As eleições municipais testam a profundidade e a coerência da postura ética que as empresas adotam perante a sociedade por meio de suas políticas de responsabilidade socioambiental
Em todo o País, uma multidão já está nas ruas, ruelas, becos, praças, veredas, trilhas, rios, montanhas, praias. De avião, caminhão, ônibus, carro, trem, barco, canoa, a pé, são incansáveis. Estarão no rádio, na TV, a maioria durante ínfimos segundos. Alimentam-se mal, dormem pouco, falam sem parar, prometem, negociam, aliam-se, traem, são traídos. Uma vida de cão.
São cerca de 15 mil candidatos a prefeito, outros tantos a vice-prefeito e mais de 350 mil a vereador, em 5.564 municípios. Trezentos mil homens e 80 mil mulheres. Cerca de 45% formam um grupo em que estão os analfabetos, os que apenas lêem ou escrevem, os que têm o Ensino Fundamental incompleto, quem chegou até o final do Ensino Fundamental ou não terminou o Ensino Médio. É o Brasil real em marcha.
Para onde? A pergunta até provoca calafrios.O que os move nessa maratona que tanto pode ser vista como a maior expressão da democracia quanto como um retrato da corrida desenfreada da ambição pessoal rumo aos poderes pequenos e grandes que a carreira política oferece?
As eleições municipais – excetuando-se as metrópoles que funcionam como patamar para vôos individuais mais alentados ou prévia de acordos para pleitos presidenciais e estaduais – costumam ser vistas pelo senso comum como evento desimportante para o mainstream da vida nacional. O fato é que esse exército de peões da política são o Estado na vida real dos cidadãos.
Na maior parte do território nacional, o único elo com a noção de autoridade pública, de serviço ou desserviço público na sua forma mais concreta. E a única tradução de prática política. O debate local das eleições pode, contudo, desenrolar um fio cuja ponta vai dar nos temas estratégicos socioambientais da atualidade brasileira e mundial. Um deles é do papel do setor privado, não só em promover mudanças no processo produtivo para chegar a padrões mais sustentáveis de uso dos recursos naturais, como em colaborar para transformar a responsabilidade social e ambiental, que hoje coroa a imagem de tantos empreendimentos, em algo mais do que marketing ou promoção de melhorias materiais e provimento de serviços nos locais onde se instalam.
Estudo de impacto político
Responsabilidade social e ambiental é, antes de tudo, uma postura ética diante da sociedade. E aí entram as eleições para testar a profundidade e a coerência dessa escolha. Em inúmeros pequenos municípios, grandes empreendimentos, de significativo impacto social e ambiental, têm investimentos muitas vezes maiores do que o orçamento público e passam a exercer um poder que tende a se espraiar por todos os setores da vida econômica e social. E, infelizmente, também da vida política.
Talvez fosse cabível pensar, ao lado do EIA/RIMA, na necessidade de um hipotético EIP – Estudo de Impacto Político –, talo estrago que muitas empresas fazem em pequenos municípios para atingir o objetivo de manter sob controle as lideranças locais, de modo a tirar do caminho possíveis entraves administrativos ou sociais.
A chegada do período eleitoral, em lugares extremamente carentes, faz das empresas a meca dos financiamentos explícitos ou ocultos. Chega-se ao ponto de candidatos divulgarem que são os preferidos da “empresa tal”. Nesse caldo de cultura, a fronteira entre o apoio a candidatos e corrupção é praticamente inexistente, mesmo na ausência de um fato gerador legalmente identificável como crime.
O crime é social, é interferir em processos frágeis e, a peso de dinheiro, desviar os ocupantes de cargos públicos de seu papel de representantes dos interesses da comunidade, para, a rigor, transformá-los em títeres na esfera da política, desvitalizando- os da independência que deveria ser o centro de sua legitimidade pública.
O que, então, seria coerente com a cartilha de responsabilidade social das empresas? Em primeiro lugar, não interferir no resultado de eleições em benefício próprio e negociar seus interesses no município de maneira clara e nos foros adequados. Em segundo lugar, deixar patente para os candidatos sua neutralidade no pleito.
Em terceiro lugar, usar de seu poderio para apoiar iniciativas comunitárias que levem à criação de uma cultura política efetivamente democrática, de parâmetros não-clientelistas e não-patrimonialistas de relacionamento empresa-sociedade e empresa-poder municipal.
Além disso, nos períodos não-eleitorais, há um enorme trabalho a fazer por meio de ações que contribuam para levar à população informação e educação política, transformando cidadãos em eleitores conscientes, participativos e autônomos, avessos a qualquer forma de corrupção.
Sem política sustentável não haverá desenvolvimento sustentável. Ingenuidade? Não creio. Ingenuidade é acreditar que se é dotado de responsabilidade socioambiental e agir para carregar no bolso o que uma comunidade tem de mais precioso: a dignidade de seu espaço público.
*Jornalista e socióloga