Com a tecnologia digital, a internet e a cultura que nasce de ambas reemerge a noção de commons, o que é comum a todos. A falta de materialidade e a possibilidade de todos ocuparem espaço na rede subvertem os modelos de negócio e os valores da sociedade de consumo, diz Claudio Prado, presidente do Laboratório Brasileiro de Cultura Digital
Há uma palavra para commons em português? Se não tivesse totalmente desgastado o conceito de comunista… o (Lawrence) Lessig, um dos caras que inventou o Creative Commons, é acusado nos EUA de ser comunista, um palavrão terrível. Ele se diz commonist. Se a palavra “pública” não estivesse tão desgastada, podíamos dizer que é isso, mas as palavras vão se desgastando.
Como sustentabilidade. Sustentabilidade é complicadíssimo, porque já está na mão dos marqueteiros políticos, o cara se apropria do termo e nunca refletiu a respeito do que pode vir a ser.
Qual é a idéia dos commons? É o que é comum a todo mundo. A rua deveria ser um commons. Hoje se fala: tem que tirar o menino da rua. É ridículo, devia ser o lugar onde as pessoas se encontram. Tem o privado e o comum, o comum é onde está todo mundo, onde você encontra as pessoas. Só que isso deixou de ser, a rua agora é lugar perigoso. O exemplo que uso, quase na fronteira do utópico, é o ciberespaço. Digo quase na fronteira porque ele existe, é o único lugar real – embora também seja virtual – de espaço comum. No ciberespaço todo mundo tem, em princípio, o mesmo tipo de espaço, não se pode comprar lugar, não tem preço por metro quadrado. Se você ocupar espaço, tem tanto espaço quanto a Globo.com. Você – indivíduo, pessoa – tem direito.
A tragédia dos comuns refere-se à superexploração dos recursos naturais. O meio ambiente é interessante para os commons? O conceito ampliado, de mãe-terra, deveria ser. Se o sentido de commons estivesse embutido em todo mundo em relação ao planeta, não estaríamos fazendo a desgraça que estamos fazendo. Alguém falou algo interessante: ninguém que tenha a percepção da terra como mãe furaria a mãe para tirar o sangue e transformar em combustível para automóvel. O problema dos commons é resgatar a possibilidade da existência de territórios comuns a todos, que deveriam estar muito mais próximos da gente do que efetivamente estão. Viraram coisas utópicas, teóricas.
Mas a noção está reemergindo? Eu acredito nisso. Existem duas coisas. Primeiro, o ressurgimento não é uma coisa organizada, emerge de forma não estruturada, que é o grande barato. O outro fato interessante é a degringolada do mundo corporativo e “político”, entre aspas, no sentido de política partidária. O que emerge é um político sem aspas, um mundo político real, a política dissolvida, horizontalizada, transversal a uma postura do ser humano.
Onde se manifesta isso? É uma herança hippie. Desapareceu o hippie de calça rasgada, porque a calça rasgada agora está na boutique, mas… ecologia, por exemplo foram os hippies que trouxeram, não vem da esquerda. A esquerda nunca pensou em ecologia ou no feminino. Pensou no feminismo, que é o direito da mulher de ser machista: a mulher é igual ao homem, o homem é idiota, a mulher também pode ser.
A calça na boutique é uma apropriação de valores? Da calça, sim, dos valores, não. Eles estão voltando.
Por uma questão individual, ou há um movimento? Movimento é outra palavra que tem que se tomar cuidado. Um exemplo é a internet, ela não é um movimento. A internet é um negócio enorme, talvez uma das maiores coisas que o mundo tem. Não pertence a ninguém, ela foi nascendo sozinha, sem projeto, planejamento, orçamento, sem nenhuma das coisas obrigatórias a tudo que vem a existir de fato, de forma real. Na escola continua-se ensinando que não dá para fazer internet, porque ou você sabe exatamente aonde quer chegar, ou não chega nunca. A internet nasce de um total imponderável. Ao contrário, se alguém tivesse enxergado a internet como possibilidade, ela seria proprietária, seria de alguém. É que ninguém viu.
Quando se fala de internet e cultura digital, fala-se da mesma coisa? Sim e não. Cultura digital é o mundo em torno daquilo que o digital precipita. O digital é um paradoxo. A tecnologia digital nasce da tentativa do mundo capitalista selvagem de aumentar seus lucros. “Nossa, dá para fazer essa maquininha desse tamanhozinho, vaicustar quase nada para mim, mas vou vender caro.” Nasce da voracidade do lucro, mas se mostra totalmente subversiva ao mundo do consumo selvagem. Uma máquina que pouco tempo atrás custava muito caro foi trazida, pela convergência digital, para um aparelho celular – cuja tendência é custar zero – e que faz todas as funções daquela máquina. É uma subversão econômica, física, real, dos valores profundos da sociedade de consumo. Se na era industrial uma máquina custava 500 dólares e hoje tem cinco ou seis dessas máquinas enfiadas em algo que não custa 500 dólares, para quem está a fim de dólares, isso é subversivo. A Sony é totalmente contra a pirataria, mas faz a máquina que viabiliza a pirataria.
E não percebe? Eles estão doidos, esquizofrênicos, doentes! Junto com isso, o que aconteceu no mundo capitalista, real? A corrupção, que é inerente ao processo político e do dinheiro. O que é a eleição do Obama, se não resultado da corrupção? Por isso a gente tem que agradecer, beijar os pés do Bush, ele viabilizou, acelerou a mudança de forma fantástica. O Bush é um ícone do século XXI, a gota final de uma etapa. Sou um profundo otimista, as coisas não são assim tão bonitas, mas, quando eu tinha 20 anos, nos EUA existia ônibus para brancos e ônibus para pretos. As pessoas se esquecem a loucura que era, que ainda é, a questão raça nos EUA, a página que foi virada com a eleição do Obama. Até pelo aspecto de como ele ganhou a eleição, mobilizando a sociedade através do celular, essa maquininha subversiva. Os jornais outro dia perguntavam como o Obama vai viver sem BlackBerry, isso é fantástico, porque ele está conectado com as coisas. Acho que vai ser esperto o suficiente, arrumar um disfarce e andar na rua, ou arrumar gente que conte o que está acontecendo na rua.
Em vez de pesquisar o eleitorado, vai ao commons? Claro, foi assim que ele ganhou. Quem é esse cara? Ele se formou em Harvard, mas foi fazer movimento social, é um ativista social e trouxe para a campanha a organização do ativismo, mobilizou 3 milhões de pessoas que doaram grana.
O senhor cunhou o termo “peeracy”. De onde veio? É de peer-to-peer, que é os commons, foi uma sacada, converseicom o (ex-ministro da Cultura, Gilberto) Gil e ele botou no discurso. A tradução mais interessante seria “paritaria”, de paritário.
Tem um trocadilho com pirataria? É a sonoridade das palavras, mas torna-se interessante. Veja a experiência do Radiohead, uma banda da moda que vende muito disco e colocou seu último trabalho na internet de graça. Você paga quanto quiser, se quiser. Tecnicamente eles piratearam a si mesmos e ganharam uma bolada. O Paulo Coelho está fazendo a mesma coisa. Ele ficou pirado, porque tinha traduções piratas da obra dele nas línguas mais loucas, começou a redescobrir a sociedade alternativa, que foi ele quem inventou com o Raul Seixas, a incentivar a pirataria, para ver o que acontecia. Fez o site “Pirate Paulo Coelho” e vende mais livro através da pirataria. É o mesmo que o Tropa de Elite, cuja estratégia de marketing foi ser pirateado. O cara disse: “Não fiz isso, de jeito nenhum!” Não interessa quem fez, ele foi parar no Roda Viva, estourou na mídia, porque o filme foi pirateado.
Extrapolou o público de elite. Se tivesse ido direto para o cinema… Não acontecia nada! O peeracy brinca com a pirataria, porque o digital transforma as possibilidades de democratização do acesso de forma fantástica. Agora, as possibilidades multiplicadoras de acesso são chamadas de pirataria pelo sistema anterior. Dentro da lógica analógica, o mundo do século XXI é todo pirata. Ou então vamos eliminar, cortar tudo, nos comportar como se não existisse o digital.
A doação, que mantém o Radiohead, que elegeu o Obama, dá certo nos EUA . Há essa cultura no Brasil? O Brasil tem o mutirão, as pessoas vão construir a casa dos outros no fim de semana, que é o bem talvez mais precioso que elas têm no mundo do consumo. Ao contrário, o Brasil é o lugar onde os commons se propagam de forma extraordinária, faz parte de uma postura, uma atitude. O Carnaval, por exemplo, é um processo alquímico de transformar a pobreza em alegria. Aquele espetáculo, naquele momento, é um território construído. Isso se você eliminar o Sambódromo, que é um acidente de percurso, limita, prende.
A comunalidade no Brasil tem a ver com a cultura? Estamos vivendo a compreensão cada vez mais profunda de que a questão cultural, e não a economia, é o amálgama que constrói as possibilidades de analisar o processo civilizatório. É uma inversão de rota. Medir o processo civilizatório pela economia deu nisso que está aí. A economia é um barco com 77 furos e 40 rolhas, está afundando. Com o digital, a indústria encolhe, esse seu gravador pesava 2 quilos alguns anos atrás, agora é minúsculo, não tem mais materialidade. Vivemos a era da informação, e ela não é industrializável. Chamou-se o turismo de indústria do turismo porque foi na era industrial, mas não tem nada a ver com indústria. Estamos entrando em outra era, a indústria vai ter seu papel, mas é outra coisa, onde o digital é indutor. É um rito de passagem para uma era que não tem nada a ver com a tecnologia, não é o digital que define a era, ele é indutor, assim como o Bush.
Como o senhor imagina essa nova era? Imagine, do John Lennon, sempre me pareceu uma visão: imagine tudo de todo mundo, se você for capaz, diz a música. Essas coisas começam a existir. Veja o Creative Commons, uma instituição que cresceu muito, que olha a patente e o direito autoral, tal qual foram pensados nos séculos XIX e XX, como cercas do conhecimento, que fazem com que pessoas que estão fora da cerca não possam usufruir do conhecimento e que enriquecem de forma absurda quem fez a invenção. Daqui a pouco o mundo inteiro vai piratear – já estamos assim – e vai ser impossível controlar. Tem que regular de outra forma, parar de chamar de pirataria e chamar de paritaria, talvez. O processo regulatório dos governos passa a ser diminuir o poder do privado para aumentar o direito dos comuns. Se a patente fosse uma boa idéia, e, portanto, inventada muito antes, o ângulo reto teria sido patenteado por Pitágoras. As pessoas seriam incentivadas a usar, mas teriam que pagar. A bola também, a roda é uma grande invenção para se patentear.
Em que pé está o governo brasileiro na regulamentação da paritaria? Esquizofrênico, como todos os governos são, mas tem uma grande onda a favor de repensar isso. O Ministério da Cultura está discutindo no Brasil inteiro a questão do direito autoral. Quando a gravadora se recusa a numerar CD e disco, isso vem desde o LP, é uma evidência de que está tirando números maiores. É até piada dizer que há um problema técnico em numerar Cds. Elas fazem mais, e roubam do autor. Elas são as piratas! É o sistema, a corrupção, que está por trás dessa história. Existe uma segunda questão que está sub judice: o modelo de negócio antigo não funciona mais, porque não há mais a materialidade por trás do CD, da música, do texto. Com um clique você distribui para um milhão de pessoas. Se vaicomplicar a vida do autor A, B ou C, tem que pensar como que equilibrar essas novas possibilidades. Não adianta dizer que tem que regular a internet, como quer o (senador Eduardo) Azeredo, voltar para uma coisa pré-internet, achando que todos os males do mundo existem por causa da internet, pedofilia etc.
É o projeto de lei dos cibercrimes? Corre o risco de ser aprovado? Acho que, agora, não mais, porque teve gente capaz de alertar que uma lei específica para a internet é um absurdo. Teria que ter uma lei para a marreta, marreta na mão da pessoa errada é um perigo! Para não falar de revólver. O brasileiro recusou a proibição das armas e agora tem gente que acha que existe pedofilia por causa da internet, é ridículo.
E o problema do acesso? Banda larga de graça para todo mundo vai acontecer inexoravelmente no planeta todo e no Brasil antes de muitos lugares. Está cheio de prefeitura fazendo isso, de gente falando, de coisas acontecendo. O problema é discutir o que as pessoas vão fazer com a banda. Quem vai se apropriar primeiro são as corporações. Quem usa Skype realmente no Brasil são as corporações, uma das primeiras foi a Anatel, a reguladora do sistema telefônico. Por que pagar se pode usar Skype? A Anatel não paga conta de telefone.
O historiador Nicolau Sevcenko diz que a internet toma o tempo que as pessoas teriam para refletir sobre o mundo. Qual sua opinião? A internet fascina as pessoas, a molecada não quer saber de outra coisa. Mas olha algumas coisas positivas que ela traz. Pela primeira vez em três gerações as pessoas se comunicam por escrito. Minha geração já não escrevia cartas como a do meu pai. Esta geração se comunica por escrito, e está inventando uma língua. Isso é genial. As pessoas não escrevem errado porque escrevem uma nova língua, mas porque elas não escrevem. É benéfico inclusive por construir qualificações dos encontros, olha quanta gente está se casando, construindo relações emocionais pela internet. O que acontece se você solta um cachorro que ficou preso a vida toda? Ele faz besteira. A internet neste momento é uma espécie de soltura do ser humano para o mundo, ele pode entrar em sala de sexo, pornografia, fazer coisas que eram proibidas, descobrir pessoas iguais a ele, se permitir a trocar idéias sobre quem ele de fato é. É muito mais interessante do que Freud.