Filmes exploram os conflitos individuais e coletivos que surgem na relação das pessoas com seus espaços
Por Ana Cristina D’Angelo
Na verdade, são dois rios e duas histórias contadas em documentários brasileiros que têm em comum o conflito das pessoas com seus territórios: pessoas que sonham com outros lugares a troco de qualquer condição, e outras, forçadas a deixar o lugar de origem e reconstruir a vida em local desconhecido. Quais as implicações dessas circunstâncias nas vidas de cada um e o que os espaços constroem no imaginário é o que os filmes – Do Outro Lado do Rio, de Lucas Bambozzi, e Sumidouro, de Cris Azzi – perpassam.
Ainda inéditas no circuito comercial, as obras puderam ser vistas em festivais de cinema e, em breve, terão cópias em DVD nas locadoras. Em Do Outro Lado do Rio, o cineasta Lucas Bambozzi documenta a fronteira da Guiana Francesa com o Brasil, no Amapá. O rio é a passagem para uma nova vida, com promessa de ouro, euros e Paris. São 300 quilômetros de fronteira pelo Rio Oiapoque que suscitam a aventura e a fantasia; a felicidade está lá, a despeito do perigo da ilegalidade ou da violência e do medo que permeiam as duas cidades – Oiapoque no lado brasileiro e Saint Georges de L’Oyapock, no lado francês.
Nesse caso, a fronteira geográfica é artificial, pois os “dois países” são habitados por iguais, convivem com miséria, prostituição e insegurança. “Na fronteira ninguém é amigo”, avisa o personagem Grande, desertor do Exército Brasileiro para tentar a vida na Guiana Francesa.
Ex-garimpeiro, Fininho diz que a principal riqueza que se pode ter nessa profissão é a memória. Mesmo deportado e preso em Belém, não se arrepende de ter chegado ilegalmente ao outro lado.
Os que ficam e os que vão estão sempre em conflito com o lugar eleito e carregam o anterior de alguma maneira – um território só existe em razão do outro, ou do que se imagina desse outro. Seja pelo medo de não ser bem-sucedido na empreitada ou ter de permanecer no mesmo lugar, todos estão em movimento. “Tenho muitas fantasias, quem não tem?”, pergunta a prostituta Telma, que se joga na saga de viver entre garimpos fazendo programas entre a gente tão ilegal e deslocada como ela. Para os travestis, aquela cidade pobre e decadente é o começo de Paris.
O único consolo em meio à violência, medo e desilusões é a certeza de que sempre é tempo de voltar para casa. Já em Sumidouro, de Cris Azzi, o rio também é um território comum, mas desta vez ele vai subir, virar represa e inundar 42 comunidades para construção de uma usina hidrelétrica.
A despeito das diferentes opiniões sobre a mudança forçada de casa, aquele território será “carregado” pelas cerca de 5 mil pessoas atingidas onde quer que estejam.
Não se pode dizer se o afeto ou apego ao lugar de origem, também precário e miserável, tenha se fortalecido em consequência de uma Imposição externa. Mas na nova moradia – um chapadão seco de casas idênticas e planejadas em contraposição ao vale à beira do rio onde moravam – a vida não começa do zero. A ponto de Jaime visitar, nos primeiros dias, em sua canoa, o antigo espaço já completamente inundado.
Numa imensidão de água, ele elenca lugares imaginários para as casas, o pé de manga que tinha na porta da cozinha, a origem das coisas. Dessa maneira há de se pensar que Nova Peixe Cru – nome dado para a vila que vai abrigar os deslocados pela barragem – seja um nome apropriado, porque contém o anterior, Peixe Cru, a mistura territorial que vai permear para sempre a vida daquelas pessoas.
“As pessoas podem achar que é difícil, mas onde você vive é a sua raiz”, diz a dona de casa Sandra, entre lágrimas, ao deixar o lar à margem do rio. O curioso, conta o cineasta Cris Azzi, é que os moradores deixaram a beira do rio para a beira da estrada, mais um lugar que leva e traz. Outro ponto que merece análise é a opção – como refugiados ambientais – de um reassentamento coletivo. Cada um poderia buscar sua indenização e partir para o canto escolhido, mas as comunidades decidiram ir juntas para o mesmo lugar, mantendo até a vizinhança de outrora.
Do ponto de vista político, relata o documentarista, as comunidades precisaram se organizar, criar associações e se fortaleceram para o debate com a companhia energética. O processo começou em 2002, quando receberam a notícia da construção da usina, mas a mudança para a nova vila só ocorreu em 2006.
“Gerou angústia porque levou muito tempo. Angústia de saber como ia ser a casa nova, de quando ia sair o dinheiro; quase uma suspensão da vida, porque a mudança não acontecia, a obra atrasava, tinha gente que queria se casar, mas não tinha casa para morar.” Com foco nos territórios em movimento e nos conflitos das pessoas com esses espaços, os dois filmes podem ser pensados também por suas diferenças. Enquanto Do Outro Lado do Rio exibe personagens em busca de satisfações individuais e desarraigados dos locais de origem, Sumidouro mostra a força coletiva que surge quando seu lugar é ameaçado. Mesmo com diferentes opiniões sobre o deslocamento forçado, há uma unidade, uma organização que brota da emergência.