuária. Em todos os segmentos há pessoas comprometidas com mudanças profundas. Acontece que, para ir além da exigência legal básica, não têm incentivo. Quando alguém sai da linha da média, não é estimulado a avançar. É preciso ter imediatamente instrumentos econômicos fortes para isso. Criamos um departamento para propor medidas para viabilizar o pagamento por serviços ambientais, apoiar a idéia de imposto de renda verde, mudar a lei de licitação para favorecer as “compras verdes”. Se as compras públicas preferirem papel reciclado, móveis de madeira certificada e arranjos produtivos ambientalmente corretos, esses segmentos podem reduzir seus custos a curto prazo, ter uma inserção de mercado induzida pelo próprio Estado e servir como efeito-demonstração.
Existe massa crítica no empresariado ou ainda são vozes isoladas que se engajam na linha da sustentabilidade socioambiental?
Existe uma massa significativa de pessoas e grupos que se associam, formando uma espécie de núcleo virtuoso. Os anéis desse núcleo precisam ser ampliados e, toda vez que se faz um discurso paternalista e patrimonialista, de que a legislação ambiental precisa ser flexibilizada, de que se está fiscalizando demais etc., deixa-se de puxar para o núcleo os setores que estão na borda. É como o pai que, quando o filho não quer estudar nem ter responsabilidade, diz: “Tudo bem, filhinho, não precisa”. Lá na frente, o filho paga um preço alto. Os produtores que têm capital e visão estratégica apostam em tecnologia, em certificação. Acontece na produção de álcool: há empresas que fecharam o ciclo produtivo com eficiência energética, uso correto da água, destinação adequada dos resíduos, cumprimento da legislação social e trabalhista – postura que os qualificará na ponta do mercado de biocombustíveis. Outros não fazem isso e lá adiante vão culpar quem não soube induzi-los a essa agenda. A mesmice parece fácil, mas, na verdade, traz problemas. Nosso papel não é o de nos conformar com uma linha de base rebaixada, mas de fazer com que ela possa ousar se transformar.
O ministro Minc, após conversa com o presidente, disse que recebeu apoio para manter a sua política no ministério e a resolução que impede a concessão de crédito para propriedades com irregularidades ambientais. A senhora acredita nessa sinalização?
É positivo que o presidente tenha afirmado que a política não muda e os avanços serão mantidos e consolidados. E também que o ministro Minc assuma com claro respaldo da sociedade para fazer mais, e não menos. Quando assumi em 2003, havia expectativa voltada para a pessoa. Hoje é diferente. A sociedade manifestou preocupação com o que pode acontecer com a mudança no ministério, e demonstrou estar atenta ao compromisso assumido pelo presidente. É sinal de que temos, sim, um novo acordo político, com um componente fundamental: o olhar da sociedade. Ainda que exista quem tenha dúvidas ou resista, há também os que têm plena consciência de que o Brasil precisa transitar da economia do século 19 para uma do século 21, incorporando critérios de sustentabilidade nos planejamentos públicos e privados.
A frase do presidente – “sai a companheira Marina, mas a política continua” – lembra os anos 1990 e as crises financeiras: saía ministro, entrava ministro, e o governo jurava que a política econômica não mudava. Hoje, é usada para a ministra do Meio Ambiente. O FMI e o Banco Mundial estão mergulhados no discurso do desenvolvimento sustentável. Trata-se de reconhecimento do meio ambiente como agenda estratégica e do Brasil como potência mundial?
Sem dúvida! Essa questão fez uma síntese do que venho dizendo: antigamente, havia agitação quando caía o ministro da Fazenda porque o signo era o da saúde financeira. Agora o mesmo acontece quando se julga que pode estar em risco a saúde dos ativos ambientais, que também são uma economia viva, dinâmica, capaz de gerar riquezas com qualidade de vida. Reflete um reposicionamento geral das preocupações do mundo atual. As pessoas não querem pensar apenas em como crescer, mas, sim, em como viver neste planeta cada vez mais hostil com quem o hostilizou. Espero que disso tudo emerja um novo arranjo civilizatório, no qual o Brasil tenha seu papel, assumindo ser uma potência ambiental. O Brasil pode criar uma nova narrativa para o seu fazer, para sua economia, de modo que as pessoas tenham certeza de que não acontecerá na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal, em todos os biomas, o que aconteceu na Mata Atlântica. Além disso, há coisas que dependem do esforço endógeno de cada país ou de uma relação bilateral, mas jamais se poderá prescindir do esforço multilateral. Alguns países que lideram a política planetária, pela força econômica e bélica, por que não se dispõem a liderar do mesmo jeito a reversão dos processos catastróficos relacionados ao aquecimento global? E o Brasil não pode mais fazer o discurso de que tem o direito de destruir florestas porque os países ricos fizeram isso desde a Revolução Industrial. Temos que nos posicionar sabendo que somos beneficiários do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, mas que nossas responsabilidades são grandes. Precisamos, claro, de financiamento, de transferência de tecnologia, mas sobretudo da decisão interna de fazer o que estiver ao alcance, como no caso do Plano de Desmatamento, que evitou a emissão meio bilhão de toneladas de CO2 em três anos; e do Programa do Álcool, que reduziu 600 milhões de toneladas em 30 anos.
Governos historicamente identificados com a esquerda, ao apontar oposição entre crescimento, emprego, renda e conservação ambiental, têm dificuldade com a idéia da sustentabilidade?
Não dá pra dizer que governos conservadores sejam mais sensíveis. Boa parte não é sensível nem à agenda social mínima. De um governo progressista se espera que tenha para o meio ambiente a mesma sensibilidade que tem para o social, mas a crise ambiental coloca em questão até mesmo a dicotomia direita/esquerda ou conservadores/progressistas. Se os progressistas precisam de água potável e ar puro, os conservadores também. Talvez seja esse o espaço em que se pode criar uma nova qualidade da relação entre os que se proclamam conservadores e progressistas. Afinal, há coisas tão grandiosas que tornam possível olhar na mesma direção, apesar das diferenças. Há um espelho no qual a imagem que se reflete é a do ser humano sem adjetivação, uma existência que depende das outras formas de existência. Esse espelho sugere que não se aprofundem as dicotomias, mas, sim, que se busque o que nos aproxima.
O Legislativo tem sido tímido nas questões ambientais. O desensenvolvimento sustentável pode ser a bandeira para mudar o tom da política, envolvendo os jovens?
As instituições andam em velocidade bem menor do que a sociedade. Eu sempre dizia à equipe que não estávamos inventando a roda, mas transformando em políticas públicas as boas idéias da sociedade, ainda que não na velocidade demandada. Não há dúvida de que o Congresso é lento nas respostas, 15 anos debatendo a Lei da Mata Atlântica para decidir se vamos preservar os 7% que restam… A política é o espaço em que diferentes setores da sociedade, em particular a juventude, podem ter um envolvimento, não necessariamente do jeito tradicional, filiando-se a um partido. Há núcleos vivos de prática política que podem servir de referência para os partidos. Setores, grupos, pessoas que pensam, agem e criam representam uma nova forma de organização, de fazer político. Se os partidos não forem capazes de perceber que não devem só disputar a hegemonia, mas procurar qualidade para ser parte de um todo, vamos perder o trem da história. A contribuição da política partidária e dos políticos é apenas uma, não é a contribuição. O exercício da política e da liderança não pode ser visto como a homogeneização do sonho nem a diluição das diferenças. As pessoas têm que ter o direito de sonhar diversificado, de ser diferentes, mas há determinados eixos que nos unem, nos aproximam.
O que falta para as lideranças e elites brasileiras assumirem sua parte na responsabilidade com as gerações futuras?
Uma vez li um artigo interessante. Dizia que o problema do Brasil não é a elite, é a falta de elite. As oligarquias pensam “no aqui, no agora e no meu”, a partir de si mesmas, como se pudessem ser a medida de todas as coisas e do outro. A elite é capaz de pensar estrategicamente, fazer concessões, negociar, mudar pontos de vista. Para mim, Chico Mendes foi uma pessoa da elite. Um jovem brilhante, capaz, generoso, antenado para o Brasil e o mundo, esteja em uma empresa, ONG, na universidade, onde for, é parte da elite do Brasil, independentemente de sua origem. Há pessoas que têm dinheiro, influência econômica e poder político, mas não são elite. Hoje, líder não é o porta-voz do sonho de todas as pessoas, mas aquele capaz de dizer que também sonha e, aí, colocar-se em relação de igualdade com os demais sonhadores.
A senhora se sente motivada para liderar um movimento para mudar a política no Brasil? Sinto-me muito motivada a ser parte desse movimento.
A senhora viveu a experiência das reservas extrativistas. Outras áreas de uso sustentável ainda são um calcanhar-de aquiles. O que falta para que se tornem padrão de desenvolvimento e renda para populações locais?
Ousamos criar o Instituto Chico Mendes exatamente para responder a essa questão. O Brasil tem 70 milhões de hectares de Unidades de Conservação (UC), e ainda é pouco. Tanto as unidades de uso sustentável quanto as de proteção integral poderiam se constituir em ativo econômico importante para atividades de turismo, pesquisa e outras. Somam algo do tamanho de Minas Gerais, mas, infelizmente, temos um déficit de implementação. Itatiaia, o parque mais antigo, só começou a ser regularizado em 2007, aos 71 anos. Se a consolidação do Instituto Chico Mendes for feita tendo em vista dois pilares – o das comunidades locais e o da proteção ambiental – e a síntese entre ambos, será algo inovador e relevante.
O Plano Amazônia Sustentável pretendia ser um grande plano de desenvolvimento, baseado em diagnósticos regionais, mas decepcionou os especialistas, a exemplo de Bertha Becker, que o considera enfraquecido. A senhora concorda? Foi preciso fazer concessões para aprová-lo?
O plano foi feito com a coordenação do Ministério da Integração e a colaboração de muitas pessoas e instituições, inclusive da professora Bertha Becker. Entendo que ele manteve os elementos para estabelecer um novo paradigma de desenvolvimento para a Amazônia, mas não se pode vê-lo como peça pronta e acabada. Sua elaboração teve caráter dinâmico e aberto. Por exemplo, não se esperou concluí-lo para decidir pela criação do Serviço Florestal Brasileiro. As coisas foram acontecendo concomitantemente. O plano contém um bom diagnóstico, diretrizes, e os eixos estão delineados. É uma ferramenta importante, mas não basta. Há que ter determinação política de querer, saber e poder fazer. O Brasil quer, sabe e pode fazer em boa parte, mas a coisa não acontece da noite para o dia.
A reserva extrativista do Xingu e outras estavam prontas para ser criadas, mas o decreto não foi assinado. É importante insistir?
Sim, para que se mantenham os avanços dos primeiros quatro anos do governo Lula, quando criamos mais de 20 milhões de hectares de Ucs. No último ano e cinco meses, o processo perdeu potência de forma preocupante, mas mesmo assim chegamos a quase 24 milhões de hectares, 40% de tudo o que foicriado desde que dom Pedro teve a idéia de fazer o Jardim Botânico do Rio. Além disso, antes se criavam unidades em regiões remotas. Hoje estamos na frente da expansão predatória. Antes não se tinha o mapa das áreas prioritárias; hoje há uma lógica que leva em conta os corredores ecológicos e outros elementos sociais e ecológicos, de modo a dinamizar a região a partir da existência da área protegida. Não podemos abrir mão da continuidade desse trabalho. Às vezes os estudos para criação dependem da ação dos governos estaduais e eles têm sido resistentes. Na área do estudo do Xingu há muitas ameaças e violência. Cheguei a receber de um trabalhador um bule que foicrivado de balas em um ataque de pistoleiros à casa dele. A experiência mostra que, quando os grileiros têm expectativa da posse, são muito mais agressivos. Quando a expectativa não existe porque o poder público criou uma UC, baixa o tensionamento. A irmã Dorothy foi assassinada no dia da assembléia para decidir sobre a criação da reserva do Riozinho do Anfrísio. Foicomo uma tentativa desesperada de desestabilizar uma decisão já tomada pelo governo federal. Espero que a reserva do Xingu seja criada logo. Não podemos esperar acontecer outra tragédia como a morte da irmã Dorothy e de outros companheiros.
Como é a Marina antes e depois do ministério?
Saio com um olhar mais para dentro dos problemas tanto nacionais quanto internacionais. Escutei muito nesses anos. Escutei arrozeiro, madeireiro, pecuarista, sojicultor, pescadores. Escutei trabalhadores em geral, industriais, cientistas, escutei populares, ONGs. E foi graças a essa escuta que volto, talvez, com maior condição de falar da tribuna do Senado. Cada vez mais precisamos requalificar os porta-vozes de determinadas questões. Os porta-vozes do ambientalismo hoje buscam soluções para o desenvolvimento e não só para a proteção ambiental. Os porta-vozes do agronegócio, dos setores produtivos, das comunidades, dos movimentos sociais precisam também requalificar seu discurso, porque sem isso não se credenciam para o diálogo, e logo estarão superados, porque a agricultura que o Brasil precisa é a agricultura sustentável, a pecuária que o Brasil precisa é a pecuária sustentável, e da mesma forma o biocombustível, a produção familiar, a produção industrial, cada um na sua escala.
Qual seu futuro político? Qual seu desejo de vida daqui pra frente? Meu desejo é continuar desejando. Vivi a oportunidade que o presidente Lula me deu de ficar cinco anos, quatro meses e 14 dias como ministra de Meio Ambiente. Volto para o Senado para continuar vivendo a oportunidade que a população do Acre me deu, já em quase 16 anos de mandato. A única coisa de que tenho clareza é que sou uma professora secundária de História. Esse é meu locus, mas sei que faço parte de um processo político e social maior em que a gente é convidado e se convida a participar. Vou tentar interpretar o convite que as pessoas e o mundo me fazem a todo momento, que certamente tem a ver com o que sou e como tenho agido. Ao mesmo tempo, penso em como vou me convidar a participar daqui em diante. Tenho 50 anos e vejo isso como uma coisa boa: você sente que já fez algumas coisas, e é em cima delas que pode fazer um pouco mais.