Identificada com um jeito jovem de fazer política, Soninha Francine aposta na capilarização dos espaços representativos e na inclusão da massa de “desorganizados” para renovar o sistema. Avessa a picuinhas partidárias, aprecia a organização de parlamentares em torno de causas e considera integrar a prefeitura de Gilberto Kassab. Mas os 4% de votos que obteve na eleição em São Paulo indicam que há quem queira mudar, diz. E promete tentar de novo.
Qual seria o redesenho ideal da política brasileira e qual é o redesenho possível?
O ideal é muito mais inclusivo do que o que temos hoje, que é um sistema piramidal. É uma concepção interessante ter câmaras de representação municipais, estaduais e federais. Mas tem de ser muito mais capilarizado, com mais espaços de representação, nos bairros ou, como em São Paulo, nas subprefeituras. Tenho o sonho de que haja outros espaços de formulação, execução compartilhada, de responsabilidade pela implantação da política pública, avaliação dos resultados. Não é impossível. Mas, por enquanto, é tabu, por exemplo, questionar a necessidade de um órgão legislativo permanente em cada município. Dá a impressão de que estamos falando em fechar o Congresso de novo. Mas temos que discutir se é realmente necessário. Pelo ponto de vista legislativo, tenho certeza que não. Tanto é que todos os Parlamentos do Brasil passam semanas sem votar um projeto em plenário.
Mas eles têm outras funções.
A porção fiscalizadora da Câmara, de interceder em favor da população pela garantia de direitos, pode perfeitamente ser feita por outros modelos, que surgem aqui e ali: conselho gestor da unidade básica de saúde, do parque municipal, e os temáticos, como conselho municipal da pessoa com deficiência. Eu acredito muito nisso.
A senhora declarou que não pretende mais se candidatar a cargos legislativos. Na sua visão, o Parlamento está tomado de vícios irrecuperáveis? É um caso perdido?
Não. Mas só vai deixar de ser um caso perdido se mais gente se importar com ele. Está tomado de vícios e de costumes. Tanto é que, quando questiono “pelo amor de Deus, por que não se votam os projetos?”, a resposta é: “Parlamento é assim em qualquer lugar do mundo”. Concordamos que ele seja assim? Se as pessoas não discordam, por que ele mudaria?
Por que a sociedade anda tão distante da política partidária? Os partidos ainda têm vínculo com os grupos sociais que os originaram?
Às vezes não, às vezes sim. Os vínculos também se modificam. O PT, por exemplo, vem de uma base sindical. Quando era, principalmente ou só oposição, a associação com a base sindical e os movimentos sociais era de uma natureza. Depois, a relação se modificou muito. Os partidos também são modelos a se questionar. Ao se atrelar a um grupo, você assume compromisso com o programa, as lideranças. Mas nenhum partido hoje dá conta de todas as posições possíveis sobre tudo. Em um mundo menos complexo, era fácil identificar três ou quatro bandeiras e falar “meu partido é o que se posiciona assim em relação ao modo de organização do trabalho, às liberdade individuais, à importância do Estado”. Você tinha como escolher: esta é a minha turma. No Brasil, além de isso ter se diluído e se deturpado, nenhum partido tem uma posição, por exemplo, para a questão das pesquisas com células-tronco embrionárias, as políticas de mudanças climáticas, de combustíveis. É inevitável que dentro do partido haja lideranças importantes, coerentes com os princípios do partido, com opiniões completamente diferentes sobre essas coisas. Este já foi um modelo interessante, mas talvez daqui a 20 anos a gente diga: “Lembra quando tinha partido?” Na prática as pessoas já se organizam conforme interesses próprios, ou de um determinado grupo. Há a bancada evangélica, que é suprapartidária e defende pontos de vista evangélicos. Há a organização de parlamentares em torno de um tema, porque têm afinidade com uma bandeira. Por exemplo, a Frente Parlamentar de Agenda 21 ou a da Radiodifusão Comunitária.
A tendência é os políticos se organizarem como os movimentos sociais?
De certa maneira é isso. E que seja, porque movimento pressupõe caminhar em direção a alguma coisa, a um ponto de chegada. Os partidos se movimentam, sim, mas em direção à vitória sobre o adversário. O objetivo do partido acaba, inevitavelmente, sendo a autopreservação, a auto-afirmação.
Isso é um problema da mentalidade dos políticos ou é intrínseco ao modelo de política representativa, que pressupõe os partidos?
Como os políticos são humanos e os humanos têm a tendência, como a sociologia explica, de se identificar com algumas pessoas e ter avaliação pior daquelas com as quais não se identificam, acho inevitável. É irreal achar que, organizados em grupos adversários, os políticos não se tornem rivais. Por isso a união, até temporária, em torno de um tema ou objetivo é tâo interessante. Obviamente o mesmo político pode transitar por Muitas dessas uniões, não vai ser necessariamente do partido X e obrigado a concordar sempre com o partido X, que às vezes nem oferece algo com que concordar.
Até que ponto o chefe do Executivo tem poder de renovar essa lógica, uma vez que ele precisa do Parlamento para trabalhar?
Se ele não tiver respaldo muito forte da população e um tratamento correto da mídia, está ferrado. Opinião pública é opinião publicada. Se a população entender que determinado projeto não sai por culpa do prefeito, quando na verdade a Câmara obstrui por disputa política, ela se volta contra o prefeito e isso dá mais força aos obstrutores. Não significa pedir ajuda à mídia, mas pedir uma cobertura correta, analítica.
A sua campanha para a prefeitura de São Paulo tinha como proposta fazer prevalecer o interesse público sobre os partidários. Terminou com pouco mais de 4% dos votos. Que mensagem o eleitor passou?
Indica que é muito difícil romper com o que é conhecido. Acontece em todos os níveis: as pessoas detestam congestionamento, mas relutam em mudar o hábito, o meio de locomoção, a hora de sair de casa ou mesmo mudar de casa. As pessoas que reclamam, que desacreditam da política, ainda assim tendem a escolher o que já conhecem. Pergunte aos eleitores quais as propostas do (prefeito de São Paulo, Gilberto)Kassab com as quais eles concordaram. O eleitor é movido por milhões de razões, uma delas é a familiaridade. Se você fizer uma comparação entre a opinião das pessoas sobre a política e o resultado da eleição, não combina, tem algo muito errado.
Qual a saída? Esperar que o inovador se torne comum?
Familiar. De minha parte, é só o que posso fazer. Tentar de novo e de novo. Recebi ontem um e-mail: “Soninha, não votei em você, mas para mim você era a melhor candidata”. Nâo é maluco? Ou então: “Não votei em você, mas reconheço que as suas propostas eram as mais sensatas”. Canso de ouvir isso. Ao mesmo tempo, pessoas que votaram em mim, muito mais velhas do que eu, dizem: “Já estou velho, não sei até onde vou. Mas você vai. Um dia, quem sabe… tenha paciência”. É natural que seja demorado.
Se há distanciamento em relação à política partidária, o eleitorado encontra outras formas de se organizar?
Uma parte, sim. Porque quem se organiza tem força, poder de pressão, com ou sem partido. Mas o problema não é quem se organiza de um jeito ou de outro, é a massa imensa de desorganizados.
O ideal é que se organizassem?
Não necessariamente. Esse é o desafio, talvez o maior da democracia. A democracia não é da maioria, é de quem se organiza. Quem se organiza se faz visível e faz pressão. Não se deve esperar que todo mundo seja militante. Nosso desafio, nós institucionalizados e organizados, é como é que a Dona Maria, que não é nem nunca vai ser filiada a nenhum movimento, membro de ONG nem nada, recebe a bolsa auxílio. Seria absurdo e autoritário querer que todo mundo fosse membro de uma organização. Já temos o desafio de garantir condições para ouvir as minorias. Isso está bem assimilado, nos regimentos das casas parlamentares há vários mecanismos. Mas não é só isso. A imensa maioria está desrepresentada. E aí, o que faz? Faz plebiscito, garante o acesso à informação. Não preciso ir na reunião de moradores da Brasilândia para saber que tenho direito a uma bolsa, ao cadastro para uma vaga de emprego. Tem que chegar pra mim, mesmo que eu nunca entre em um lugar que tenha mural de recados. Tem tudo a ver democracia da informação, das comunicações, com a plenitude do regime democrático.
O seu programa eleitoral de TV era a senhora na frente de um fundo preto. Foi uma campanha modesta ou a escolha consciente por uma linguagem diferenciada?
Tivemos problemas de realização, mas teríamos de qualquer forma um padrão econômico. O texto era mais importante. Também interpretamos a norma que diz que não pode ter recursos gráficos, efeitos de computação. Pelo jeito, interpretamos errado, porque ninguém mais obedeceu.
Faz parte da renovação possível marcar a diferença entre campanha eleitoral e de marketing?
Sim. A campanha mais marcante para mim nessas eleições foi a do (candidato à prefeitura do Rio, Fernando) Gabeira. Tinha uma estratégia de marketing, mas em função do conteúdo, e não o contrário. Gosto de estética, de coisa bem-feita, desde que tenha em vista o conteúdo. Hoje é o contrário. Adapta-se o conteúdo à recomendação do marqueteiro. O Kassab disse que vai ficar um ano sem aumentar a passagem de ônibus, não porque estivesse previsto no plano de governo, mas porque o marqueteiro identifica que a população gostaria de ouvir isso.
A população responde a isso, mas ao inverso também?
Claro que responde. Sim, as pessoas caem em truques mercadológicos. Isso não nos obriga a fazer truques mercadológicos. Tem jeito de você se fazer conhecer e confiar sem truque.
Representa um amadurecimento do eleitorado?
Não. Nos últimos tempos eleição é referendo. É como se só houvesse duas alternativas. É decidida em função da rejeição, não da preferência. Talvez isso explique por que os governos não contam com tanto apoio popular. Mas estamos melhorando, ter 4% dos votos é sinal de que tem um público cansado de verdade do modelão. Vejo isso também pelos que não têm idade para votar ainda.
Essa é uma faixa etária reconhecida pela baixa atuação política.
É uma injustiça dizer que o problema é dos jovens. Os que foram jovens em 1970 hoje estão tão distantes da política quanto seus filhos. Os jovens ainda se mobilizam, mas não na política institucionalizada. O problema é atrair de volta para a política a indignação que ainda existe na juventude. E que hoje eles manifestam por meio do hip-hop, de comunidades na internet, de saraus de poesia na periferia. Mas o jovem é perfeitamente capaz de voltar a identificar na política o lugar aberto para os seus sonhos, ideais e revoltas, mesmo na política como ela é. Primeiro, é preciso usar melhor os espaços de participação e garantindo que eles existam. Tem que ter conselho de escola, grêmio. E, no mínimo, traduzir a política para as pessoas. Porque a política é de fato um dialeto.
O que senhora acha do ciberativismo?
A candidatura do Gabeira foi super ciber. Eu li um texto muito legal, que dizia: “Eduardo Paes perdeu a eleição”. Gastar o dinheiro que ele gastou para fazer uma campanha de golpes baixos e, ainda assim, só ganhar do Gabeira por 50 e poucos mil votos é uma derrota. O ciberativismo tem sua importância, seu papel, tem seus defeitos e limites. É tão fácil espalhar uma campanha com fatos verídicos quanto com fatos distorcidos. É o mesmo trabalho.
Uma das características do ciberativismo é não dar trabalho. Basta um clique. É contraditório um ativismo sem esforço?
Se ele se achar o maioral, é. Uma vez eu ouvi uma história do Betinho, em uma reunião da Ação da Cidadania. Alguém reclamou da não-participação da população. Aí o Betinho falou: “Peraí, cada um tem seu papel. Você sai pedindo. Tem quem escuta e faz doação. Outro não faz doação, mas passa adiante”. Às vezes, com o bendito clique, você consegue 20 mil cliques e um espaço na CBN. O efeito multiplicador é muito interessante, mas continuamos dependendo da mídia tradicional em alguns pontos.
A idéia da sustentabilidade tem algum peso na hora de o eleitor decidir o voto?
Quando ele entender exatamente o que isso significa, sim. Para começar, associa-se sustentabilidade à questão ambiental e esse é só um dos pontos. Para muitos, meio ambiente ainda é um obstáculo ao progresso, à felicidade, à garantia universal de direitos. É uma loucura completa, mas é uma idéia que prosperou. Assim que as pessoas entenderem que a sustentabilidade é o princípio óbvio de qualquer coisa, da compra no supermercado à gestão pública, vai virar natural. Porque, se as coisas não forem sustentáveis, então pra quê? Pra quem e por quanto tempo? Os jovens sacam essas coisas. Olham pra frente e falam: “Meu Deus, onde isso vai dar?” Tem um caldo de cultura novo que está vicejando.