Além de suporte básico nas relações entre as pessoas, ela é nação, é pátria. Unificada, transforma-se em sólida base da qual emerge a diversidade das culturas
Por José Genulino Moura Ribeiro
Realizado em 1986, no Rio de Janeiro, o Encontro para a Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, que reuniu Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe – e contou ainda com a presença de uma delegação de observadores de Galícia, comunidade autônoma do extremo noroeste da Espanha -, resultou na assinatura, em 1990, do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Seu objetivo: a unificação da escrita do idioma nos países lusófonos.
Em todo esse processo tivemos como representantes brasileiros a escritora Nélida Piñon, primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, e o filólogo, enciclopedista, tradutor e diplomata Antônio Houaiss (1915-1999). Como única língua ocidental a ter duas grafias oficiais – uma brasileira, outra utilizada pela matriz Portugal e demais países lusofalantes -, não obstante os diferentes costumes e falares, era necessária a criação de uma regra para orientar a representação gráfica das nossas palavras.
O caldeirão linguístico da vertente portuguesa – do tronco indo-europeu, ramo itálico e grupo latino – principia sua caracterização singular com a chegada do latim vulgar no século 3º a.C. – e não do latim clássico -, transmitido pela prosa coloquial e cotidiana das tropas de ocupação do Império Romano, na figura dos soldados, e misturase com as influências bárbaras de suevos, vândalos e visigodos no século 5º. Depois, com usanças dos falares dos mouros, árabes do Norte da África, que chegaram à Península Ibérica em 711, constrói aquele que se considera o período arcaico da nossa língua – cuja formação remonta à criação do Estado português pelas mãos do primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, no longínquo ano de 1128, quando da vitória na Batalha de São Mamede contra sua mãe, Teresa de Leão.
Nesse longo período, as letras eram, então, grafadas com base na pronúncia, o que excluía o “h” hoje presente no nosso alfabeto. Passados os séculos, os árabes são expulsos do Sul de Portugal em 1249, mas fica o legado no vernáculo. Mais tarde, durante a Renascença, houve grande influência da cultura greco-latina na escrita lusitana, quando incorporamos por exemplo os dígrafos ch, ph, rh, th, que nos acompanhou até a virada para os Novecentos.
Nessa época, conta-nos o manual Escrevendo pela Nova Ortografia (lançado pelo Instituto Antônio Houaiss, Publifolha e Editora Paracatu), que, na década de 1910, Portugal faz a primeira reforma na escrita do idioma, com base em uma simplificação ortográfica surgida “com o trabalho do foneticista português Gonçalves Viana, que publicou em 1904 o livro Ortografia Nacional, no qual desenvolve uma análise da história interna da língua e estuda suas tendências fonéticas”. Tal iniciativa, levada a cabo em 1911, não contou com a participação do Brasil, ainda a escrever pharmacia, theatro.
Só em 1924 os dois países começaram a se reunir para a adopção de uma ortografia comum, consumada sete anos depois, em 1931, quando os nacionais do novo mundo aceitaram a ortografia simplificada. No entanto, as divergências nos vocabulários publicados em anos posteriores em Portugal (1940) e no Brasil (1943) levaram a um novo entendimento em 1945, quando a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras chegaram a um acordo, adotado em todos os países lusófonos exceto no Brasil, onde não houve ratificação do Congresso Nacional e se usava correntemente o vocabulário de 1943. Em 1971, ano em que a implantação da ortografia entra em vigor no País, houve novo entendimento e foram incorporadas alterações conforme o Acordo de 1945, mas ainda havia assimetrias na comunidade lusofalante internacional – Brasil de um lado, Portugal e os demais do outro.
Quinze anos depois, o Rio de Janeiro sediava o Encontro para a Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, cujo objetivo era a unidade intercontinental do Português, sob o argumento de que a existência de duas ortografias oficiais da língua portuguesa – uma luso-africana, outra brasileira – causava desprestígio e limitações nas relações internacionais.
Assim, em outubro de 1990, foi instituído o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a ser elaborado e ratificado por todos os países lusofalantes. No entanto, diante das dificuldades de aprovação da norma ortográfica em consequência das muitas reações nacionais adversas, em 2004 houve uma nova deliberação, que previa a vigência do Acordo com a aprovação de apenas três dos até então sete signatários, além da adesão do Timor-Leste, que tivera sua independência reconhecida pela ON U em 2002, 27 anos depois de deixar de ser colônia portuguesa e Ser invadido pela Indonésia em 1975.
A importância da eleição de uma grafia única a servir de regra também levou à criação, em 1996, da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Tal preocupação procede, pois se trata da normatização do espaço linguístico do idioma. O embate característico que ocorre neste espaço pode ser observado no aceita/ não-aceita dos diferentes âmbitos nacionais. Nesta última reorganização da norma ortográfica (1), o Brasil teve seu vocabulário modificado em apenas 0,5%, ao passo que em Portugal e nos demais países da CPLP a mudança ocorre em 1,6% do total das palavras.
O espalhamento das muitas línguas como consequência de ocupação ou até de influência em razão da necessidade das Relações entre os povos acaba por formar uma espécie de babel positiva, pois, ao mesmo tempo que a língua externa impõe sua injunção, a língua interna vai permeando pelas beiradas, se amalgamando e se misturando, num movimento parecido com o da invasão dos vândalos, que desceram para o Sul da Europa e o Norte da África lá no século 5º e, dois séculos depois, presenciaram a chegada à Península Ibérica de Tarik, o berbere de origem camito-semítica que chamou o local de desembarque na Espanha de “Jebel-al-Tarik”, ou “Monte de Tarik”, origem do topônimo Gibraltar.
Nesse ir-e-vir das palavras ora invasoras ora invadidas, dois embates são emblemáticos: um deles, a confrontação na Faixa de Gaza, por força de ocupação, de duas línguas que têm a mesma origem semítica, o árabe da Palestina e o hebraico dos israelenses. O outro caso, no Brasil – também na Argentina, na Bolívia e no Paraguai -, num movimento de resistência, interposição e ascensão dentro da língua portuguesa, é o do guarani, da família linguística tupiguarani, ora representado pelo lançamento do Dicionário Guarani-Português (Ne’e Ryru Avane’e), obra de Cecy Fernandes de Assis.
Estudiosa e escritora, a sul-mato-grossense Cecy começou a estudar a língua motivada a ajudar os professores de crianças indígenas em seu estado, e diz que sua obra é muito procurada por empresários do Mercosul e órgãos públicos de países desse bloco econômico.
A língua, além de suporte básico nas relações entre pessoas, carrega uma função simbólica: é a nação, a pátria, “instrumento de resistência contra a dominação estrangeira”, nas palavras de José Luiz Fiorin, professor do Departamento de Linguística da USP e da Comissão Nacional de Língua Portuguesa do MEC, em artigo na Folha de S.Paulo. Assim, o estabelecimento do Acordo Ortográfico, continua Fiorin, “visa a afirmar, por meio da unificação ortográfica, uma unidade linguística de base, que emerge de uma grande diversidade e que é o símbolo da união dos povos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa”
*Jornalista formado pela ECA/USP, revisor e checador de Página 22