Agir como se ações individuais fizessem a diferença vai muito além de compensar emissões de gases de efeito estufa. Como na infidelidade conjugal, é preciso discutir a relação
O mundo está ficando cada vez mais complicado, especialmente para quem anda preocupado com o mundo. O aquecimento global, grande desafio da atualidade, escancara a responsabilidade de cada um em relação às mudanças climáticas. Na tentativa de redimir nossa parcela de culpa e, quem sabe, assegurar um lugar no céu, o mercado nos dá uma mãozinha.
Esqueça a loira de curvas acentuadas. Na Inglaterra, o apelo dos novos anúncios de carros é estampar a quantidade de carbono que tal modelo emite em comparação com os concorrentes, ou detalhar as vantagens dos novos híbridos. Para os carros grandes e potentes, campeões de emissões, é oferecido um “acessório” aos consumidores potencialmente – ou pretensamente – conscientes: as emissões dos primeiros x mil quilômetros são compensadas pela montadora.
Ou seja, alguém, em algum lugar, recebe dinheiro para não emitir carbono. E as indulgências que o mercado oferece não param por aí. Vai passar o fim de semana em Barcelona? Na British Airways, basta um clique, 5 libras a menos em sua conta, e pronto – você está absolvido! É possível também compensar as emissões da sua nova prancha de surf, do seu tratamento dentário e até de um ente querido que morreu, com a “redenção” retroativa de uma vida inteira de pecados carbônicos.
A Carbon Neutral oferece uma lista de casamento inusitada: você escolhe a árvore que quer plantar na “floresta” dos noivos. E que tal presentear um amigo com um “vale-dia de carbono neutro”? Ele ganha o “certificado” de que, em tal dia, todas suas emissões terão sido compensadas. Graças a você.
AS DORES DA TRAIÇÃO
O controverso filósofo esloveno Slavoj Zizek chama a sociedade atual de “descafeinada”, em alusão ao fato de que tiramos dos produtos que consumimos suas substâncias nocivas, para seguir consumindo – livres de pecado – o café sem cafeína, o creme de leite sem gordura, a cerveja sem álcool.
Para Zizek, a “crença descafeinada” não ofende ninguém e nem mesmo precisamos estar totalmente comprometidos com ela. “Não se trata mais da antiga noção de medida certa entre prazer e temperança, mas a coisa que é prejudicial já deve conter em si o remédio para os males que causa.
Não nos dizem mais ‘beba café, mas com moderação’, agora é ‘beba todo o café que quiser, pois o café já está descafeinado’”, escreve o filósofo. Tal comportamento nos permitiria seguir vivendo a vida que desejamos, sem incorporar as consequências negativas desse modo de vida.
O problema dos excessos do mercado de carbono passa não apenas pelo desestímulo a alterações mais profundas no nosso padrão de vida, mas também pelas incertezas enormes que o próprio mercado enfrenta – e que não necessariamente transmite ao consumidor.
Uma crítica inteligente – e bem-humorada – ao esquema de compensações de carbono pode ser encontrada no site CheatNeutral. A página inicial resume o “serviço” oferecido: “Quando trai seu parceiro, você aumenta o ciúme e a dor na atmosfera. Mas você pode compensar sua infidelidade, financiando alguém a ser fiel e não trair. Assim, você neutraliza a infelicidade que levaria ao mundo e fica com a consciência tranquila!” Além de uma grande brincadeira, o site é uma alfinetada, pois instiga paralelos entre os dois esquemas.
Primeiro, a existência de um esquema para compensar a infidelidade não só torna aceitável ser infiel, como pode incentivar as pessoas a trair mais em vez der buscar outras soluções para seu relacionamento afetivo. Esquemas de compensação de carbono, além de tornarem “aceitável” emitir carbono, podem estimular os indivíduos a emitir mais em vez de buscar outros modos de vida e repensar sua relação com os combustíveis fósseis.
Em segundo lugar, compensar a infidelidade não reduz, na prática, a ocorrência de traições no mundo. Mesmo que eu compense minhas emissões e alguém deixe de emitir carbono do outro lado do planeta, a atmosfera ainda estará recebendo gases de efeito estufa – a conta final não é zero.
Por fim, da mesma forma que é praticamente impossível quantificar o estrago e a dor que alguém traído sofre, há sérias divergências sobre as formas de calcular as emissões ou o sequestro de carbono – especialmente aquelas decorrentes da plantação de árvores.
FINJA QUE FUNCIONA
As críticas fazem pensar, mas uma coisa é certa: é melhor compensar do que ignorar nossas emissões. Apesar das incertezas e dos abusos que cercam o mercado, o ato é relevante. Ações individuais, ainda que simbólicas, podem ser o motor propulsor para mudanças maiores, mais radicais e efetivas. “Às vezes precisamos agir como se nossas ações fossem fazer diferença, mesmo quando não sabemos ao certo se vão mesmo fazer”, diz Michael Pollan, colunista do jornal britânico The Guardian.
Para um desafio da proporção do aquecimento global, alterações no nosso estilo de vida fazem, sim, diferença. Mas não podem se limitar a ações ao alcance de um clique e alguns trocados. Elas passam por uma mudança de paradigma da sociedade, que só acontecerá com ações individuais intermediadas por muita reflexão, discussão e ações coletivas. A mera compra de indulgências não nos redimirá de nossos “pecados”. Muito menos garantirá nosso lugar na Terra.
*Jornalista, geóloga e mestre em desenvolvimento e meio ambiente pela London School of Economics
and Political Science[:en]Agir como se ações individuais fizessem a diferença vai muito além de compensar emissões de gases de efeito estufa. Como na infidelidade conjugal, é preciso discutir a relação
O mundo está ficando cada vez mais complicado, especialmente para quem anda preocupado com o mundo. O aquecimento global, grande desafio da atualidade, escancara a responsabilidade de cada um em relação às mudanças climáticas. Na tentativa de redimir nossa parcela de culpa e, quem sabe, assegurar um lugar no céu, o mercado nos dá uma mãozinha.
Esqueça a loira de curvas acentuadas. Na Inglaterra, o apelo dos novos anúncios de carros é estampar a quantidade de carbono que tal modelo emite em comparação com os concorrentes, ou detalhar as vantagens dos novos híbridos. Para os carros grandes e potentes, campeões de emissões, é oferecido um “acessório” aos consumidores potencialmente – ou pretensamente – conscientes: as emissões dos primeiros x mil quilômetros são compensadas pela montadora.
Ou seja, alguém, em algum lugar, recebe dinheiro para não emitir carbono. E as indulgências que o mercado oferece não param por aí. Vai passar o fim de semana em Barcelona? Na British Airways, basta um clique, 5 libras a menos em sua conta, e pronto – você está absolvido! É possível também compensar as emissões da sua nova prancha de surf, do seu tratamento dentário e até de um ente querido que morreu, com a “redenção” retroativa de uma vida inteira de pecados carbônicos.
A Carbon Neutral oferece uma lista de casamento inusitada: você escolhe a árvore que quer plantar na “floresta” dos noivos. E que tal presentear um amigo com um “vale-dia de carbono neutro”? Ele ganha o “certificado” de que, em tal dia, todas suas emissões terão sido compensadas. Graças a você.
AS DORES DA TRAIÇÃO
O controverso filósofo esloveno Slavoj Zizek chama a sociedade atual de “descafeinada”, em alusão ao fato de que tiramos dos produtos que consumimos suas substâncias nocivas, para seguir consumindo – livres de pecado – o café sem cafeína, o creme de leite sem gordura, a cerveja sem álcool.
Para Zizek, a “crença descafeinada” não ofende ninguém e nem mesmo precisamos estar totalmente comprometidos com ela. “Não se trata mais da antiga noção de medida certa entre prazer e temperança, mas a coisa que é prejudicial já deve conter em si o remédio para os males que causa.
Não nos dizem mais ‘beba café, mas com moderação’, agora é ‘beba todo o café que quiser, pois o café já está descafeinado’”, escreve o filósofo. Tal comportamento nos permitiria seguir vivendo a vida que desejamos, sem incorporar as consequências negativas desse modo de vida.
O problema dos excessos do mercado de carbono passa não apenas pelo desestímulo a alterações mais profundas no nosso padrão de vida, mas também pelas incertezas enormes que o próprio mercado enfrenta – e que não necessariamente transmite ao consumidor.
Uma crítica inteligente – e bem-humorada – ao esquema de compensações de carbono pode ser encontrada no site CheatNeutral. A página inicial resume o “serviço” oferecido: “Quando trai seu parceiro, você aumenta o ciúme e a dor na atmosfera. Mas você pode compensar sua infidelidade, financiando alguém a ser fiel e não trair. Assim, você neutraliza a infelicidade que levaria ao mundo e fica com a consciência tranquila!” Além de uma grande brincadeira, o site é uma alfinetada, pois instiga paralelos entre os dois esquemas.
Primeiro, a existência de um esquema para compensar a infidelidade não só torna aceitável ser infiel, como pode incentivar as pessoas a trair mais em vez der buscar outras soluções para seu relacionamento afetivo. Esquemas de compensação de carbono, além de tornarem “aceitável” emitir carbono, podem estimular os indivíduos a emitir mais em vez de buscar outros modos de vida e repensar sua relação com os combustíveis fósseis.
Em segundo lugar, compensar a infidelidade não reduz, na prática, a ocorrência de traições no mundo. Mesmo que eu compense minhas emissões e alguém deixe de emitir carbono do outro lado do planeta, a atmosfera ainda estará recebendo gases de efeito estufa – a conta final não é zero.
Por fim, da mesma forma que é praticamente impossível quantificar o estrago e a dor que alguém traído sofre, há sérias divergências sobre as formas de calcular as emissões ou o sequestro de carbono – especialmente aquelas decorrentes da plantação de árvores.
FINJA QUE FUNCIONA
As críticas fazem pensar, mas uma coisa é certa: é melhor compensar do que ignorar nossas emissões. Apesar das incertezas e dos abusos que cercam o mercado, o ato é relevante. Ações individuais, ainda que simbólicas, podem ser o motor propulsor para mudanças maiores, mais radicais e efetivas. “Às vezes precisamos agir como se nossas ações fossem fazer diferença, mesmo quando não sabemos ao certo se vão mesmo fazer”, diz Michael Pollan, colunista do jornal britânico The Guardian.
Para um desafio da proporção do aquecimento global, alterações no nosso estilo de vida fazem, sim, diferença. Mas não podem se limitar a ações ao alcance de um clique e alguns trocados. Elas passam por uma mudança de paradigma da sociedade, que só acontecerá com ações individuais intermediadas por muita reflexão, discussão e ações coletivas. A mera compra de indulgências não nos redimirá de nossos “pecados”. Muito menos garantirá nosso lugar na Terra.
*Jornalista, geóloga e mestre em desenvolvimento e meio ambiente pela London School of Economics
and Political Science