Sem gráficos, números nem discurso científico, um xamã do povo Eskimo-Kalaallit, da Groenlândia, lança mão da espiritualidade para mostrar como o modo de vida no Brasil influencia a vida no Ártico
Deslocamento é palavra-chave que acompanha a mensagem do velho Angaangaq, xamã do povo Eskimo-Kalaallit, moradores da Groenlândia. Desde que iniciou sua peregrinação pelo mundo em 1978, alertando a humanidade sobre o gelo que derrete no pólo, ele esteve com chefes de Estado, empresários importantes, pesquisadores, professores, estudantes, ambientalistas. Para todos, a mensagem é uma só: os pólos derretem porque o gelo nos corações é cada vez maior.
No auditório da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, no dia 13 de agosto, Angaangaq repetiu diversas vezes que havia se deslocado 17 mil quilômetros para estar ali. Mais do que a distância física, queria vencer a distância até o coração das pessoas.
Para isso, trouxe uma mistura de ambientalismo e espiritualidade, incomum para o público acostumado ao discurso científico que envolve o tema do aquecimento global. Havia mesmo um estranhamento no ar durante sua apresentação, em que fez uma palestra e promoveu um breve ritual de cura, com cantos, um instrumento de percussão e penas de águia.
Para facilitar a conexão com quem vive abaixo da latitude 66º33’39” norte, Angaangaq usa seu apelido: Uncle, referência em inglês ao significado de seu nome nativo – “o homem que se parece com seu tio”. Em entrevista a PÁGINA22, ele conta que a intenção da aproximação é evidenciar o laço que está frouxo, fundamental para reverter a degradação do planeta e da humanidade.
Mas não sem um quê de provocação, ao mostrar que, como vizinhos que desrespeitam o espaço alheio, o que fazemos nas zonas temperadas, tropicais e subtropicais afeta diretamente a vida nos pólos.
BORRACHA NO GELO
“Não sei se vocês sabem que na minha terra temos um Grande Gelo (Big Ice). É uma montanha de gelo. Antigamente tinha mais de 5 quilômetros na base. Agora, apenas 2,4. Tudo isso por causa do modo como se vive em São Paulo. Ele não é mais sustentável.”Angaangaq é sempre direto ao usar referências locais para falar das causas do problema, e dá exemplos que mostram que o impacto do modo de vida contemporâneo sobre o Ártico vai além do aumento do efeito estufa.
“Os pneus dos carros liberam pedaços de borracha no ar, que são levados pelos ventos até o pólo. Essa borracha, depositada no gelo, causa um grande derretimento”, contou, sem as explicações técnicas que normalmente abundam em um auditório de um centro de pesquisa. E, enquanto a platéia monta o filme desse deslocamento de partículas de borracha do asfalto até o gelo, Uncle fala de referências mais conhecidas: “O gás liberado pelo ar condicionado destrói a camada de ozônio e também derrete o gelo, formando grandes lagos onde eu moro”.
As mudanças que o excesso na produção e no consumo mundo afora causa no Ártico fazem parte da história recente dos esquimós. “Em 1963, um grupo de jovens viu que estava caindo água de uma altura de 700 metros na parede do Grande Gelo.
Fazia 30 graus negativos há três meses. Tudo deveria estar sólido. Eles contaram para os velhos, que acharam que eles tinham bebido. Mais tarde os velhos comprovaram que a água estava mesmo caindo. Agora esse grande gelo encolheu e em algumas partes têm apenas 100 metros de altura e não mais 1.500 metros.” Dos anos 1960, para cá, coisas estranhas vêm ocorrendo na Groenlândia. “Agora, em 2008, a temperatura à noite chegou a 18 graus por sete dias”, disse Angaangaq. “Quando chegamos em 4 graus, já achamos muito quente, tiramos os agasalhos. Isso está acontecendo ao Norte do Círculo Polar Ártico! A água está vindo tão rápido que pessoas que vão visitar o gelo morrem em acidentes, porque o chão se torna muito escorregadio.” Os poucos que vão conhecer a realidade dos povos que moram no gelo não conseguem mudar a atitude da sociedade global e seu impacto local. Mesmo os ambientalistas, com as boas intenções de proteger a sofrida fauna do Ártico, têm sua parcela de responsabilidade, na visão de Angaangaq. “Nossa comida vem das focas, das belugas, dos ursos, dos peixes. Sabe por quê? Nada pode ser cultivado na minha terra, coletamos algas e o resto tem que ser caçado. Mas a Europa não quer que eu cace focas. Eles querem que eu importe e coma o porco deles, produzido a milhares de quilômetros. Eu não posso. Meu sistema biológico não é para isso.” Os esquimós fazem parte da cadeia alimentar, lembra Angaangaq. “O problema vai muito além de salvar a foca bonitinha. Não podemos fazer uma lei só para a foca. Temos que fazer leis que tenham sentido para todos.”
ÁRVORE NO BRASIL, IGLU NO ÁRTICO
Faz pouco sentido, na visão de Angaangaq, cultivar batatas no Norte da Groenlândia – possível graças às recentes alterações de temperatura e cobertura de gelo. Também não parece racional gastar milhões para deslocar vilas que começam a afundar com o derretimento do gelo. Ou depender apenas de ações na Justiça para compensação pela poluição causada por empresas de petróleo, caso da comunidade de Kivalina, no Alasca.
“É fundamental que a gente encontre novas formas de fazer as coisas. A questão não é que eles tragam dinheiro para nós, mas que eles tiraram dinheiro de nós. O dinheiro tem um ciclo contínuo, não pode ter só um sentido, tem que circular, senão alguns ficam muito ricos e outros muito pobres.” Para evitar o derretimento no Ártico, é necessário que a intensidade da mudança seja bem maior do que acontece atualmente, defende Angaangaq. “As empresas me garantem que cortam árvores de maneira sustentável. Mas quantos milhões ainda são Cortados de modo ilegal? Toda vez que se corta árvore no Brasil, aumenta o aquecimento global e mais esquimós não poderão montar seus iglus, porque a neve fica muito mole, molhada.” E por isso ele se desloca quilômetros e quilômetros para conscientizar e incentivar a participação e a pressão democrática por novas políticas. “As pessoas do governo não são diferentes de nós. Se os governos não estão mudando, isso mostra que as pessoas também não estão mudando. Mas, se as pessoas sentem que o governo não toma iniciativa, elas devem fazer por si. A apatia não tem mais lugar. A ignorância não pode mais ser uma desculpa. É nossa vez de tomar a iniciativa.” Sem números nem gráficos ou discurso científico, ele lança mão da cultura. “Um xamã é um curador que não usa pílulas, mas outros recursos, como música, canto, penas de águia, para atingir o coração, e não a mente. É preciso alcançar e elevar o espírito do homem para a mudança.” É a espiritualidade que conecta o homem ao seu meio ambiente, acredita o esquimó, pois ela nos faz conhecer uns aos outros e perceber que não somos tão assustadores, que podemos fazer as coisas de outro modo.
Indagado sobre como operar a mudança interna às pessoas, Angaangaq mais uma vez recorre ao conhecimento tradicional. “Se você perguntar aos velhos, eles dizem que é muito fácil derreter o gelo no chão. Basta pôr a mão no gelo por alguns segundos e lá estará a marca. Mas derreter o gelo no coração é mais difícil. Precisamos olhar nos olhos um do outro, e tocar o coração um do outro e aprender a confiar um no outro novamente.”[:en]Sem gráficos, números nem discurso científico, um xamã do povo Eskimo-Kalaallit, da Groenlândia, lança mão da espiritualidade para mostrar como o modo de vida no Brasil influencia a vida no Ártico
Deslocamento é palavra-chave que acompanha a mensagem do velho Angaangaq, xamã do povo Eskimo-Kalaallit, moradores da Groenlândia. Desde que iniciou sua peregrinação pelo mundo em 1978, alertando a humanidade sobre o gelo que derrete no pólo, ele esteve com chefes de Estado, empresários importantes, pesquisadores, professores, estudantes, ambientalistas. Para todos, a mensagem é uma só: os pólos derretem porque o gelo nos corações é cada vez maior.
No auditório da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, no dia 13 de agosto, Angaangaq repetiu diversas vezes que havia se deslocado 17 mil quilômetros para estar ali. Mais do que a distância física, queria vencer a distância até o coração das pessoas.
Para isso, trouxe uma mistura de ambientalismo e espiritualidade, incomum para o público acostumado ao discurso científico que envolve o tema do aquecimento global. Havia mesmo um estranhamento no ar durante sua apresentação, em que fez uma palestra e promoveu um breve ritual de cura, com cantos, um instrumento de percussão e penas de águia.
Para facilitar a conexão com quem vive abaixo da latitude 66º33’39” norte, Angaangaq usa seu apelido: Uncle, referência em inglês ao significado de seu nome nativo – “o homem que se parece com seu tio”. Em entrevista a PÁGINA22, ele conta que a intenção da aproximação é evidenciar o laço que está frouxo, fundamental para reverter a degradação do planeta e da humanidade.
Mas não sem um quê de provocação, ao mostrar que, como vizinhos que desrespeitam o espaço alheio, o que fazemos nas zonas temperadas, tropicais e subtropicais afeta diretamente a vida nos pólos.
BORRACHA NO GELO
“Não sei se vocês sabem que na minha terra temos um Grande Gelo (Big Ice). É uma montanha de gelo. Antigamente tinha mais de 5 quilômetros na base. Agora, apenas 2,4. Tudo isso por causa do modo como se vive em São Paulo. Ele não é mais sustentável.”Angaangaq é sempre direto ao usar referências locais para falar das causas do problema, e dá exemplos que mostram que o impacto do modo de vida contemporâneo sobre o Ártico vai além do aumento do efeito estufa.
“Os pneus dos carros liberam pedaços de borracha no ar, que são levados pelos ventos até o pólo. Essa borracha, depositada no gelo, causa um grande derretimento”, contou, sem as explicações técnicas que normalmente abundam em um auditório de um centro de pesquisa. E, enquanto a platéia monta o filme desse deslocamento de partículas de borracha do asfalto até o gelo, Uncle fala de referências mais conhecidas: “O gás liberado pelo ar condicionado destrói a camada de ozônio e também derrete o gelo, formando grandes lagos onde eu moro”.
As mudanças que o excesso na produção e no consumo mundo afora causa no Ártico fazem parte da história recente dos esquimós. “Em 1963, um grupo de jovens viu que estava caindo água de uma altura de 700 metros na parede do Grande Gelo.
Fazia 30 graus negativos há três meses. Tudo deveria estar sólido. Eles contaram para os velhos, que acharam que eles tinham bebido. Mais tarde os velhos comprovaram que a água estava mesmo caindo. Agora esse grande gelo encolheu e em algumas partes têm apenas 100 metros de altura e não mais 1.500 metros.” Dos anos 1960, para cá, coisas estranhas vêm ocorrendo na Groenlândia. “Agora, em 2008, a temperatura à noite chegou a 18 graus por sete dias”, disse Angaangaq. “Quando chegamos em 4 graus, já achamos muito quente, tiramos os agasalhos. Isso está acontecendo ao Norte do Círculo Polar Ártico! A água está vindo tão rápido que pessoas que vão visitar o gelo morrem em acidentes, porque o chão se torna muito escorregadio.” Os poucos que vão conhecer a realidade dos povos que moram no gelo não conseguem mudar a atitude da sociedade global e seu impacto local. Mesmo os ambientalistas, com as boas intenções de proteger a sofrida fauna do Ártico, têm sua parcela de responsabilidade, na visão de Angaangaq. “Nossa comida vem das focas, das belugas, dos ursos, dos peixes. Sabe por quê? Nada pode ser cultivado na minha terra, coletamos algas e o resto tem que ser caçado. Mas a Europa não quer que eu cace focas. Eles querem que eu importe e coma o porco deles, produzido a milhares de quilômetros. Eu não posso. Meu sistema biológico não é para isso.” Os esquimós fazem parte da cadeia alimentar, lembra Angaangaq. “O problema vai muito além de salvar a foca bonitinha. Não podemos fazer uma lei só para a foca. Temos que fazer leis que tenham sentido para todos.”
ÁRVORE NO BRASIL, IGLU NO ÁRTICO
Faz pouco sentido, na visão de Angaangaq, cultivar batatas no Norte da Groenlândia – possível graças às recentes alterações de temperatura e cobertura de gelo. Também não parece racional gastar milhões para deslocar vilas que começam a afundar com o derretimento do gelo. Ou depender apenas de ações na Justiça para compensação pela poluição causada por empresas de petróleo, caso da comunidade de Kivalina, no Alasca.
“É fundamental que a gente encontre novas formas de fazer as coisas. A questão não é que eles tragam dinheiro para nós, mas que eles tiraram dinheiro de nós. O dinheiro tem um ciclo contínuo, não pode ter só um sentido, tem que circular, senão alguns ficam muito ricos e outros muito pobres.” Para evitar o derretimento no Ártico, é necessário que a intensidade da mudança seja bem maior do que acontece atualmente, defende Angaangaq. “As empresas me garantem que cortam árvores de maneira sustentável. Mas quantos milhões ainda são Cortados de modo ilegal? Toda vez que se corta árvore no Brasil, aumenta o aquecimento global e mais esquimós não poderão montar seus iglus, porque a neve fica muito mole, molhada.” E por isso ele se desloca quilômetros e quilômetros para conscientizar e incentivar a participação e a pressão democrática por novas políticas. “As pessoas do governo não são diferentes de nós. Se os governos não estão mudando, isso mostra que as pessoas também não estão mudando. Mas, se as pessoas sentem que o governo não toma iniciativa, elas devem fazer por si. A apatia não tem mais lugar. A ignorância não pode mais ser uma desculpa. É nossa vez de tomar a iniciativa.” Sem números nem gráficos ou discurso científico, ele lança mão da cultura. “Um xamã é um curador que não usa pílulas, mas outros recursos, como música, canto, penas de águia, para atingir o coração, e não a mente. É preciso alcançar e elevar o espírito do homem para a mudança.” É a espiritualidade que conecta o homem ao seu meio ambiente, acredita o esquimó, pois ela nos faz conhecer uns aos outros e perceber que não somos tão assustadores, que podemos fazer as coisas de outro modo.
Indagado sobre como operar a mudança interna às pessoas, Angaangaq mais uma vez recorre ao conhecimento tradicional. “Se você perguntar aos velhos, eles dizem que é muito fácil derreter o gelo no chão. Basta pôr a mão no gelo por alguns segundos e lá estará a marca. Mas derreter o gelo no coração é mais difícil. Precisamos olhar nos olhos um do outro, e tocar o coração um do outro e aprender a confiar um no outro novamente.”