Na mais recente animação da Disney-Pixar, o robô WALL-E encara a missão de reconectar o homem à natureza e a si mesmo
Por Ariane Porto*
Férias de julho. As poucas salas de cinema do País – praias tradicionalmente invadidas pelas produções americanas – são refúgio para pais exaustos nos tumultuados shopping centers. Foi assim que conheci WALL-E: na sessão dublada das 19 horas, em um shopping abarrotado, feriado frio na metrópole. Após uma fila colossal, sentei-me ao lado de uma jovem mãe, que tentava manter a atenção do filho longe da sacola de brinquedos e do pote gigante de pipocas.
Mas o apelo dos brindes falava mais alto do que a própria história. WALL-E, uma animação teoricamente destinada ao público infantil, na verdade mira e não prescinde da mediação dos pais, que precisam explicar aos filhos que mundo é aquele em que o simpático robô vive.
Um mundo onde o homem não conseguiu manter relações harmônicas e equilibradas com a natureza. Contudo, de que natureza estamos falando?
O conceito implica questões de ordem cultural, filosófica e política, uma vez que cada sociedade institui uma idéia do que seja a natureza. Em sociedades tradicionais indígenas, aborígines ou orientais, assim como na Grécia pré-socrática, a natureza “estava cheia de deuses”, de forças misteriosas; a alma estava presente em tudo, em todos os lugares, sem distinção entre o homem e a natureza. Na sociedade contemporânea ocidental, a natureza opõe-se à cultura. O homem é o sujeito que deve possuir o objeto natureza, mas tal domínio só tem sentido a partir da constatação de que estão em campos opostos.
O personagem WALL-E, um robô que tem por missão limpar a Terra, reforça a maneira pela qual as crianças são apresentadas à questão ambiental – o homem não faz parte da natureza. A raiz da noção de que Para preservar a natureza é preciso afastar o homem pode ser identificada no naturalismo do século XIX, movimento que norteou a criação de parques e reservas naturais e ecológicas – o pioneiro foi o parque nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, estabelecido em 1872.
Mas a contradição homem-biosfera já havia surgido no século XVIII, quando os modelos de desenvolvimento adotados colocaram em risco os recursos naturais não-renováveis. Os efeitos da Revolução Industrial e da urbanização, o fortalecimento da indústria bélica, o aumento das fontes poluidoras e do volume de rejeitos da sociedade de consumo diminuíram a capacidade dos ecossistemas de se regenerar.
O capitalismo aqueceu o desenvolvimento tecnológico e econômico e rompeu a retroalimentação entre sociedade e ambiente físico. A diversificação da produção ultrapassou os limites da satisfação das necessidades básicas, criando novas necessidades, originadas em um sistema cada vez mais elaborado pela propaganda.
Essa realidade levou a questão ambiental para o centro das agendas públicas internacionais. A ecologia passou a ser tratada dentro do contexto social mais amplo, que envolve aspectos técnicos, políticos, econômicos, institucionais e culturais – no qual a comunicação desempenha função estratégica.
Os meios audiovisuais são, sem dúvida, os espaços privilegiados para a disseminação de conceitos e atitudes, incluindo o ideário ecológico.
Coração de lata
Mas voltemos à sessão. Meu pequeno vizinho, embora alheio a questões conceituais e filosóficas, tecia comentários que demonstravam uma clara percepção das mensagens subliminares do filme: “Para que a vida possa continuar a existir no planeta, é fácil – é só expulsar a raça humana”. Quem disse isso? Um robô, o mais humano dos humanos, cuja companheira é uma barata, aquele inseto indesejado, talvez o único sobrevivente no mundo que caminha a passos largos para a insustentabilidade.
Fez-me lembrar de uma experiência anterior. Durante um Encontro Nacional de Educação Ambiental, na Bahia, fomos convidados a julgar 700 trabalhos de crianças do Brasil inteiro, que realizaram desenhos e pinturas com o tema “A Mata Atlântica”.
Dos 700 trabalhos apresentados, apenas três tinham a figura humana, e nos três o homem aparecia com uma serra elétrica.
As primeiras seqüências de WALL-E contam tudo: um mundo soterrado em lixo e nos escombros de grandes lojas e anúncios de liquidação. A história se passa em meio ao que restou de uma guerra cuja finalidade foiconquistar o consumidor. E, como em todas as guerras, conquistador e conquistado saem perdendo. Em um planeta devastado pela guerra do consumo, nada mais pode existir.
Ou seja, quase nada. Restaram um robô e sua barata de estimação. No final do dia, cansado da árdua tarefa de limpar a Terra, WALL-E, como todo terráqueo, liga sua televisão e assiste a um bom filme: Hello, Dolly! Na tela, a mais pura ficção científica – um mundo lindo, limpo, povoado por pessoas gentis, alegres. Seres que cultivam o estranho hábito de dançar e passear de mãos dadas. No aparelho de som, La Vie en Rose e a mensagem inútil “don’t worry, be happy”.
Percebemos então que aquele monte de latas e parafusos se humaniza através da arte e passa a sonhar com a possibilidade de outra vida. Ela se materializa um belo dia, com a chegada de Eva, uma robô programada para descobrir se na Terra ainda há indícios de vida capazes de justificar o retorno de seus antigos habitantes.
Eles agora vivem em naves que são uma mistura de resorts com shopping centers, vagando pelo espaço, sem poder voltar para a casa que eles mesmos destruíram. Para ajudar a passar o tempo, muita compra e muita comida. Pesadelo para alguns, paraíso para outros. Resultado: uma legião de obesos alheios a tudo que não seja a realidade virtual em que vivem.
Abrir os poros
Nesse ponto, meu pequeno vizinho parou de se mexer na cadeira, vidrado na imagem familiar na tela – pessoas gordas, consumindo e se comunicando através de computadores. “Então é isso” – pode ter pensado o garoto irrequieto – “o mundo deu no que deu porque comemos muito, compramos muito e amamos pouco.” Precisamos que um robô nos ajude a encontrar a humanidade perdida. Que nos relembre que a capacidade de produzir arte distingue o homem dos outros animais, e talvez seja ela a única possibilidade de destapar nossos poros para absorver novamente a presença do “outro”. Será que não existem ainda humanos capazes dessa missão?
Sim, WALL-E é politicamente correto. Aprofunda um pouco mais do que o convencional a questão ambiental e aponta, com seus dedos de lata, para uma das feridas da contemporaneidade – a substituição dos valores humanísticos pelos mercadológicos. Indica que não existe problema ambiental que não seja antecedido pela desumanização do homem. Mostra que uma das grandes culpas da raça humana é a acomodação, a troca da ação real pelo “ativismo de sofá”. Aquele que faz com que a jovem mãe se sinta politicamente atuante por levar seus filhos para ver um fi me ecologicamente correto.
Pena que, ao se acenderem as luzes, nós nos encontremos novamente cercados pelo lixo produzido pelo tradicional cinema americano – copos de plástico, estojos e caixas com desenhos de WALL-E. E o que deveria ser o “ícone contra o consumo” se torna o mais novo campeão de licenciamento de produtos “ecologicamente corretos”.
Meu pequeno vizinho não sabe, mas está contribuindo para o aquecimento global dos negócios do já aquecido mercado ecológico.
O que pensará a barata disso tudo?
*Doutora em Comunicações e Artes pela ECA/USP e diretora do ECOCINE – Festival Internacional de Cinema Ambiental e Direitos Humanos
Na mais recente animação da Disney-Pixar, o robô WALL-E encara a missão de reconectar o homem à natureza e a si mesmo
Por Ariane Porto*
Férias de julho. As poucas salas de cinema do País – praias tradicionalmente invadidas pelas produções americanas – são refúgio para pais exaustos nos tumultuados shopping centers. Foi assim que conheci WALL-E: na sessão dublada das 19 horas, em um shopping abarrotado, feriado frio na metrópole. Após uma fila colossal, sentei-me ao lado de uma jovem mãe, que tentava manter a atenção do filho longe da sacola de brinquedos e do pote gigante de pipocas.
Mas o apelo dos brindes falava mais alto do que a própria história. WALL-E, uma animação teoricamente destinada ao público infantil, na verdade mira e não prescinde da mediação dos pais, que precisam explicar aos filhos que mundo é aquele em que o simpático robô vive.
Um mundo onde o homem não conseguiu manter relações harmônicas e equilibradas com a natureza. Contudo, de que natureza estamos falando?
O conceito implica questões de ordem cultural, filosófica e política, uma vez que cada sociedade institui uma idéia do que seja a natureza. Em sociedades tradicionais indígenas, aborígines ou orientais, assim como na Grécia pré-socrática, a natureza “estava cheia de deuses”, de forças misteriosas; a alma estava presente em tudo, em todos os lugares, sem distinção entre o homem e a natureza. Na sociedade contemporânea ocidental, a natureza opõe-se à cultura. O homem é o sujeito que deve possuir o objeto natureza, mas tal domínio só tem sentido a partir da constatação de que estão em campos opostos.
O personagem WALL-E, um robô que tem por missão limpar a Terra, reforça a maneira pela qual as crianças são apresentadas à questão ambiental – o homem não faz parte da natureza. A raiz da noção de que Para preservar a natureza é preciso afastar o homem pode ser identificada no naturalismo do século XIX, movimento que norteou a criação de parques e reservas naturais e ecológicas – o pioneiro foi o parque nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, estabelecido em 1872.
Mas a contradição homem-biosfera já havia surgido no século XVIII, quando os modelos de desenvolvimento adotados colocaram em risco os recursos naturais não-renováveis. Os efeitos da Revolução Industrial e da urbanização, o fortalecimento da indústria bélica, o aumento das fontes poluidoras e do volume de rejeitos da sociedade de consumo diminuíram a capacidade dos ecossistemas de se regenerar.
O capitalismo aqueceu o desenvolvimento tecnológico e econômico e rompeu a retroalimentação entre sociedade e ambiente físico. A diversificação da produção ultrapassou os limites da satisfação das necessidades básicas, criando novas necessidades, originadas em um sistema cada vez mais elaborado pela propaganda.
Essa realidade levou a questão ambiental para o centro das agendas públicas internacionais. A ecologia passou a ser tratada dentro do contexto social mais amplo, que envolve aspectos técnicos, políticos, econômicos, institucionais e culturais – no qual a comunicação desempenha função estratégica.
Os meios audiovisuais são, sem dúvida, os espaços privilegiados para a disseminação de conceitos e atitudes, incluindo o ideário ecológico.
Coração de lata
Mas voltemos à sessão. Meu pequeno vizinho, embora alheio a questões conceituais e filosóficas, tecia comentários que demonstravam uma clara percepção das mensagens subliminares do filme: “Para que a vida possa continuar a existir no planeta, é fácil – é só expulsar a raça humana”. Quem disse isso? Um robô, o mais humano dos humanos, cuja companheira é uma barata, aquele inseto indesejado, talvez o único sobrevivente no mundo que caminha a passos largos para a insustentabilidade.
Fez-me lembrar de uma experiência anterior. Durante um Encontro Nacional de Educação Ambiental, na Bahia, fomos convidados a julgar 700 trabalhos de crianças do Brasil inteiro, que realizaram desenhos e pinturas com o tema “A Mata Atlântica”.
Dos 700 trabalhos apresentados, apenas três tinham a figura humana, e nos três o homem aparecia com uma serra elétrica.
As primeiras seqüências de WALL-E contam tudo: um mundo soterrado em lixo e nos escombros de grandes lojas e anúncios de liquidação. A história se passa em meio ao que restou de uma guerra cuja finalidade foiconquistar o consumidor. E, como em todas as guerras, conquistador e conquistado saem perdendo. Em um planeta devastado pela guerra do consumo, nada mais pode existir.
Ou seja, quase nada. Restaram um robô e sua barata de estimação. No final do dia, cansado da árdua tarefa de limpar a Terra, WALL-E, como todo terráqueo, liga sua televisão e assiste a um bom filme: Hello, Dolly! Na tela, a mais pura ficção científica – um mundo lindo, limpo, povoado por pessoas gentis, alegres. Seres que cultivam o estranho hábito de dançar e passear de mãos dadas. No aparelho de som, La Vie en Rose e a mensagem inútil “don’t worry, be happy”.
Percebemos então que aquele monte de latas e parafusos se humaniza através da arte e passa a sonhar com a possibilidade de outra vida. Ela se materializa um belo dia, com a chegada de Eva, uma robô programada para descobrir se na Terra ainda há indícios de vida capazes de justificar o retorno de seus antigos habitantes.
Eles agora vivem em naves que são uma mistura de resorts com shopping centers, vagando pelo espaço, sem poder voltar para a casa que eles mesmos destruíram. Para ajudar a passar o tempo, muita compra e muita comida. Pesadelo para alguns, paraíso para outros. Resultado: uma legião de obesos alheios a tudo que não seja a realidade virtual em que vivem.
Abrir os poros
Nesse ponto, meu pequeno vizinho parou de se mexer na cadeira, vidrado na imagem familiar na tela – pessoas gordas, consumindo e se comunicando através de computadores. “Então é isso” – pode ter pensado o garoto irrequieto – “o mundo deu no que deu porque comemos muito, compramos muito e amamos pouco.” Precisamos que um robô nos ajude a encontrar a humanidade perdida. Que nos relembre que a capacidade de produzir arte distingue o homem dos outros animais, e talvez seja ela a única possibilidade de destapar nossos poros para absorver novamente a presença do “outro”. Será que não existem ainda humanos capazes dessa missão?
Sim, WALL-E é politicamente correto. Aprofunda um pouco mais do que o convencional a questão ambiental e aponta, com seus dedos de lata, para uma das feridas da contemporaneidade – a substituição dos valores humanísticos pelos mercadológicos. Indica que não existe problema ambiental que não seja antecedido pela desumanização do homem. Mostra que uma das grandes culpas da raça humana é a acomodação, a troca da ação real pelo “ativismo de sofá”. Aquele que faz com que a jovem mãe se sinta politicamente atuante por levar seus filhos para ver um fi me ecologicamente correto.
Pena que, ao se acenderem as luzes, nós nos encontremos novamente cercados pelo lixo produzido pelo tradicional cinema americano – copos de plástico, estojos e caixas com desenhos de WALL-E. E o que deveria ser o “ícone contra o consumo” se torna o mais novo campeão de licenciamento de produtos “ecologicamente corretos”.
Meu pequeno vizinho não sabe, mas está contribuindo para o aquecimento global dos negócios do já aquecido mercado ecológico.
O que pensará a barata disso tudo?
*Doutora em Comunicações e Artes pela ECA/USP e diretora do ECOCINE – Festival Internacional de Cinema Ambiental e Direitos Humanos
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