Práticas duvidosas na rede de suprimentos podem reverter a reputação das empresas, mesmo as que adotam os princípios e os valores da sustentabilidade
Por Daniela Gomes Pinto*
“Quanto menos as pessoas souberem como são feitas as salsichas e as leis, melhor elas dormirão”. No século XIX, à época da frase célebre de Bismarck, poucos se preocupavam em mostrar “ao povo” como as coisas eram feitas. Hoje, há muita gente perdendo o sono por conta disso.
A última insônia foi da Primark, fenômeno do setor de vestuário no Reino Unido. Nas lojas, são filas diárias de inglesas ensandecidas e turistas afogados em sacolas. O segredo do sucesso? Peças bonitas e estilosas a preços ridiculamente, impraticavelmente baratos.
Mas a BBC resolveu mostrar como as salsichas são feitas. Um documentário da rede de TV britânica rastreou a cadeia de fornecedores da Primark para descobrir a matemática milagrosa para os preços de seus produtos. Não demorou muito, encontrou “o milagre”: garotas de 11 anos, na Índia, em regime de semi-escravidão, bordando roupas que, dois meses depois, inundavam as prateleiras da loja em Oxford Street, no coração de Londres. E durmam as inglesas com um barulho desses.
O revés reputacional da empresa foi assunto recorrente em uma grande conferência sobre sustentabilidade na cadeia de fornecedores, que reuniu recentemente em Londres mais de 100 grandes empresas. Para elas, riscos de danos à imagem, somados à interrupção do fornecimento e à perda de fornecedores, são grandes motivadores para trabalhar junto com a cadeia para torná- la mais “ética” e “verde”. Mas até onde vai a responsabilidade das empresas com seus fornecedores?
Vai até onde a empresa alcança na prática, os princípios e valores que assumiu, concluíram os especialistas reunidos na conferência. No caso da Primark, não adiantou a companhia ter preceitos de comércio ético e auditorias exaustivas. Claramente, eles sofrem a concorrência desleal do que parece ser a essência do modelo de negócio: a redução de custos, a busca frenética por produtos mais e mais baratos. Não há conta que feche, não há princípio que se sustente com níveis de pressão tão grandes.
Trabalho infantil é um tema grave dos pontos de vista ético e regulatório. Mas nem sempre quem trabalha com a cadeia de fornecedores encontra sinais tão claros do que é “certo” ou “errado”. Um dos problemas de avaliar o impacto de um produto é metodológico: não há consenso sobre as melhores ferramentas.Ian Midgley, vice-presidente de compras da Unilever, diz que os esforços da empresa em medir as emissões de carbono de um único tipo de sabonete doméstico tiveram resultados confusos. “Ficou difícil avaliar a sustentabilidade do produto.”
Além disso, as empresas esbarram em escolhas difíceis, que envolvem juízos de valor. Ulrike Ebert, diretora de responsabilidade corporativa da Coca-Cola, diz que não basta fazer a análise de ciclo de vida: “Podemos ter uma produção neutralizada em carbono, mas com enorme uso de água em uma região onde o saneamento é precário. O que é mais importante: reduzir as emissões globais ou o uso de um recurso local escasso?” E completa: “Podemos fazer análise de ciclo de vida em relação ao impacto da produção na água, mas temos que decidir onde vai ser a prioridade de ação: água e pobreza, água e ecossistemas, água versus carbono”. São opções de caminhos distintos em direção à sustentabilidade.
Para Jim McDonnell, da PricewaterhouseCoopers, as decisões dependem do tipo de negócio que a empresa almeja: “Se você compra salmão para seu supermercado, tem duas opções: ou paga mais caro pelo salmão certificado escocês e ganha um nicho de mercado educando o consumidor, ou paga mais barato pelo produto russo, que não tem nenhum controle, mas traça junto com o fornecedor um plano de médio prazo com metas claras, para inserir sustentabilidade naquela produção”.
Só o ovo ou a galinha?
Para muitas companhias, educar tanto o fornecedor como o consumidor final é estratégico e responsabilidade das próprias empresas. Mas o consumidor também precisa, ele mesmo, definir seus princípios. Christopher Brown, diretor de compras sustentáveis da Asda – o braço britânico da Wal-Mart -, lembra que a produção de ovos orgânicos e “caipiras” emite mais carbono do que as granjas industriais. A Asda optou por oferecer os diferentes produtos ao consumidor. E é ele quem decide, na escolha do ovo, qual a importância, para ele, das mudanças climáticas, da crueldade com animais, do uso de agrotóxicos e também do buraco no seu bolso.
Assim como as empresas, o consumidor também tem que decidir para onde vai a “sua” sustentabilidade. Toda vez que meu marido via nosso filho vestindo uma roupa da Primark – que comprei quando chegamos em Londres -, ele fingia ler na etiqueta: “Primark: roupas de crianças… feitas por crianças”, em alusão à desconfiança de que a produção da empresa utilizasse trabalho infantil. Eu, mais crédula, achava graça. Agora, não acho mais.
*Residente em Londres, é geóloga, jornalista e mestre em desenvolvimento e meio ambiente pela London School of Economics an Political Science
Práticas duvidosas na rede de suprimentos podem reverter a reputação das empresas, mesmo as que adotam os princípios e os valores da sustentabilidade
Por Daniela Gomes Pinto*
“Quanto menos as pessoas souberem como são feitas as salsichas e as leis, melhor elas dormirão”. No século XIX, à época da frase célebre de Bismarck, poucos se preocupavam em mostrar “ao povo” como as coisas eram feitas. Hoje, há muita gente perdendo o sono por conta disso.
A última insônia foi da Primark, fenômeno do setor de vestuário no Reino Unido. Nas lojas, são filas diárias de inglesas ensandecidas e turistas afogados em sacolas. O segredo do sucesso? Peças bonitas e estilosas a preços ridiculamente, impraticavelmente baratos.
Mas a BBC resolveu mostrar como as salsichas são feitas. Um documentário da rede de TV britânica rastreou a cadeia de fornecedores da Primark para descobrir a matemática milagrosa para os preços de seus produtos. Não demorou muito, encontrou “o milagre”: garotas de 11 anos, na Índia, em regime de semi-escravidão, bordando roupas que, dois meses depois, inundavam as prateleiras da loja em Oxford Street, no coração de Londres. E durmam as inglesas com um barulho desses.
O revés reputacional da empresa foi assunto recorrente em uma grande conferência sobre sustentabilidade na cadeia de fornecedores, que reuniu recentemente em Londres mais de 100 grandes empresas. Para elas, riscos de danos à imagem, somados à interrupção do fornecimento e à perda de fornecedores, são grandes motivadores para trabalhar junto com a cadeia para torná- la mais “ética” e “verde”. Mas até onde vai a responsabilidade das empresas com seus fornecedores?
Vai até onde a empresa alcança na prática, os princípios e valores que assumiu, concluíram os especialistas reunidos na conferência. No caso da Primark, não adiantou a companhia ter preceitos de comércio ético e auditorias exaustivas. Claramente, eles sofrem a concorrência desleal do que parece ser a essência do modelo de negócio: a redução de custos, a busca frenética por produtos mais e mais baratos. Não há conta que feche, não há princípio que se sustente com níveis de pressão tão grandes.
Trabalho infantil é um tema grave dos pontos de vista ético e regulatório. Mas nem sempre quem trabalha com a cadeia de fornecedores encontra sinais tão claros do que é “certo” ou “errado”. Um dos problemas de avaliar o impacto de um produto é metodológico: não há consenso sobre as melhores ferramentas.Ian Midgley, vice-presidente de compras da Unilever, diz que os esforços da empresa em medir as emissões de carbono de um único tipo de sabonete doméstico tiveram resultados confusos. “Ficou difícil avaliar a sustentabilidade do produto.”
Além disso, as empresas esbarram em escolhas difíceis, que envolvem juízos de valor. Ulrike Ebert, diretora de responsabilidade corporativa da Coca-Cola, diz que não basta fazer a análise de ciclo de vida: “Podemos ter uma produção neutralizada em carbono, mas com enorme uso de água em uma região onde o saneamento é precário. O que é mais importante: reduzir as emissões globais ou o uso de um recurso local escasso?” E completa: “Podemos fazer análise de ciclo de vida em relação ao impacto da produção na água, mas temos que decidir onde vai ser a prioridade de ação: água e pobreza, água e ecossistemas, água versus carbono”. São opções de caminhos distintos em direção à sustentabilidade.
Para Jim McDonnell, da PricewaterhouseCoopers, as decisões dependem do tipo de negócio que a empresa almeja: “Se você compra salmão para seu supermercado, tem duas opções: ou paga mais caro pelo salmão certificado escocês e ganha um nicho de mercado educando o consumidor, ou paga mais barato pelo produto russo, que não tem nenhum controle, mas traça junto com o fornecedor um plano de médio prazo com metas claras, para inserir sustentabilidade naquela produção”.
Só o ovo ou a galinha?
Para muitas companhias, educar tanto o fornecedor como o consumidor final é estratégico e responsabilidade das próprias empresas. Mas o consumidor também precisa, ele mesmo, definir seus princípios. Christopher Brown, diretor de compras sustentáveis da Asda – o braço britânico da Wal-Mart -, lembra que a produção de ovos orgânicos e “caipiras” emite mais carbono do que as granjas industriais. A Asda optou por oferecer os diferentes produtos ao consumidor. E é ele quem decide, na escolha do ovo, qual a importância, para ele, das mudanças climáticas, da crueldade com animais, do uso de agrotóxicos e também do buraco no seu bolso.
Assim como as empresas, o consumidor também tem que decidir para onde vai a “sua” sustentabilidade. Toda vez que meu marido via nosso filho vestindo uma roupa da Primark – que comprei quando chegamos em Londres -, ele fingia ler na etiqueta: “Primark: roupas de crianças… feitas por crianças”, em alusão à desconfiança de que a produção da empresa utilizasse trabalho infantil. Eu, mais crédula, achava graça. Agora, não acho mais.
*Residente em Londres, é geóloga, jornalista e mestre em desenvolvimento e meio ambiente pela London School of Economics an Political Science
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