As audiências públicas para debater as concessões no Pará revelam que para inventar uma economia florestal de larga escala vai ser preciso compatibilizar objetivos empresariais e necessidades urbanas com o uso tradicional dos recursos locais
Por Carolina Derivi
Mesmo depois de cinco horas de viagem pelo Rio Trombetas, seu Raimundo da Silva, de 71 anos, caderninho em punho e atento a tudo, tomava anotações, sentado sozinho na primeira fila no salão da Câmara de Vereadores de Oriximiná. O município do Noroeste paraense, assim como os vizinhos Terra Santa e Faro, recebeu no final de julho uma audiência para tornar públicos e debater os termos do edital que vai nortear a segunda licitação para manejo florestal empresarial na Amazônia. A primeira, na Floresta Nacional (Flona) do Jamari, em Rondônia, está em fase final de escolha da empresa vencedora.
Seu Raimundo foi o último a pegar no microfone, depois de mais de quatro horas de reunião: “Vão desculpando, porque eu não sei falar direito. Eu me preocupo com a minha comunidade, porque a gente tinha muito peixe e hoje não tem mais. Tenho medo, não por mim, que já estou velho, mas por meus filhos e netos”.
A humildade não esconde que seu Raimundo é profundo conhecedor da região que deve integrar o regime de concessões florestais, a Floresta Nacional Saracá-Taquera. A Lei de Gestão de Florestas Públicas (LGFP), de 2006, permite que empresas explorem produtos e serviços florestais em Unidades de Conservação (UC) de uso sustentável. Esses mesmos recursos, desde muito antes que tal possibilidade fosse ao menos cogitada, foram e são usados por seu Raimundo como forma de subsistência, na comunidade Sacará, à margem do igarapé de mesmo nome. Da última vez em que uma empresa se instalou na vizinhança, praticamente se acabaram os peixes.
Foi há mais de 30 anos, quando a Mineração Rio do Norte (MRN) começou a explorar bauxita no coração da Flona, esta criada em 1989. No início, os rejeitos da lavagem do minério eram jogados diretamente no Lago do Batata, ligado ao igarapé, o que reduziu a diversidade de peixes a apenas seis espécies, segundo a própria MRN. Somente dez anos depois a mineradora instalou tanques para reter os rejeitos e passou a investir na recuperação do rio. “A água até hoje não é boa, não. Mas a gente bebe, porque não tem outra”, diz seu Raimundo.
Com a mira do desenvolvimento voltada para a Amazônia, cada vez mais os objetivos empresariais vão encontrar reivindicações como as de seu Raimundo. Após a audiência na Câmara, ele garantiu que voltaria tranqüilo para casa. Mas o debate apenas começou.
Ponto de partida A LGFP foi aprovada com base no que se tornou quase um axioma do desenvolvimento sustentável: para conservar os ativos naturais, é preciso passar pela via do mercado. A idéia é tão poderosa que as concessões florestais angariaram um razoável consenso entre setores freqüentemente antagônicos em matéria de política ambiental. Cientistas e ambientalistas, de um lado, e madeireiros e empresários, de outro, abandonaram discordâncias históricas para apoiar juntos o caminho da legalidade.
“O que se percebeu é que, mesmo com dúvidas, é melhor fazer dentro de um sistema legalizado do que pela exploração predatória”, resume Adrian Garda, diretor do Programa Amazônia da ONG Conservação Internacional. “Se continuarmos com o padrão de conservação para a Amazônia com foco quase exclusivo na ação fiscalizadora e pequenos incentivos locais a produtos florestais, não conseguiremos salvar a floresta”, ecoa Paulo Moutinho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Ainda resta, entretanto, quem veja nesse modelo – que concede a exploração dos recursos florestais a empresas privadas por 40 anos – o fantasma da “privatização”. Niro Higushi, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), lança mão de analogias para evidenciar o que acredita ser um processo irreversível: “Esse tipo de contrato, uma vez assinado, não se pode romper com facilidade. Guantánamo, por exemplo, é uma concessão americana dentro de Cuba. Por que não tiraram os americanos de lá? O Hugo Chávez, mesmo num regime autoritário, esperou até o último dia para não renovar a concessão daquela emissora de TV”.
Embora esteja claro que as empresas não serão proprietárias de áreas de floresta, mas sim concessionárias, resta equacionar como compatibilizar os usos empresarial e tradicional da mesma floresta e garantir que a gestão dos recursos vá além do aspecto conservacionista para promover uma agenda mais ampla de desenvolvimento e inclusão social. Pois bem que a floresta fique em pé, mas em que pé estarão as pessoas?
Para tentar compreender o complexo balanço social e histórico que se apresenta, PÁGINA 22 aceitou o convite do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), gestor do programa, para acompanhar as três audiências públicas, uma em cada município de Saracá-Taquera.
Cadê o grileiro?
Tomando como base o argumento de que a LGFP é um instrumento de combate à ocupação ilegal de terras e ao desmatamento na Amazônia, seria de esperar que a Flona paraense fosse tomada de grileiros e madeireiros ilegais. Mas a expectativa se contradiz logo na chegada.
O avião que parte de Manaus desembarca no simpático aeroporto do distrito industrial de Porto Trombetas, construído com toras envernizadas no estilo “florestal-tropical”. Antes de pegar as malas, é preciso retirar um cartão de identificação, chamado jocosamente por um dos passageiros de green card. Todos os visitantes precisam de autorização prévia para desembarcar no único aeroporto que dá acesso à Flona.
Área particular, fundada e administrada pela MRN, Porto Trombetas gera 18 milhões de toneladas de bauxita e R$ 450 milhões por ano. O distrito é lar para mais de 3 mil funcionários e a paisagem é da mais perfeita ordem, com ruas asfaltadas, pontos de ônibus, praças, um clube social com áreas de lazer e quadras poliesportivas.
Criada por decreto do então presidente José Sarney, a Flona compreende 429 mil hectares – mais de um terço é área de concessão de minério. “Toda a infra-estrutura foi trazida pela mineração. Aqui não tem grilagem. E desmatamento, só casos muito pontuais, de extração seletiva”, explica José Risonei, chefe substituto do escritório local do Instituto Chico Mendes e coordenador de fiscalização.
É unânime entre os moradores que conversaram com PÁGINA22 a opinião de que Saracá-Taquera foicriada com o intuito de proteger a área de mineração de invasões e da própria população local, em uma época em que o estabelecimento de Ucs não carecia de consultas públicas ou estudos prévios. De fato, o artigo sexto do decreto de criação da Flona deixa a cargo do Ibama as “desapropriações que se façam necessárias”.
Hoje, embora a ocupação da área central da Flona tenha sido ordenada pela atividade mineradora, há diversos agrupamentos humanos distribuídos nas bordas, dentro e fora dos limites de Saracá-Taquera.
Tasso Azevedo, diretor-geral do SFB, justifica o início das concessões em uma região relativamente simples do ponto de vista fundiário: “Escolhemos as Flonas como áreas prioritárias porque já existe plano de manejo, o que significa que o licenciamento ambiental prévio está feito. Nesses primeiros casos, a gente tem que estar seguro de tudo, de todos os lados, para depois testar os nossos limites”.
A próxima UC a ser licitada é a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, também no Pará, onde, segundo Azevedo, há uma farra de garimpeiros ilegais. Também na fila estão Ucs ao longo da BR-163 (Cuiabá- Santarém), região com um dos maiores índices de desmatamento acumulado da Amazônia. “Não é a concessão o instrumento de combate à ilegalidade, é a própria lei. Quem estiver brigando por terras em florestas públicas ainda não destinadas pode tirar o cavalinho da chuva, porque a lei só prevê três destinações possíveis: a proteção integral, o uso comunitário ou a concessão. É um desestímulo total à grilagem”, argumenta Azevedo.
Desigualdade cabocla
Única atividade industrial local, a mineração determinou o status socioeconômico e os contrastes entre os três municípios: Oriximiná, Terra Santa e Faro. Apenas o primeiro recebe royalties, em torno de R$ 26 milhões anuais, que ajudaram a estruturar a pequena cidade. Há bons hotéis e restaurantes e um parque de eventos, que, durante a visita da reportagem, recebia a Feira Agropecuária do Médio Amazonas. Hamilton Soares, dono do hotel Juruti, diz que as condições de vida são boas, mas adverte: “O pensamento aqui é muito paternalista. Tudo que a cidade precisa o poder público vai pedir à mineração. Não acho certo”. Aparentemente, a relação de dependência permeia a sociedade. Durante a audiência pública na Câmara Municipal, uma senhora perguntava aos passantes por um vereador. Queria dinheiro para tirar uma fotografia 3×4, necessária a um documento.
O prefeito de Terra Santa, Adalberto Cavalcanti, conta que a indefinição territorial entre os municípios ao tempo da instalação da MRN culminou com o entendimento de que as operações da empresa estavam integralmente em Oriximiná, apesar dos protestos das demais localidades. “Nosso município é muito massacrado territorialmente. As poucas pessoas que trabalham na mineração mantêm as famílias aqui mesmo. Ou seja, os custos sociais ficam todos com a gente.”A expectativa do SFB é “provocar uma revolução nos dois municípios que estão, de certa forma, esquecidos pela mineradora”, nas palavras de Tasso Azevedo. Segundo Cavalcanti, na área urbana de Terra Santa, quem não trabalha na prefeitura ou não tem um pequeno comércio está desempregado. Para ir ao encontro das necessidades, as regras da licitação dão mais peso aos benefícios sociais do que ao fator preço (quadro ao lado). Indicadores como geração de empregos locais e instalação de infra-estrutura e serviços geram pontos classificatórios. Um dos indicadores de maior pontuação é o processamento dos produtos florestais no próprio município, de modo a induzir a instalação de uma indústria florestal local, que gere produtos acabados e não somente a matéria-prima. O edital prevê a exploração tanto de produtos madeireiros quanto de não-madeireiros, e serviços como ecoturismo.
“A concessão é o fato econômico mais relevante de todos os tempos nessa região”, diz o deputado estadual Gabriel Guerreiro (PV), “mas precisamos garantir que o produto acabado seja gerado aqui. Senão, vamos assistir as toras saindo e o que vai sobrar é emprego de carregador de madeira. A filha do engenheiro florestal vai ter que se casar com um caboclinho daqui.” O deputado, presente nas três audiências, saiu-se com esse gracejo em todas as ocasiões, sempre arrancando aplausos efusivos do público.
Entre as garantias para as populações que vivem nas áreas de floresta está a exclusão do processo de licitação dos produtos mais importantes para o extrativismo local, como a castanha, o palmito e o fruto do açaí. Há também produtos considerados “casos especiais”, que só poderão ser explorados pelo manejo empresarial mediante autorização do SFB, de modo a não comprometer o uso tradicional. O plano de manejo da Flona está sob revisão, para garantir que nenhuma das quatro unidades (mapa abaixo) a ser licitadas inclua áreas habitadas. Mesmo assim, é de responsabilidade da empresa vencedora garantir o acesso das populações tradicionais às unidades de concessão.
Embora a LGFP admita a participação de cooperativas, associações e Oscips nas licitações, há quem considere desleal a disputa com grandes empresas. Azevedo resolve a questão de maneira taxativa: “Não faz sentido a comunidade local participar de um processo de concessão. Elas têm o direito de usar gratuitamente as áreas que ocupam e tradicionalmente exploram. Já a concessionária terá de pagar por isso”. Ele admite que a concessão poderia significar a ampliação dos negócios de empreendimentos comunitários que exploram os produtos florestais em algumas localidades, mas avalia que esse não é o caso em Saracá-Taquera.
Traumas e ruídos
Antes de desembarcar em Faro, a equipe do SFB foi informada de que havia uma manifestação contra a realização do evento. O mentor era o Padre Dico, maranhense, há 14 anos à frente da paróquia local. Foi preciso uma reunião prévia no salão da igreja – do lado de fora, o carro de som se preparava para reverberar o protesto – para explicar que o propósito da audiência seria esclarecer e ouvir a comunidade.
Em lugar da batina, menos apropriada ao calor amazônico, o padre vestia bermuda e uma camiseta do movimento social Gritos dos Excluídos. Compareceu à reunião acompanhado de um grupo de senhoras, que se posicionou atrás dele de braços cruzados como uma guarda pessoal. “A gente sabe que essas coisas não são sérias nem no Brasil, imagina aqui no ‘estrangeiro'”, disse Padre Dico, referindo-se à sensação de exclusão dos moradores de Faro e, quiçá, de toda Amazônia.
“A gente sabe como é, essas empresas chegam, e a população que não é organizada fica submissa.” Com os esclarecimentos devidamente prestados, o protesto foicancelado e a audiência pôde prosseguir.
Dona Rosa Maria Bacareli, uma das seguidoras do padre, não é moradora de Faro, mas de Araçatuba (SP). Foichamada especialmente para apoiar a manifestação.Sua ligação com o município remonta a 1986, quando trabalhou na região como missionária da Pastoral da Terra. “Naquele tempo a cobiça era o pau-rosa (árvore da qual se extraem óleos aromáticos). Acabou tudinho. Quem explorou ficou rico e quem trabalhou ficou pobre.”
O receio de dona Rosa é que a história se repita: “A notícia que correu é que a empresa já ia entrar amanhã e derrubar tudo. A gente não sabia que a concorrência ainda nem aconteceu”. O testemunho é indicativo de que a audiência pública deveria ser o ponto final de um processo amplo e prévio de informação. Luiz Carlos Joels, um dos diretores do SFB, faz o mea-culpa: “Admito que deveríamos ter realizado outras reuniões antes da audiência. Essa será a minha proposta para as próximas concessões”.
Para Azevedo, as audiências não são apenas um instituto obrigatório por lei, mas a oportunidade de descobrir em tempo possíveis erros que a sociedade cobrará mais tarde. Cabe perguntar, contudo, se talobjetivo será garantido quando, diante de uma platéia formada por ribeirinhos e pequenos agricultores, desfilam, sem maiores explicações, palavras como “minuta”, “edital”, “auditoria”. Em um dos slides mostrados em telão lêem-se definições herméticas como: “A concessão florestal é uma delegação onerosa do direito de praticar manejo”. Dona Rosa dá a letra: “Nós somos leigos. Eles tinham que trocar esses palavrões em miúdos”.
Ressentimento ambiental A configuração territorial que se estabeleceu na região a partir dos anos 1990 guarda questões mal resolvidas. Na porção norte da Flona foram criadas a Reserva Biológica do Rio Trombetas – um tipo de UC que estabelece proteção integral – e a Floresta Estadual Pará. Cercadas de áreas de conservação por todos os lados, as comunidades da região conhecida como Médio Trombetas ficaram “encolhidas”, como diz Diócles Rego Soares, líder comunitário. “Sobrou pouquinha terra. A gente não utiliza a Flona para atividade produtiva de grande escala, mas precisa de mais 6 mil hectares para sobreviver, porque a gente vive de forma extrativista. Há um interesse muito grande na Amazônia e nós morando dentro do que é dos outros. No futuro, nossos filhos vão nos culpar por isso.” Na platéia da audiência pública em Oriximiná, é impossível não notá-lo. Soares tem os cabelos longos, usa um colar de dentes de animais silvestres e uma boina militar com a imagem de Che Guevara.
Ao longo da reunião, alguém que usa um cordão de ouro o provoca: “Quantos animais tiveram que morrer pra você usar esse colar?” Ao que ele responde prontamente: “O meu cordão eu sei precisar: foi uma cotia, um macaco e um porco-do-mato. E esse seu aí, quantos animais tiveram que morrer para extrair esse ouro, você sabe?”
Na troca de palavras ásperas residem as marcas deixadas na população local por políticas ambientais restritivas e unilaterais. “Quando a Flona foicriada, houve muito conflito com o Ibama. Hoje mudou, há mais diálogo. Agora o conflito maior é com alguns latifundiários, criadores de gado, que estão de olho nas nossas terras”, complementa Kenar dos Santos Pena, representante da Associação de Moradores do Médio Trombetas. Em todas as audiências houve falas contra o Ibama e as restrições ambientais.
Do alto da mesa de apresentação, Joels esforçava- se em explicar que a política ambiental atual está baseada em novos paradigmas: “Abandonamos a prática do ‘não pode’, para entrar na do ‘como pode’. É isso que estamos tentando implementar aqui”. Mais tarde, o advogado da União e gerente de concessões Marcos Bliacheris comentaria, reservadamente: “Não tem jeito. Se estamos aquicomo governo, temos de arcar com 500 anos de história…”
Para o antropólogo e analista do Ministério Público Federal, Rafael Frederico Silva, a história recente ainda é uma história de traumas: “Houve uma trajetória de grandes projetos, como a mineração, a Rebio e a Flona, que de certa forma passaram por cima de todo um complexo de relações que as populações tradicionais desenvolviam e ainda desenvolvem em relação ao seu ambiente. Esse novo processo os preocupa, justamente pela idéia de empresas interessadas no estoque de recursos que eles levaram séculos para preservar”.
Um dos melhores testemunhos vivos dessa trajetória são as 34 comunidades quilombolas que habitam o entorno da Flona, fundadas por escravos fugidos das plantações de cacau no sul do Pará desde o início do século XIX. Carlos Printes, secretário da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (Arqmo), conta que os agrupamentos mais próximos da área de mineração – Boa Vista e Moura – abandonaram o modo de vida tradicional e formaram cooperativas para prestar serviços à MRN. “Ali eles alteraram muito o costume e as tradições que tinham antes. Agora eles trabalham de servente. Eu acho meio triste o jeito de vida deles.”
A principal atividade das demais comunidades é o extrativismo da castanha e da copaíba. Sobre as concessões florestais, Printes mostra-se indiferente: “Não interessa pra gente e não vai afetar o nosso território. O que a gente queria mesmo era uma fábrica para beneficiar a castanha e conseguir tirar um dinheiro melhor”, diz. A caixa com 42 litros é vendida pelos quilombolas a R$ 32 em Oriximiná. Beneficiada, chegaria a R$ 200, segundo Printes.
Manejo, para que te quero
José Risonei, do Instituto Chico Mendes, garante que as pessoas que moram no interior e no entorno da Flona têm acesso garantido aos recursos naturais para seu próprio uso. “Quem não pode retirar nada é o pessoal da cidade”, esclarece. Para que se criem empreendimentos florestais comerciais, no entanto, é preciso que essas populações tenham plano de manejo comunitário, que, por sua vez, demanda situação fundiária regular.
“Com a chegada de uma empresa, temos medo de que as pessoas de dentro da Flona vivam uma submissão. Somos a favor das concessões, mas queremos a regularização”, diz Elizabeth Godinho, da Associação dos Produtores Rurais da Serra (Aprus).
Moradora da comunidade Serra, Elizabeth conta que desde o ano 2000 a associação tenta titular a terra no Incra, devido ao interesse no manejo florestal. Mas em 2002, quando o Ibama oficializou o plano de manejo geral da Flona, a região foiconsiderada “área de recuperação florestal”, o que emperrou as pretensões comunitárias.
A reformulação do plano de manejo de Saracá-Taquera foi motivada para viabilizar as concessões, já que a LGFP proíbe que as empresas se instalem onde houver populações residentes. Mas a expectativa dos moradores, assim como do SFB, é que a revisão sirva também para destravar casos como o da comunidade Serra. O SFB enviou equipes técnicas a campo para identificar onde moram essas populações e refazer os mapas. Uma parceria com o Laboratório de Produtos Florestais (LPF), do Ibama, para identificar o potencial de produção comunitária está em curso.
Para impulsionar a economia florestal de grande escala, o governo dificilmente vai escapar de lidar, caso por caso, com décadas de negligência aos esforços de geração de renda baseados na autogestão. São demandas atreladas à cultura dos povos que habitam a floresta, acostumados que estão em garantir o próprio sustento sem precisar de salário ou patrão. Risonei, que vive a experiência da mineração em Saracá-Taquera, resume: “Essa situação toda é muito séria. Como é que a gente vai botar uma empresa para trabalhar aqui, dizer que ela pode fazer o manejo, e essas pessoas que moram aqui há tanto tempo não podem?”
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Controvérsia científica – O conhecimento sobre como manejar a floresta gera debate
O manejo florestal é um conjunto de técnicas desenvolvidas para garantir a permanente capacidade de a floresta oferecer produtos e serviços, com manutenção da biodiversidade e da regeneração natural. É um conhecimento desenvolvido no Brasil nos últimos 40 anos, mas que ainda gera controvérsias entre os pesquisadores.
“O ciclo de corte previsto pela legislação é de 30 anos, mas há uma série de dúvidas se esse período permite a regeneração”, diz Paulo Moutinho, do Ipam. Adrian Garda, da CI, também mostra preocupação: “Ainda precisamos de muita pesquisa associada. Em diversas espécies, não compreendemos o ciclo de crescimento nem o de reprodução”.
O grande trunfo do SFB nessa controvérsia é a presença, entre seu corpo de diretores, de José Natalino Macedo Silva, a quem Moutinho se refere como “o papa do manejo”. Natalino é doutor em manejo florestal e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária Amazônia Oriental (Embrapa) desde 1978. “Existem gaps em muitos aspectos, mas nós sabemos como se faz uma boa exploração para reduzir os impactos. A concessionária é obrigada a fazer monitoramento florestal para orientar o plano de manejo e isso vai nos ajudar a fazer ajustes ao longo do período”, diz Natalino.
Ele explica que pesquisadores lançaram mão de modelos matemáticos para prever o comportamento de florestas pelo período de 30 anos. A conclusão de alguns modelos é de que a intensidade de exploração madeireira – 0,83 metro cúbico por hectare – deveria ser menor. “Há quem defenda que deveríamos fazer o manejo por espécies, mas, se você for atender às necessidades de cada uma, fica doido e não faz nada. Tratamos a floresta como um grupo”, argumenta.
As audiências públicas para debater as concessões no Pará revelam que para inventar uma economia florestal de larga escala vai ser preciso compatibilizar objetivos empresariais e necessidades urbanas com o uso tradicional dos recursos locais
Por Carolina Derivi
Mesmo depois de cinco horas de viagem pelo Rio Trombetas, seu Raimundo da Silva, de 71 anos, caderninho em punho e atento a tudo, tomava anotações, sentado sozinho na primeira fila no salão da Câmara de Vereadores de Oriximiná. O município do Noroeste paraense, assim como os vizinhos Terra Santa e Faro, recebeu no final de julho uma audiência para tornar públicos e debater os termos do edital que vai nortear a segunda licitação para manejo florestal empresarial na Amazônia. A primeira, na Floresta Nacional (Flona) do Jamari, em Rondônia, está em fase final de escolha da empresa vencedora.
Seu Raimundo foi o último a pegar no microfone, depois de mais de quatro horas de reunião: “Vão desculpando, porque eu não sei falar direito. Eu me preocupo com a minha comunidade, porque a gente tinha muito peixe e hoje não tem mais. Tenho medo, não por mim, que já estou velho, mas por meus filhos e netos”.
A humildade não esconde que seu Raimundo é profundo conhecedor da região que deve integrar o regime de concessões florestais, a Floresta Nacional Saracá-Taquera. A Lei de Gestão de Florestas Públicas (LGFP), de 2006, permite que empresas explorem produtos e serviços florestais em Unidades de Conservação (UC) de uso sustentável. Esses mesmos recursos, desde muito antes que tal possibilidade fosse ao menos cogitada, foram e são usados por seu Raimundo como forma de subsistência, na comunidade Sacará, à margem do igarapé de mesmo nome. Da última vez em que uma empresa se instalou na vizinhança, praticamente se acabaram os peixes.
Foi há mais de 30 anos, quando a Mineração Rio do Norte (MRN) começou a explorar bauxita no coração da Flona, esta criada em 1989. No início, os rejeitos da lavagem do minério eram jogados diretamente no Lago do Batata, ligado ao igarapé, o que reduziu a diversidade de peixes a apenas seis espécies, segundo a própria MRN. Somente dez anos depois a mineradora instalou tanques para reter os rejeitos e passou a investir na recuperação do rio. “A água até hoje não é boa, não. Mas a gente bebe, porque não tem outra”, diz seu Raimundo.
Com a mira do desenvolvimento voltada para a Amazônia, cada vez mais os objetivos empresariais vão encontrar reivindicações como as de seu Raimundo. Após a audiência na Câmara, ele garantiu que voltaria tranqüilo para casa. Mas o debate apenas começou.
Ponto de partida A LGFP foi aprovada com base no que se tornou quase um axioma do desenvolvimento sustentável: para conservar os ativos naturais, é preciso passar pela via do mercado. A idéia é tão poderosa que as concessões florestais angariaram um razoável consenso entre setores freqüentemente antagônicos em matéria de política ambiental. Cientistas e ambientalistas, de um lado, e madeireiros e empresários, de outro, abandonaram discordâncias históricas para apoiar juntos o caminho da legalidade.
“O que se percebeu é que, mesmo com dúvidas, é melhor fazer dentro de um sistema legalizado do que pela exploração predatória”, resume Adrian Garda, diretor do Programa Amazônia da ONG Conservação Internacional. “Se continuarmos com o padrão de conservação para a Amazônia com foco quase exclusivo na ação fiscalizadora e pequenos incentivos locais a produtos florestais, não conseguiremos salvar a floresta”, ecoa Paulo Moutinho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Ainda resta, entretanto, quem veja nesse modelo – que concede a exploração dos recursos florestais a empresas privadas por 40 anos – o fantasma da “privatização”. Niro Higushi, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), lança mão de analogias para evidenciar o que acredita ser um processo irreversível: “Esse tipo de contrato, uma vez assinado, não se pode romper com facilidade. Guantánamo, por exemplo, é uma concessão americana dentro de Cuba. Por que não tiraram os americanos de lá? O Hugo Chávez, mesmo num regime autoritário, esperou até o último dia para não renovar a concessão daquela emissora de TV”.
Embora esteja claro que as empresas não serão proprietárias de áreas de floresta, mas sim concessionárias, resta equacionar como compatibilizar os usos empresarial e tradicional da mesma floresta e garantir que a gestão dos recursos vá além do aspecto conservacionista para promover uma agenda mais ampla de desenvolvimento e inclusão social. Pois bem que a floresta fique em pé, mas em que pé estarão as pessoas?
Para tentar compreender o complexo balanço social e histórico que se apresenta, PÁGINA 22 aceitou o convite do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), gestor do programa, para acompanhar as três audiências públicas, uma em cada município de Saracá-Taquera.
Cadê o grileiro?
Tomando como base o argumento de que a LGFP é um instrumento de combate à ocupação ilegal de terras e ao desmatamento na Amazônia, seria de esperar que a Flona paraense fosse tomada de grileiros e madeireiros ilegais. Mas a expectativa se contradiz logo na chegada.
O avião que parte de Manaus desembarca no simpático aeroporto do distrito industrial de Porto Trombetas, construído com toras envernizadas no estilo “florestal-tropical”. Antes de pegar as malas, é preciso retirar um cartão de identificação, chamado jocosamente por um dos passageiros de green card. Todos os visitantes precisam de autorização prévia para desembarcar no único aeroporto que dá acesso à Flona.
Área particular, fundada e administrada pela MRN, Porto Trombetas gera 18 milhões de toneladas de bauxita e R$ 450 milhões por ano. O distrito é lar para mais de 3 mil funcionários e a paisagem é da mais perfeita ordem, com ruas asfaltadas, pontos de ônibus, praças, um clube social com áreas de lazer e quadras poliesportivas.
Criada por decreto do então presidente José Sarney, a Flona compreende 429 mil hectares – mais de um terço é área de concessão de minério. “Toda a infra-estrutura foi trazida pela mineração. Aqui não tem grilagem. E desmatamento, só casos muito pontuais, de extração seletiva”, explica José Risonei, chefe substituto do escritório local do Instituto Chico Mendes e coordenador de fiscalização.
É unânime entre os moradores que conversaram com PÁGINA22 a opinião de que Saracá-Taquera foicriada com o intuito de proteger a área de mineração de invasões e da própria população local, em uma época em que o estabelecimento de Ucs não carecia de consultas públicas ou estudos prévios. De fato, o artigo sexto do decreto de criação da Flona deixa a cargo do Ibama as “desapropriações que se façam necessárias”.
Hoje, embora a ocupação da área central da Flona tenha sido ordenada pela atividade mineradora, há diversos agrupamentos humanos distribuídos nas bordas, dentro e fora dos limites de Saracá-Taquera.
Tasso Azevedo, diretor-geral do SFB, justifica o início das concessões em uma região relativamente simples do ponto de vista fundiário: “Escolhemos as Flonas como áreas prioritárias porque já existe plano de manejo, o que significa que o licenciamento ambiental prévio está feito. Nesses primeiros casos, a gente tem que estar seguro de tudo, de todos os lados, para depois testar os nossos limites”.
A próxima UC a ser licitada é a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, também no Pará, onde, segundo Azevedo, há uma farra de garimpeiros ilegais. Também na fila estão Ucs ao longo da BR-163 (Cuiabá- Santarém), região com um dos maiores índices de desmatamento acumulado da Amazônia. “Não é a concessão o instrumento de combate à ilegalidade, é a própria lei. Quem estiver brigando por terras em florestas públicas ainda não destinadas pode tirar o cavalinho da chuva, porque a lei só prevê três destinações possíveis: a proteção integral, o uso comunitário ou a concessão. É um desestímulo total à grilagem”, argumenta Azevedo.
Desigualdade cabocla
Única atividade industrial local, a mineração determinou o status socioeconômico e os contrastes entre os três municípios: Oriximiná, Terra Santa e Faro. Apenas o primeiro recebe royalties, em torno de R$ 26 milhões anuais, que ajudaram a estruturar a pequena cidade. Há bons hotéis e restaurantes e um parque de eventos, que, durante a visita da reportagem, recebia a Feira Agropecuária do Médio Amazonas. Hamilton Soares, dono do hotel Juruti, diz que as condições de vida são boas, mas adverte: “O pensamento aqui é muito paternalista. Tudo que a cidade precisa o poder público vai pedir à mineração. Não acho certo”. Aparentemente, a relação de dependência permeia a sociedade. Durante a audiência pública na Câmara Municipal, uma senhora perguntava aos passantes por um vereador. Queria dinheiro para tirar uma fotografia 3×4, necessária a um documento.
O prefeito de Terra Santa, Adalberto Cavalcanti, conta que a indefinição territorial entre os municípios ao tempo da instalação da MRN culminou com o entendimento de que as operações da empresa estavam integralmente em Oriximiná, apesar dos protestos das demais localidades. “Nosso município é muito massacrado territorialmente. As poucas pessoas que trabalham na mineração mantêm as famílias aqui mesmo. Ou seja, os custos sociais ficam todos com a gente.”A expectativa do SFB é “provocar uma revolução nos dois municípios que estão, de certa forma, esquecidos pela mineradora”, nas palavras de Tasso Azevedo. Segundo Cavalcanti, na área urbana de Terra Santa, quem não trabalha na prefeitura ou não tem um pequeno comércio está desempregado. Para ir ao encontro das necessidades, as regras da licitação dão mais peso aos benefícios sociais do que ao fator preço (quadro ao lado). Indicadores como geração de empregos locais e instalação de infra-estrutura e serviços geram pontos classificatórios. Um dos indicadores de maior pontuação é o processamento dos produtos florestais no próprio município, de modo a induzir a instalação de uma indústria florestal local, que gere produtos acabados e não somente a matéria-prima. O edital prevê a exploração tanto de produtos madeireiros quanto de não-madeireiros, e serviços como ecoturismo.
“A concessão é o fato econômico mais relevante de todos os tempos nessa região”, diz o deputado estadual Gabriel Guerreiro (PV), “mas precisamos garantir que o produto acabado seja gerado aqui. Senão, vamos assistir as toras saindo e o que vai sobrar é emprego de carregador de madeira. A filha do engenheiro florestal vai ter que se casar com um caboclinho daqui.” O deputado, presente nas três audiências, saiu-se com esse gracejo em todas as ocasiões, sempre arrancando aplausos efusivos do público.
Entre as garantias para as populações que vivem nas áreas de floresta está a exclusão do processo de licitação dos produtos mais importantes para o extrativismo local, como a castanha, o palmito e o fruto do açaí. Há também produtos considerados “casos especiais”, que só poderão ser explorados pelo manejo empresarial mediante autorização do SFB, de modo a não comprometer o uso tradicional. O plano de manejo da Flona está sob revisão, para garantir que nenhuma das quatro unidades (mapa abaixo) a ser licitadas inclua áreas habitadas. Mesmo assim, é de responsabilidade da empresa vencedora garantir o acesso das populações tradicionais às unidades de concessão.
Embora a LGFP admita a participação de cooperativas, associações e Oscips nas licitações, há quem considere desleal a disputa com grandes empresas. Azevedo resolve a questão de maneira taxativa: “Não faz sentido a comunidade local participar de um processo de concessão. Elas têm o direito de usar gratuitamente as áreas que ocupam e tradicionalmente exploram. Já a concessionária terá de pagar por isso”. Ele admite que a concessão poderia significar a ampliação dos negócios de empreendimentos comunitários que exploram os produtos florestais em algumas localidades, mas avalia que esse não é o caso em Saracá-Taquera.
Traumas e ruídos
Antes de desembarcar em Faro, a equipe do SFB foi informada de que havia uma manifestação contra a realização do evento. O mentor era o Padre Dico, maranhense, há 14 anos à frente da paróquia local. Foi preciso uma reunião prévia no salão da igreja – do lado de fora, o carro de som se preparava para reverberar o protesto – para explicar que o propósito da audiência seria esclarecer e ouvir a comunidade.
Em lugar da batina, menos apropriada ao calor amazônico, o padre vestia bermuda e uma camiseta do movimento social Gritos dos Excluídos. Compareceu à reunião acompanhado de um grupo de senhoras, que se posicionou atrás dele de braços cruzados como uma guarda pessoal. “A gente sabe que essas coisas não são sérias nem no Brasil, imagina aqui no ‘estrangeiro'”, disse Padre Dico, referindo-se à sensação de exclusão dos moradores de Faro e, quiçá, de toda Amazônia.
“A gente sabe como é, essas empresas chegam, e a população que não é organizada fica submissa.” Com os esclarecimentos devidamente prestados, o protesto foicancelado e a audiência pôde prosseguir.
Dona Rosa Maria Bacareli, uma das seguidoras do padre, não é moradora de Faro, mas de Araçatuba (SP). Foichamada especialmente para apoiar a manifestação.Sua ligação com o município remonta a 1986, quando trabalhou na região como missionária da Pastoral da Terra. “Naquele tempo a cobiça era o pau-rosa (árvore da qual se extraem óleos aromáticos). Acabou tudinho. Quem explorou ficou rico e quem trabalhou ficou pobre.”
O receio de dona Rosa é que a história se repita: “A notícia que correu é que a empresa já ia entrar amanhã e derrubar tudo. A gente não sabia que a concorrência ainda nem aconteceu”. O testemunho é indicativo de que a audiência pública deveria ser o ponto final de um processo amplo e prévio de informação. Luiz Carlos Joels, um dos diretores do SFB, faz o mea-culpa: “Admito que deveríamos ter realizado outras reuniões antes da audiência. Essa será a minha proposta para as próximas concessões”.
Para Azevedo, as audiências não são apenas um instituto obrigatório por lei, mas a oportunidade de descobrir em tempo possíveis erros que a sociedade cobrará mais tarde. Cabe perguntar, contudo, se talobjetivo será garantido quando, diante de uma platéia formada por ribeirinhos e pequenos agricultores, desfilam, sem maiores explicações, palavras como “minuta”, “edital”, “auditoria”. Em um dos slides mostrados em telão lêem-se definições herméticas como: “A concessão florestal é uma delegação onerosa do direito de praticar manejo”. Dona Rosa dá a letra: “Nós somos leigos. Eles tinham que trocar esses palavrões em miúdos”.
Ressentimento ambiental A configuração territorial que se estabeleceu na região a partir dos anos 1990 guarda questões mal resolvidas. Na porção norte da Flona foram criadas a Reserva Biológica do Rio Trombetas – um tipo de UC que estabelece proteção integral – e a Floresta Estadual Pará. Cercadas de áreas de conservação por todos os lados, as comunidades da região conhecida como Médio Trombetas ficaram “encolhidas”, como diz Diócles Rego Soares, líder comunitário. “Sobrou pouquinha terra. A gente não utiliza a Flona para atividade produtiva de grande escala, mas precisa de mais 6 mil hectares para sobreviver, porque a gente vive de forma extrativista. Há um interesse muito grande na Amazônia e nós morando dentro do que é dos outros. No futuro, nossos filhos vão nos culpar por isso.” Na platéia da audiência pública em Oriximiná, é impossível não notá-lo. Soares tem os cabelos longos, usa um colar de dentes de animais silvestres e uma boina militar com a imagem de Che Guevara.
Ao longo da reunião, alguém que usa um cordão de ouro o provoca: “Quantos animais tiveram que morrer pra você usar esse colar?” Ao que ele responde prontamente: “O meu cordão eu sei precisar: foi uma cotia, um macaco e um porco-do-mato. E esse seu aí, quantos animais tiveram que morrer para extrair esse ouro, você sabe?”
Na troca de palavras ásperas residem as marcas deixadas na população local por políticas ambientais restritivas e unilaterais. “Quando a Flona foicriada, houve muito conflito com o Ibama. Hoje mudou, há mais diálogo. Agora o conflito maior é com alguns latifundiários, criadores de gado, que estão de olho nas nossas terras”, complementa Kenar dos Santos Pena, representante da Associação de Moradores do Médio Trombetas. Em todas as audiências houve falas contra o Ibama e as restrições ambientais.
Do alto da mesa de apresentação, Joels esforçava- se em explicar que a política ambiental atual está baseada em novos paradigmas: “Abandonamos a prática do ‘não pode’, para entrar na do ‘como pode’. É isso que estamos tentando implementar aqui”. Mais tarde, o advogado da União e gerente de concessões Marcos Bliacheris comentaria, reservadamente: “Não tem jeito. Se estamos aquicomo governo, temos de arcar com 500 anos de história…”
Para o antropólogo e analista do Ministério Público Federal, Rafael Frederico Silva, a história recente ainda é uma história de traumas: “Houve uma trajetória de grandes projetos, como a mineração, a Rebio e a Flona, que de certa forma passaram por cima de todo um complexo de relações que as populações tradicionais desenvolviam e ainda desenvolvem em relação ao seu ambiente. Esse novo processo os preocupa, justamente pela idéia de empresas interessadas no estoque de recursos que eles levaram séculos para preservar”.
Um dos melhores testemunhos vivos dessa trajetória são as 34 comunidades quilombolas que habitam o entorno da Flona, fundadas por escravos fugidos das plantações de cacau no sul do Pará desde o início do século XIX. Carlos Printes, secretário da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (Arqmo), conta que os agrupamentos mais próximos da área de mineração – Boa Vista e Moura – abandonaram o modo de vida tradicional e formaram cooperativas para prestar serviços à MRN. “Ali eles alteraram muito o costume e as tradições que tinham antes. Agora eles trabalham de servente. Eu acho meio triste o jeito de vida deles.”
A principal atividade das demais comunidades é o extrativismo da castanha e da copaíba. Sobre as concessões florestais, Printes mostra-se indiferente: “Não interessa pra gente e não vai afetar o nosso território. O que a gente queria mesmo era uma fábrica para beneficiar a castanha e conseguir tirar um dinheiro melhor”, diz. A caixa com 42 litros é vendida pelos quilombolas a R$ 32 em Oriximiná. Beneficiada, chegaria a R$ 200, segundo Printes.
Manejo, para que te quero
José Risonei, do Instituto Chico Mendes, garante que as pessoas que moram no interior e no entorno da Flona têm acesso garantido aos recursos naturais para seu próprio uso. “Quem não pode retirar nada é o pessoal da cidade”, esclarece. Para que se criem empreendimentos florestais comerciais, no entanto, é preciso que essas populações tenham plano de manejo comunitário, que, por sua vez, demanda situação fundiária regular.
“Com a chegada de uma empresa, temos medo de que as pessoas de dentro da Flona vivam uma submissão. Somos a favor das concessões, mas queremos a regularização”, diz Elizabeth Godinho, da Associação dos Produtores Rurais da Serra (Aprus).
Moradora da comunidade Serra, Elizabeth conta que desde o ano 2000 a associação tenta titular a terra no Incra, devido ao interesse no manejo florestal. Mas em 2002, quando o Ibama oficializou o plano de manejo geral da Flona, a região foiconsiderada “área de recuperação florestal”, o que emperrou as pretensões comunitárias.
A reformulação do plano de manejo de Saracá-Taquera foi motivada para viabilizar as concessões, já que a LGFP proíbe que as empresas se instalem onde houver populações residentes. Mas a expectativa dos moradores, assim como do SFB, é que a revisão sirva também para destravar casos como o da comunidade Serra. O SFB enviou equipes técnicas a campo para identificar onde moram essas populações e refazer os mapas. Uma parceria com o Laboratório de Produtos Florestais (LPF), do Ibama, para identificar o potencial de produção comunitária está em curso.
Para impulsionar a economia florestal de grande escala, o governo dificilmente vai escapar de lidar, caso por caso, com décadas de negligência aos esforços de geração de renda baseados na autogestão. São demandas atreladas à cultura dos povos que habitam a floresta, acostumados que estão em garantir o próprio sustento sem precisar de salário ou patrão. Risonei, que vive a experiência da mineração em Saracá-Taquera, resume: “Essa situação toda é muito séria. Como é que a gente vai botar uma empresa para trabalhar aqui, dizer que ela pode fazer o manejo, e essas pessoas que moram aqui há tanto tempo não podem?”
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Controvérsia científica – O conhecimento sobre como manejar a floresta gera debate
O manejo florestal é um conjunto de técnicas desenvolvidas para garantir a permanente capacidade de a floresta oferecer produtos e serviços, com manutenção da biodiversidade e da regeneração natural. É um conhecimento desenvolvido no Brasil nos últimos 40 anos, mas que ainda gera controvérsias entre os pesquisadores.
“O ciclo de corte previsto pela legislação é de 30 anos, mas há uma série de dúvidas se esse período permite a regeneração”, diz Paulo Moutinho, do Ipam. Adrian Garda, da CI, também mostra preocupação: “Ainda precisamos de muita pesquisa associada. Em diversas espécies, não compreendemos o ciclo de crescimento nem o de reprodução”.
O grande trunfo do SFB nessa controvérsia é a presença, entre seu corpo de diretores, de José Natalino Macedo Silva, a quem Moutinho se refere como “o papa do manejo”. Natalino é doutor em manejo florestal e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária Amazônia Oriental (Embrapa) desde 1978. “Existem gaps em muitos aspectos, mas nós sabemos como se faz uma boa exploração para reduzir os impactos. A concessionária é obrigada a fazer monitoramento florestal para orientar o plano de manejo e isso vai nos ajudar a fazer ajustes ao longo do período”, diz Natalino.
Ele explica que pesquisadores lançaram mão de modelos matemáticos para prever o comportamento de florestas pelo período de 30 anos. A conclusão de alguns modelos é de que a intensidade de exploração madeireira – 0,83 metro cúbico por hectare – deveria ser menor. “Há quem defenda que deveríamos fazer o manejo por espécies, mas, se você for atender às necessidades de cada uma, fica doido e não faz nada. Tratamos a floresta como um grupo”, argumenta.
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