Sem distinção entre palco e platéia, amadores e profissionais, os saraus consolidam-se como fórmula inovadora de viver e produzir cultura. Quase sem querer, ainda inspiram novos rumos para a coletividade nos centros urbanos
Toda quarta-feira é assim. Pelo menos uma centena de pessoas se reúne no bar do Zé Batidão, Chácara Santana, Zona Sul de São Paulo. No vaivém de garrafas e petiscos, o barulho intenso das conversas contrasta com o cartaz solitário na parede, onde se lê: “O silêncio é uma prece”. Até que a ruidosa clientela se apruma e o silêncio vem, tão ou mais absoluto do que se daria em um museu, um cinema ou um teatro. É a reverência à hora de falar e ouvir poesia.
Sem museu, cinema nem teatro, a arte encontrou o seu caminho na periferia, no improvável cenário de um boteco. Desde 2001, o sarau da Cooperifa subverte estereótipos e revela talentos que hoje se traduzem até em CD de poesia falada e em uma Antologia Poética, lançados em 2006 com apoio do Itaú Cultural. O fundador do movimento, Sergio Vaz, explica o segredo para fazer com que uma forma de arte considerada erudita caia no gosto popular: “Na periferia, falar em poesia tinha uma conotação de que era coisa de fresco, ou coisa inútil. Mas as pessoas foram percebendo que já faziam poesia. Uma cartinha rimada, um desabafo num caderno… E tirar esses textos da gaveta, compartilhar com a comunidade, é dizer que aquela pessoa também é possível. Que ela existe e tem importância”.
Segundo Vaz, o sarau já chegou a reunir 500 pessoas, com mais de 70 poetas revezando-se ao microfone. O sucesso fez com que o modelo se reproduzisse em outras periferias e em outras cidades. Alguns saraus, como o Coletivoz, de Belo Horizonte, acontecem no mesmo dia da semana e no mesmo horário da Cooperifa, o que lhes confere um sutil, mas poderoso sentido de integração. Para Vaz, há outros caminhos sutis desenhados na dinâmica livre e lúdica do sarau: além da construção da auto-estima e de uma identidade garantida pela produção cultural própria, a oportunidade de debater e encontrar saídas coletivas para os problemas da comunidade, o estímulo à educação e o gosto pela leitura. “A arte pode ser política sem ser panfletária”, ensina ele, e resume seu pensamento na máxima do poeta Paulo Leminsky: “Distraídos venceremos”.
Prova disso é que, ao lançar um projeto “para a periferia e pela periferia”, como se repete comumente durante os saraus, a Cooperifa criou um espaço oportuno para que pessoas de diferentes origens e condições sociais possam conviver. “Hoje vem gente de toda parte, do centro, da classe média. E são todos bem-vindos. É importante que essas pessoas venham, para acabar com o medo de freqüentar a periferia. Se eles contarem para os outros o que viveram, é isso que vai acabar com a invisibilidade da ‘quebrada'”, aposta Vaz.
Dois lados da mesma moeda
Muito longe dali, na Vila Madalena, bairro de classe média alta de São Paulo, a mesma virtude parece despontar no tradicional Sarau do Charles. Há treze anos, o paraibano Alessandro Azevedo incorpora o palhaço Charles, mestre-de-cerimônias de um encontro que acolhe as mais diversas linguagens, do clown à dança flamenca, dos rituais xamânicos ao comediante stand-up.
“No sarau eu já conheci pedreiro, pintor de parede, advogado, juiz, político… Acho isso magnífico. Durante aquelas horas, todo mundo pode ser alvo de uma brincadeira e todo mundo é igual diante da mira do palhaço”, descreve. Totalmente fundado no espírito do improviso, o Sarau do Charles subverte a quarta parede, de modo que artista e platéia interagem e se confundem. Na última edição, nem a repórter escapou, convidada a participar desajeitadamente de um arrasta-pé nordestino.
Nos bastidores, os artistas comentavam o equilíbrio entre o nervosismo e a vontade de experimentar. “Aqui é um grande laboratório, não tem como dar errado”, disse Leandro Calado, também palhaço. Para ilustrar o argumento, narrou uma aventura vivida em Nova York, em 2004, no mesmo dia em que um ataque terrorista a um trem de Madri matou cerca de 200 pessoas. Nos Estados Unidos, policiais tomaram as ruas em meio ao alerta laranja, mas, por alguns instantes, o clima tenso foi quebrado pelo palhaço que decidiu fazer piada e imitar os guardas usando sua corneta como se fosse uma arma. Funcionou. Os soldados riram, turistas tiraram fotos. “Imagina, se eu não estivesse caracterizado, acho que tinha sido preso. A verdade é que isso aqui tem poder”, disse, apontando para o infalível nariz vermelho de plástico.
Para todos
Talvez a explicação para que os saraus tenham apelo entre os mais diferentes públicos seja a simplicidade do modelo. Pode até requerer alguma prática ou habilidade, mas certamente não requer burocracia. Dispensa projeto, editalou Lei Rouanet. No princípio, o Sarau do Charles era realizado no pequeno apartamento de Alessandro, reunindo pouco mais de dez pessoas. E mesmo hoje, instalado em endereço fixo no Teatro da Vila, o sarau é periodicamente transportado para parques, praças públicas e comunidades carentes, como a Favela Moinho, na Barra Funda.
“A idéia da ocupação do espaço público sempre foi muito importante. Porque é papel da arte fazer as pessoas um pouco mais felizes. E isso dá uma amenizada no contexto da cidade, que às vezes é tão árido, frio, violento”, considera Alessandro, para quem os saraus se tornaram tão comuns nas grandes cidades na última década que hoje se configuram como um movimento pela democratização da cultura. “Se é tão difícil agendar uma sala, passar num edital, nossa resposta é democratizar”, diz o palhaço, cujo maior projeto para 2009 é realizar, em São Paulo, o primeiro encontro brasileiro de saraus.
Boemia renovada
Se a escassez de oportunidades no mainstream é uma realidade em todos os segmentos da cultura, que o digam os músicos herdeiros de uma indústria fonográfica em decadência. Em tempos de internet, polêmicas sobre direitos autorais, derrocada dos Cds, as grandes gravadoras que se mantêm no mercado reduziram ainda mais os seus castings. Mas nada disso repercute no Clube Caiubi, onde música e poesia ainda são escritas em guardanapos de papel, ao sabor da inspiração – e da cerveja.
Em 1997, um grupo de estudantes e professores da PUC encampou o ambicioso projeto Maria-Sem-Vergonha, em homenagem a uma flor que nasce em qualquer canto, o que representava a convicção do grupo de que a arte pode florescer sob quaisquer condições. Entre iniciativas de dança, música, teatro, poesia, vingou a vocação dos músicos, que resolveram locar, em 2002, um espaço na Rua Caiubi, em Perdizes, no qual pudessem apresentar suas canções e ainda garimpar novos compositores. Hoje remanejados para o Villaggio Café, em Pinheiros, os caiubistas mantêm sua principal tradição: o sarau conhecido como Segundas Autorais.
Toda segunda-feira, qualquer pessoa pode se inscrever, subir ao palco e apresentar até duas canções. A única exigência é que sejam composições próprias. Diante de um público formado por músicos profissionais e amadores, o terreno é fértil para novas parcerias e trocas de influências. “No rádio, na televisão, não tem espaço para conhecer músicas inéditas. Para um público que busca renovação, o Caiubi é maravilhoso. Só numa festa que tivemos aqui, contei 19 parceiros meus”, diz Álvaro Cueva, violonista e compositor.
“O mercado da música se modificou, os caminhos hoje são outros, e estes a música independente sabe trilhar melhor”, pondera Lis Rodrigues, caiubista fundadora. O site do clube na internet é prova dessa capacidade. Em uma plataforma de rede social, o site interligou mais de 1.700 músicos do Brasil e do mundo em apenas três meses de existência. Além de trocar canções e conselhos, muitos integrantes arriscam parcerias à distância. “Neste último mês, compus com uma parceira de Porto Alegre que eu nunca vi”, conta Cueva. “O site é, ao mesmo tempo, divulgação e um estímulo para produção musical.”
Estímulo que fez com que Afonso Moraes subisse ao palco pela primeira vez aos 70 anos de idade, em um sarau do clube. Na juventude, fora parceiro dos Titulares do Ritmo, grupo vocal de enorme sucesso nos anos 50, mas nunca havia saído dos bastidores. Sem saber tocar um instrumento, Moraes sempre compôs com palmas e assovios e, aos 74 anos, gravou seu primeiro CD ao lado dos caiubistas. O álbum independente, que mistura sambas, tangos e baladas, foi batizado apropriadamente de Já Era Hora. “Antes eu fazia música e não mostrava. Agora quero fazer música até os 100 anos!”, garante Moraes. E ninguém duvida.