O estica-e-puxa da felicidade é ginástica talvez parecida com a do mercado de ações. Quem sabe é preciso derrubar tudo para fazer tudo de novo?
O calor que começa a derreter a alma nestes últimos meses do ano pode vir acompanhado da sensação de impotência diante do consumo do Natalou da ansiedade da perda de dividendos com a crise financeira. Ou nada disso, pode servir para um bom bronzeado junto dos amigos, amores, família, trocando os presentes possíveis, muitas vezes gargalhadas guardadas dos primeiros meses, quando o trabalho duro tomou conta da vida de maneira que, entre acordar e dormir, pouco sobrou para festa.
Dinheiro não traz felicidade, mas compra boa parte dela – o ditado popular incorporado até em propaganda de cartão de crédito volta sempre a mesa de bar, artigo de revista, tema de seminário. Afinal, discutir felicidade é a própria reflexão sobre o que é importante na vida. A melhor vida a nosso alcance. Sob o risco de a discussão até mesmo a deixar, a tal felicidade, escapulir. Mas vamos em frente, porque há muita aflição.
O estica-e-puxa da felicidade vira incógnita, é solucionado, volta a complicar, uma ginástica talvez parecida com a do mercado de ações. Quebradeira financeira vira uma boa hora de ver aquele “para onde caminha a humanidade”, pensando que crise é hora de balanço. Quem sabe é preciso derrubar tudo para fazer de novo? O.k. Sabemos que não há interrupção possível, o budismo, o rio, as estações, nosso corpo apontam para o movimento contínuo. Mas, e agora, que tínhamos ficado tão desenvolvidos – antes de a bolha estourar, O Brasil era recomendado para investidores!-, estudados e locupletados, a tranqüilidade não chegou e doenças de nomes estranhos, como bipolaridade e seus derivados, aparecem como se isso fosse normal? Que o digam os próprios agentes do mercado financeiro, onde a crise incidiu para espalhar medo e pavor ao redor do globo.
Uma pesquisa com 162 profissionais de investimento e analistas durante os meses de maio e junho de 2008, um pouco antes da turbulência global, mostra a precariedade da saúde dessas pessoas que vivem de acompanhar o vaivém das ações. Os problemas mais comuns acometidos por analistas e profissionais de investimento são deficiências visuais, dores na coluna, travamento dos dentes, gastrite. Em geral, tomam algum tipo de medicamento. A depressão e a ansiedade atingem 29% deles, principalmente os mais jovens, com idade média de 35 anos, talvez em razão da competitividade que assola este mercado que passou a ser a referência da riqueza do mundo.
E se humanizássemos a riqueza? Pois tem gente propondo um novo medidor. O conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB) foi inventado no Butão em 1986, quando um jornalista questionou o jovem rei Jigme Singye Wangchuk pela baixa taxa do PIB de seu país. O rei, então, espontaneamente respondeu: “A Felicidade Interna Bruta é mais importante do que o Produto Interno Bruto”. E, desde aquela época, a FIB tornou-se a métrica para planejar o desenvolvimento econômico do Butão. Uma palinha da aplicação da FIB no cotidiano dos butaneses: lá, um guarda de trânsito com luvas brancas, em vez de semáforos, orienta os carros, e ele se abriga em uma espécie de coreto no meio da rua.
A psicóloga e antropóloga Susan Andrews, entusiasta da FIB no Brasil, acha que, nos últimos anos, esse conceito tem se tornado cada vez mais atraente, dadas as preocupações com o aquecimento global, os altos níveis de estresse e doenças psicossomáticas. “Nossa contínua devoção ao crescimento econômico a qualquer custo, em vez de melhorar nossas vidas, gera desigualdade e insegurança”.
Recentes pesquisas revelaram que o mero crescimento econômico não está nos tornando mais felizes. Susan cita como exemplo países que experimentaram crescimentos econômicos notáveis que não se refletiram em melhorias na vida das pessoas. “Nos EUA, onde o PIB triplicou desde os anos 1950, o nível de felicidade na verdade declinou. No Japão, a renda per capita quadruplicou entre 1958 e 1986, sem que houvesse qualquer aumento na felicidade. Em um número cada vez maior de países, as taxas de alcoolismo, suicídio e depressão têm crescido dramaticamente, mesmo quando seus cidadãos continuam acumulando cada vez mais coisas.”
Interessante é que a FIB começa a conquistar a ONU – vamos considerar que o órgão ainda é uma entidade supranacional, a despeito de ter permitido a invasão de um país como o Afeganistão. As metas do milênio que as Nações Unidas estabelecem para saúde, educação, proteção ambiental demandariam um novo medidor de desenvolvimento, segundo Susan. Ou seja, considerar o bem-estar psicológico e a manutenção do equilíbrio da vida será mais importante nas próximas décadas, séculos, milênios.
Substantivo feminino
Uma visão mais holística do mundo também chega às universidades. A PUC-SP mantém o Núcleo de Estudos do Futuro, reunião de pensadores e estudiosos de temas parecidos com os levados em conta para aplicação da FIB. Uma das integrantes, Rosa Alegria, levanta outra suspeita da insatisfação com o desenvolvimento em que chegamos.
Ele é masculino, fruto de uma época em que se desconsideravam as mulheres. “Tenho pensado na proximidade construtiva entre o universo feminino, desvalorizado pela lógica do capitalismo, e os novos modelos de desenvolvimento, pautados pela colaboração entre seres, comunidades, cidades e nações”, escreve em um artigo.
“Há muito o que ser reparado e reconstruído pela ótica e pela realidade da mulher. O ônus da devastação ecológica e do crescimento irresponsável se faz refletir com mais força nas mulheres, provedoras de gerações futuras. Não há melhor momento do que este para vivermos a experiência redentora de um mundo pós desenvolvido pautado pelos valores femininos. O desenvolvimento do crescimento ilimitado não pode justificar a destruição dos recursos naturais e prejudicar a qualidade de vida da humanidade, em nome do crescimento do PIB.” E, para o futuro desejado, tudo sopra em direção a características muito próprias do universo feminino: a inclusão, a integração, o cuidado e o acolhimento. Justo as mulheres, que ainda sofrem desproporcionalmente o peso da pobreza, ao representar 70% dos analfabetos e daqueles que vivem à margem da economia.
Nas artes, inúmeros poderiam assinar a proposta de feminilização do mundo. Mas, aproveitando o sucesso e a beleza da adaptação feita pelo cineasta Fernando Meirelles, cito os dois, Meirelles e José Saramago.
Ensaio Sobre a Cegueira e Blindness depositam na mulher a dignidade, a humanidade e a força otimista. Diante do caos da epidemia de cegueira e o vale-tudo em que se transforma o lugar, somente uma mulher cuida e briga pelo bem-estar dos outros. Nas duas obras, a dignidade nem raspa nos homens, como observa o crítico de cinema André Nigri. Claro, livro e filme são alegorias do que é e não é capaz o ser humano em situações limite, a própria essência da experiência humana, e de maneira alguma essa é uma sugestão de ressuscitar uma passadista luta de gêneros.
Simples assim
Ken O’Donnell, presidente do conselho do Instituto Vivendo Valores, faz análise simples e certeira da busca da felicidade. Para ele, o autoconhecimento é a chave do bem-estar geral. O desafio é ter a oportunidade ou a sorte de expressar nossos melhores valores, o que nos deixaria mais próximos da desejada felicidade. “Eu, por exemplo, tenho um traço artístico, sou músico, tenho uma sensibilidade musical, o que não deixa de ser um valor, uma coisa que eu valorizo. Agora imagine eu viver sem poder expressar essa musicalidade. A pessoa, ao conhecer o que tem de bom, de especial, o que pode oferecer ao mundo, quando encontra como e onde fazer isso, acaba se alinhando.”
No final de um livro interessantíssimo, Felicidade, o economista e filósofo Eduardo Giannetti deposita boa parte do bem-estar no colóquio entre amigos. Quase assim: um grupo de amigos começa a se reunir para debater a felicidade. Mudam as regras, eliminam o álcool, vão incrementando o debate, e ela estava bem ali, a cada encontro entre pessoas queridas.
De novo Giannetti, no livro O Valor do Amanhã, diz que o aumento de riqueza não significa aumento de felicidade ou bem-estar. Quer dizer, um sujeito muito rico não é necessariamente mais feliz do que o de classe média. Existe um teto material para além do qual felicidade e riqueza não caminham mais juntas.
Entre os clássicos, Um Coração Simples é uma pequena obra Gustave Flaubert, tendo como protagonista a criada Felicité. Para Flaubert, as pessoas simples, de pouco estudo (o que não significa burrice), são mais felizes. Ele faz um contraponto da Felicité no último e inacabado romance que deixou, chamado Bouvard & Pecuchet. Trata-se de dois copistas que se retiram para o campo e começam a estudar e copiar todas as ciências e filosofias, mas terminam tão ignorantes e infelizes como começaram.
A pimenta dos poetas para completar. Manoel de Barros, um dos maiores, aconselha o “desaprendimento” por pelo menos seis horas ao dia, esta é a posologia de felicidade do poeta nascido em Cuiabá, e vivido lá entre as águas do Pantanal.[:en]O estica-e-puxa da felicidade é ginástica talvez parecida com a do mercado de ações. Quem sabe é preciso derrubar tudo para fazer tudo de novo?
O calor que começa a derreter a alma nestes últimos meses do ano pode vir acompanhado da sensação de impotência diante do consumo do Natalou da ansiedade da perda de dividendos com a crise financeira. Ou nada disso, pode servir para um bom bronzeado junto dos amigos, amores, família, trocando os presentes possíveis, muitas vezes gargalhadas guardadas dos primeiros meses, quando o trabalho duro tomou conta da vida de maneira que, entre acordar e dormir, pouco sobrou para festa.
Dinheiro não traz felicidade, mas compra boa parte dela – o ditado popular incorporado até em propaganda de cartão de crédito volta sempre a mesa de bar, artigo de revista, tema de seminário. Afinal, discutir felicidade é a própria reflexão sobre o que é importante na vida. A melhor vida a nosso alcance. Sob o risco de a discussão até mesmo a deixar, a tal felicidade, escapulir. Mas vamos em frente, porque há muita aflição.
O estica-e-puxa da felicidade vira incógnita, é solucionado, volta a complicar, uma ginástica talvez parecida com a do mercado de ações. Quebradeira financeira vira uma boa hora de ver aquele “para onde caminha a humanidade”, pensando que crise é hora de balanço. Quem sabe é preciso derrubar tudo para fazer de novo? O.k. Sabemos que não há interrupção possível, o budismo, o rio, as estações, nosso corpo apontam para o movimento contínuo. Mas, e agora, que tínhamos ficado tão desenvolvidos – antes de a bolha estourar, O Brasil era recomendado para investidores!-, estudados e locupletados, a tranqüilidade não chegou e doenças de nomes estranhos, como bipolaridade e seus derivados, aparecem como se isso fosse normal? Que o digam os próprios agentes do mercado financeiro, onde a crise incidiu para espalhar medo e pavor ao redor do globo.
Uma pesquisa com 162 profissionais de investimento e analistas durante os meses de maio e junho de 2008, um pouco antes da turbulência global, mostra a precariedade da saúde dessas pessoas que vivem de acompanhar o vaivém das ações. Os problemas mais comuns acometidos por analistas e profissionais de investimento são deficiências visuais, dores na coluna, travamento dos dentes, gastrite. Em geral, tomam algum tipo de medicamento. A depressão e a ansiedade atingem 29% deles, principalmente os mais jovens, com idade média de 35 anos, talvez em razão da competitividade que assola este mercado que passou a ser a referência da riqueza do mundo.
E se humanizássemos a riqueza? Pois tem gente propondo um novo medidor. O conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB) foi inventado no Butão em 1986, quando um jornalista questionou o jovem rei Jigme Singye Wangchuk pela baixa taxa do PIB de seu país. O rei, então, espontaneamente respondeu: “A Felicidade Interna Bruta é mais importante do que o Produto Interno Bruto”. E, desde aquela época, a FIB tornou-se a métrica para planejar o desenvolvimento econômico do Butão. Uma palinha da aplicação da FIB no cotidiano dos butaneses: lá, um guarda de trânsito com luvas brancas, em vez de semáforos, orienta os carros, e ele se abriga em uma espécie de coreto no meio da rua.
A psicóloga e antropóloga Susan Andrews, entusiasta da FIB no Brasil, acha que, nos últimos anos, esse conceito tem se tornado cada vez mais atraente, dadas as preocupações com o aquecimento global, os altos níveis de estresse e doenças psicossomáticas. “Nossa contínua devoção ao crescimento econômico a qualquer custo, em vez de melhorar nossas vidas, gera desigualdade e insegurança”.
Recentes pesquisas revelaram que o mero crescimento econômico não está nos tornando mais felizes. Susan cita como exemplo países que experimentaram crescimentos econômicos notáveis que não se refletiram em melhorias na vida das pessoas. “Nos EUA, onde o PIB triplicou desde os anos 1950, o nível de felicidade na verdade declinou. No Japão, a renda per capita quadruplicou entre 1958 e 1986, sem que houvesse qualquer aumento na felicidade. Em um número cada vez maior de países, as taxas de alcoolismo, suicídio e depressão têm crescido dramaticamente, mesmo quando seus cidadãos continuam acumulando cada vez mais coisas.”
Interessante é que a FIB começa a conquistar a ONU – vamos considerar que o órgão ainda é uma entidade supranacional, a despeito de ter permitido a invasão de um país como o Afeganistão. As metas do milênio que as Nações Unidas estabelecem para saúde, educação, proteção ambiental demandariam um novo medidor de desenvolvimento, segundo Susan. Ou seja, considerar o bem-estar psicológico e a manutenção do equilíbrio da vida será mais importante nas próximas décadas, séculos, milênios.
Substantivo feminino
Uma visão mais holística do mundo também chega às universidades. A PUC-SP mantém o Núcleo de Estudos do Futuro, reunião de pensadores e estudiosos de temas parecidos com os levados em conta para aplicação da FIB. Uma das integrantes, Rosa Alegria, levanta outra suspeita da insatisfação com o desenvolvimento em que chegamos.
Ele é masculino, fruto de uma época em que se desconsideravam as mulheres. “Tenho pensado na proximidade construtiva entre o universo feminino, desvalorizado pela lógica do capitalismo, e os novos modelos de desenvolvimento, pautados pela colaboração entre seres, comunidades, cidades e nações”, escreve em um artigo.
“Há muito o que ser reparado e reconstruído pela ótica e pela realidade da mulher. O ônus da devastação ecológica e do crescimento irresponsável se faz refletir com mais força nas mulheres, provedoras de gerações futuras. Não há melhor momento do que este para vivermos a experiência redentora de um mundo pós desenvolvido pautado pelos valores femininos. O desenvolvimento do crescimento ilimitado não pode justificar a destruição dos recursos naturais e prejudicar a qualidade de vida da humanidade, em nome do crescimento do PIB.” E, para o futuro desejado, tudo sopra em direção a características muito próprias do universo feminino: a inclusão, a integração, o cuidado e o acolhimento. Justo as mulheres, que ainda sofrem desproporcionalmente o peso da pobreza, ao representar 70% dos analfabetos e daqueles que vivem à margem da economia.
Nas artes, inúmeros poderiam assinar a proposta de feminilização do mundo. Mas, aproveitando o sucesso e a beleza da adaptação feita pelo cineasta Fernando Meirelles, cito os dois, Meirelles e José Saramago.
Ensaio Sobre a Cegueira e Blindness depositam na mulher a dignidade, a humanidade e a força otimista. Diante do caos da epidemia de cegueira e o vale-tudo em que se transforma o lugar, somente uma mulher cuida e briga pelo bem-estar dos outros. Nas duas obras, a dignidade nem raspa nos homens, como observa o crítico de cinema André Nigri. Claro, livro e filme são alegorias do que é e não é capaz o ser humano em situações limite, a própria essência da experiência humana, e de maneira alguma essa é uma sugestão de ressuscitar uma passadista luta de gêneros.
Simples assim
Ken O’Donnell, presidente do conselho do Instituto Vivendo Valores, faz análise simples e certeira da busca da felicidade. Para ele, o autoconhecimento é a chave do bem-estar geral. O desafio é ter a oportunidade ou a sorte de expressar nossos melhores valores, o que nos deixaria mais próximos da desejada felicidade. “Eu, por exemplo, tenho um traço artístico, sou músico, tenho uma sensibilidade musical, o que não deixa de ser um valor, uma coisa que eu valorizo. Agora imagine eu viver sem poder expressar essa musicalidade. A pessoa, ao conhecer o que tem de bom, de especial, o que pode oferecer ao mundo, quando encontra como e onde fazer isso, acaba se alinhando.”
No final de um livro interessantíssimo, Felicidade, o economista e filósofo Eduardo Giannetti deposita boa parte do bem-estar no colóquio entre amigos. Quase assim: um grupo de amigos começa a se reunir para debater a felicidade. Mudam as regras, eliminam o álcool, vão incrementando o debate, e ela estava bem ali, a cada encontro entre pessoas queridas.
De novo Giannetti, no livro O Valor do Amanhã, diz que o aumento de riqueza não significa aumento de felicidade ou bem-estar. Quer dizer, um sujeito muito rico não é necessariamente mais feliz do que o de classe média. Existe um teto material para além do qual felicidade e riqueza não caminham mais juntas.
Entre os clássicos, Um Coração Simples é uma pequena obra Gustave Flaubert, tendo como protagonista a criada Felicité. Para Flaubert, as pessoas simples, de pouco estudo (o que não significa burrice), são mais felizes. Ele faz um contraponto da Felicité no último e inacabado romance que deixou, chamado Bouvard & Pecuchet. Trata-se de dois copistas que se retiram para o campo e começam a estudar e copiar todas as ciências e filosofias, mas terminam tão ignorantes e infelizes como começaram.
A pimenta dos poetas para completar. Manoel de Barros, um dos maiores, aconselha o “desaprendimento” por pelo menos seis horas ao dia, esta é a posologia de felicidade do poeta nascido em Cuiabá, e vivido lá entre as águas do Pantanal.