Por Ana Cristina D’Angelo
Um empresário do ramo de agronegócio vê que “aquele mundo ia acabar”, o rio estava destruído e a comida que seus filhos comeriam no futuro estaria contaminada. Decide então ganhar menos e juntar-se aos outros, mudando a forma de trabalhar com base em novos princípios. Ele enfrenta o horror dos pais diante da decisão, dos vizinhos e, principalmente, dos poucos donos de muitas terras. A família pensa até hoje que é uma certa preguiça plantar banana com outros cultivos que proporcionam o adubo natural necessário, ao contrário da plantação convencional de mudas equidistantes umas das outras – que recebem as mesmíssimas doses de produtos químicos, o que lhes confere uma aparência também igual.
Aquele emaranhado de árvores – pupunha, banana, coqueiro, taioba – mais parece uma algazarra no terreno, difícil de digerir pelos antigos produtores locais. Os donos do capital também não entendem por que deixar de vender o palmito nativo que grassa naquelas áreas e insistir com a muda do pupunha que demora para crescer e nem é tão conhecido assim do consumidor.
Na casa modesta de uma rua escondida na comunidade Ivaporunduva, Oriel mora com a esposa. É uma nova família quilombola que, junto com outras 103, têm vista e ruídos privilegiados do Rio Ribeira de Iguape logo à frente e, nos outros lados, o aconchego do paredão de Mata Atlântica preservada.
Oriel leva visitantes, alunos do colégio paulistano Dante Alighieri, pelos caminhos da mata sem deixar de esclarecer, antes, todos os desafios que a comunidade enfrenta e todos os programas e ações que desenvolve. Ele também está em contato com lideranças negras de todo o mundo, conhece meia Europa e a América Latina e não arreda pé do consumo coletivo consciente.
“Falam que é muita terra pra pouca gente; eu preservo esta mata que você está vendo, a banana que eu planto não tem agrotóxico e nós vivemos do que plantamos.” São 10 horas de segunda-feira e atrasa um pouco a primeira sessão da Câmara de Vereadores de Eldorado, no Vale do Ribeira paulista. Os seis vereadores mais o presidente e funcionários já chegaram, mas eles esperam mais gente na plateia. A sessão é aberta ao público e, mesmo sob o calor úmido e sem vento, as pessoas conseguiram lotar o pequeno auditório.
É o primeiro dia do novo trabalho de José Rodrigues, líder quilombola eleito vereador com 188 votos. Entre as pautas, extinção de cargos da prefeitura e o prenúncio da discussão de que emprego, lá, só com concurso. José Rodrigues sabe que é só o começo: “Muita água vai passar por baixo da ponte. Esse mandato é das organizações, dos quilombolas, da periferia, temos muito o que fazer para impedir a construção da barragem e continuar lutando pela terra”.
Benjamim comprava o mesmo produto químico que viu uma vez em uma grande plantação e o jogava sem medidas no seu pequeno cultivo de gengibre. Vendia o gengibre para Estados Unidos e para o Japão, e faturava alto para os seus planos, até que viu tudo escoar pelo ralo quando o solo deu o troco: nada mais crescia ali. Hoje vive num assentamento e cultiva nos seus 12 hectares – dos quais se orgulha de ter o título de posse desde 2005 – banana orgânica e, aos poucos, começa a experimentar outros cultivos sem qualquer defensivo.
O carpete puído que cobre o chão do salão da prefeitura só vai ser trocado depois que o patrimônio público da cidade for recuperado. Disso não abre mão a chefe do executivo municipal de Registro, a prefeita recém-eleita Sandra Werneck. Depois de anos nos movimentos sociais e contando com apoio da sociedade civil que ultrapassa o limite da cidade em que foi eleita, Sandra está animada, mas realista. “Tenho limites, porque dependo das esferas federal e estadual, mas reconheço a esperança e a legitimidade que as pessoas depositaram em mim.”
Os retratos instantâneos acima (veja na versão impressa) são de 48 horas no Vale do Ribeira, uma das 60 regiões brasileiras eleitas Territórios da Cidadania, nome de um programa do governo federal que integra ações de 19 ministérios em regiões com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), baixo dinamismo econômico e maior concentração de agricultores familiares, assentamentos de reforma agrária, populações de quilombolas e indígenas.
No ano passado, os territórios (leia quadro ao final do texto) elegeram 135 ações e programas que deveriam ser privilegiados, envolvendo três eixos: atividades produtivas, regularização fundiária e cidadania.
Fica até difícil a caracterização imediata do Vale do Ribeira como lugar pobre, diante de tanta exuberância natural e gente tão articulada e ciente de seus papéis de cidadãos e líderes diante de um mundo transformado.
O que os une é uma noção que começou a ser considerada oficialmente apenas no ano passado. Um território é maior que uma cidade e menor que um Estado, na explicação mais simplista, e diz mais daquela realidade do que as fronteiras geográficas estabelecidas, se quisermos avançar um ponto.
O Vale do Ribeira construiu sua identidade em torno da Mata Atlântica, da luta pela regularização fundiária, da duplicação da BR-116, do Rio Ribeira de Iguape, do clima quente e úmido de quase todo o ano, da batalha constante pela não construção de barragens e de uma espécie de falta de ligação com o restante do Estado mais rico do País.
Os personagens se conhecem e se relacionam por causas parecidas, o que conforma uma rede social, cultural e histórica que permite a classificação de território. “Ninguém inventa que aquilo ali seria um território, as pessoas se enxergam naquele território, ele representa um ganho de espaço, de legitimidade política”, explica Márcio Halla, pesquisador da Fundação Getulio Vargas que já capacitou líderes no Vale do Ribeira e hoje atua na região do Baixo Amazonas.
Na seleção dos participantes do programa, o IDH é um corte para dizer que determinada região é pobre e merece atenção especial. A mudança observada pela reportagem de Página22 nesses dois dias no Vale do Ribeira é a ampliação do acesso à tomada de decisão e a novidadeira formulação de políticas de baixo para cima. Se lideranças comunitárias, ONGs, prefeituras, governo do Estado e federal não se articularem conjuntamente, os planos não sairão do papel. Dessa forma, o preparo de todos os atores é fundamental e, especialmente no Vale do Ribeira, a iniciativa encontrou trajetórias anteriores de formação e luta pelos direitos.
O empresário que decidiu mudar de vida como em uma parábola bíblica é Gilberto Otha. Mas sua história vem dos últimos 12 anos. Otha capacitou-se, formou a Associação de Economia Solidária e Desenvolvimento Sustentável do Guapiruvu, cuja sigla é Água, para espalhar as ideias de ética e sustentabilidade em uma região ameaçada pelo agronegócio.
A Associação ganhou braços nesse período: cooperativa que cuida da venda dos produtos orgânicos, clube ambiental de jovens e associação de assentados. A perspectiva é a de que os pequenos produtores se mantenham em situação oposta à de largos pedaços de terra para privilegiados. “Investimos em cultura até agora, o que não é pouco, mas precisamos da política pública para sustentar nossas iniciativas.” A briga é grande, o palmito nativo está para onde se olha e a retirada – ilegal – é um jeito rápido de ganhar dinheiro, ainda que miúdo.
Gilberto encontrou pelo caminho nosso outro personagem, Benjamim Muniz, o assentado que perdeu sua lavoura de gengibre pelo uso de produtos químicos. Benjamim e outras 70 famílias toparam, por exemplo, usar um trator para todos, na base do revezamento, para o cultivo da banana orgânica e o início da plantação de palmito pupunha, ipês, plantas medicinais e ornamentais.
Benjamim e as famílias receberam recentemente a segunda parte dos recursos advindos do Territórios da Cidadania para que continuem em suas terras e produzam alimentos saudáveis, além de contribuir para a preservação da Mata Atlântica, sem retirar o palmito nativo nem danificar o solo com aditivos químicos.
Banana orgânica, uma espécie de açaí retirada do fruto da árvore de palmito, trilhas, cachoeiras, observação de pássaros. Para agregar valor ao que é nativo, a Água já desenvolveu até salgadinhos chips feitos de mandioca e banana que transformam o valor de uma caixa da fruta em R$ 85 – quase 30 vezes o valor do produto in natura. Essa também é uma base de convencimento para os que ainda vivem dos R$ 4 por pedaço de juçara, o palmito nativo da Mata Atlântica. Mas a ideia do orgânico caro também não encontra adeptos na Associação. “A intenção é vender a preço de mercado, se não, não é ético”.
Nada é tão imediato. Gilberto Otha reclama da falta de portaria governamental para o manejo do fruto do palmito que vira a polpa parecida com o açaí e a logística de distribuição, que ainda esbarra nos intermediários – pontos em que o programa Territórios da Cidadania não consegue intervir.
A quase 80 quilômetros dali, Ivaporunduva tem problemas parecidos. Foi lá que encontramos Oriel Rodrigues e é onde mora o seu tio, agora vereador, Zé Rodrigues. As pouco mais de 100 famílias vivem do que plantam e recebem o Bolsa Família. Mas não pararam aí. Criaram programas locais com foco na sustentabilidade da terra e das águas abundantes e uma maneira de ser seus próprios patrões, evitando um êxodo para as cidades. Banana, artesanato, ervas medicinais e turismo são as atividades em curso para complementar a renda das famílias. Construíram uma pousada ecológica que, como todas as estruturas, pertence a todos da comunidade. “Todo mundo acaba sendo um pouco de tudo, planta banana, trabalha de guia para os turistas, participa das reuniões na cidade”, resume Oriel.
O artesanato também está na cadeia da banana. Aproveitam a palha da bananeira para criar cestos, bijuterias, diversos objetos que são vendidos nas cidades próximas e oferecidos aos turistas. Esse eixo, por sinal, está voltado para a educação. Os quilombolas fizeram parcerias com escolas de classe média alta de São Paulo e os alunos passam o fim de semana conhecendo um pouco mais sobre agricultura familiar, rios, Mata Atlântica, história dos quilombos e desafios atuais.
O maior deles é o projeto de construção de uma barragem no Rio Ribeira de Iguape, que domina a vista de Ivaporunduva, serve para pesca, lazer e transporte – é a única maneira de se chegar ao antigo quilombo através de uma balsa manejada com destreza e silêncio por dois rapazes da comunidade. A Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do Grupo Votorantim, prevê construção de quatro barragens na região.
Uma delas, se aprovada, vaicolocar Ivaporunduva sob as águas. “Está vendo o teto da capela? A água vai estar 10 metros acima”, aponta a parte mais alta do lugar Ditão, outro líder da comunidade. Como acontece nesses casos, a empresa deverá indenizar os moradores da área inundada, mas os quilombolas têm enfrentado a CBA por quase duas décadas. “Fizemos ocupações em Brasília, São Paulo, fechamos a rodovia em protesto, faremos o que for preciso para que o rio seja respeitado”, afirma o vereador José Rodrigues. Além da inundação de Ivaporunduva, outras barragens previstas comprometem cavernas da região, que ainda se encontram em fase de pesquisa.
Os quilombolas vendem a banana para a Companhia Nacional de Abastecimento, que a distribui para a merenda escolar. Mas no mês de janeiro, como os alunos estão de férias, sobra mercadoria em Ivaporunduva. Aí entra Sandra, a recém-eleita prefeita de Registro, cidade que é uma espécie de capital desse território que é o Vale do Ribeira. Bem antes da prefeitura, Sandra Werneck acompanhou de perto populações quilombolas e indígenas da região. E uma das medidas que planeja para seu governo é acelerar processos ainda burocráticos para escoar a produção sustentável que se batalha para manter. Ela quer comprar a banana direto dos produtores quilombolas para abastecer as escolas municipais que estão sob sua responsabilidade de agora em diante.
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Com Atenção especial – A região é uma das 60 escolhidas pelo programa que envolve 6 mil lideranças da sociedade civil
O programa Territórios da Cidadania envolve diretamente cerca de 10 mil pessoas, sendo que 6 mil são lideranças da sociedade civil. Em 2008, os colegiados criados nas 60 regiões escolhidas geraram 135 ações e/ou planos que qualquer cidadão pode acompanhar nos locais das reuniões ou pela internet (www.Territoriosdacidadania.gov.br). No site há relatórios completos de prestação de contas e andamento dos projetos por território.
No Vale do Ribeira, foram aplicados R$ 42 milhões por meio dessa ação, no ano passado. “A vantagem de ter o aval do programa é que agora as entidades não vão até o governo federal com um projeto debaixo do braço pedindo aprovação, ele já foi exaustivamente discutido e aprovado localmente”, diz Ronaldo José Ribeiro, diretor-presidente do Instituto Para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira.[:en]
Por Ana Cristina D’Angelo
Um empresário do ramo de agronegócio vê que “aquele mundo ia acabar”, o rio estava destruído e a comida que seus filhos comeriam no futuro estaria contaminada. Decide então ganhar menos e juntar-se aos outros, mudando a forma de trabalhar com base em novos princípios. Ele enfrenta o horror dos pais diante da decisão, dos vizinhos e, principalmente, dos poucos donos de muitas terras. A família pensa até hoje que é uma certa preguiça plantar banana com outros cultivos que proporcionam o adubo natural necessário, ao contrário da plantação convencional de mudas equidistantes umas das outras – que recebem as mesmíssimas doses de produtos químicos, o que lhes confere uma aparência também igual.
Aquele emaranhado de árvores – pupunha, banana, coqueiro, taioba – mais parece uma algazarra no terreno, difícil de digerir pelos antigos produtores locais. Os donos do capital também não entendem por que deixar de vender o palmito nativo que grassa naquelas áreas e insistir com a muda do pupunha que demora para crescer e nem é tão conhecido assim do consumidor.
Na casa modesta de uma rua escondida na comunidade Ivaporunduva, Oriel mora com a esposa. É uma nova família quilombola que, junto com outras 103, têm vista e ruídos privilegiados do Rio Ribeira de Iguape logo à frente e, nos outros lados, o aconchego do paredão de Mata Atlântica preservada.
Oriel leva visitantes, alunos do colégio paulistano Dante Alighieri, pelos caminhos da mata sem deixar de esclarecer, antes, todos os desafios que a comunidade enfrenta e todos os programas e ações que desenvolve. Ele também está em contato com lideranças negras de todo o mundo, conhece meia Europa e a América Latina e não arreda pé do consumo coletivo consciente.
“Falam que é muita terra pra pouca gente; eu preservo esta mata que você está vendo, a banana que eu planto não tem agrotóxico e nós vivemos do que plantamos.” São 10 horas de segunda-feira e atrasa um pouco a primeira sessão da Câmara de Vereadores de Eldorado, no Vale do Ribeira paulista. Os seis vereadores mais o presidente e funcionários já chegaram, mas eles esperam mais gente na plateia. A sessão é aberta ao público e, mesmo sob o calor úmido e sem vento, as pessoas conseguiram lotar o pequeno auditório.
É o primeiro dia do novo trabalho de José Rodrigues, líder quilombola eleito vereador com 188 votos. Entre as pautas, extinção de cargos da prefeitura e o prenúncio da discussão de que emprego, lá, só com concurso. José Rodrigues sabe que é só o começo: “Muita água vai passar por baixo da ponte. Esse mandato é das organizações, dos quilombolas, da periferia, temos muito o que fazer para impedir a construção da barragem e continuar lutando pela terra”.
Benjamim comprava o mesmo produto químico que viu uma vez em uma grande plantação e o jogava sem medidas no seu pequeno cultivo de gengibre. Vendia o gengibre para Estados Unidos e para o Japão, e faturava alto para os seus planos, até que viu tudo escoar pelo ralo quando o solo deu o troco: nada mais crescia ali. Hoje vive num assentamento e cultiva nos seus 12 hectares – dos quais se orgulha de ter o título de posse desde 2005 – banana orgânica e, aos poucos, começa a experimentar outros cultivos sem qualquer defensivo.
O carpete puído que cobre o chão do salão da prefeitura só vai ser trocado depois que o patrimônio público da cidade for recuperado. Disso não abre mão a chefe do executivo municipal de Registro, a prefeita recém-eleita Sandra Werneck. Depois de anos nos movimentos sociais e contando com apoio da sociedade civil que ultrapassa o limite da cidade em que foi eleita, Sandra está animada, mas realista. “Tenho limites, porque dependo das esferas federal e estadual, mas reconheço a esperança e a legitimidade que as pessoas depositaram em mim.”
Os retratos instantâneos acima (veja na versão impressa) são de 48 horas no Vale do Ribeira, uma das 60 regiões brasileiras eleitas Territórios da Cidadania, nome de um programa do governo federal que integra ações de 19 ministérios em regiões com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), baixo dinamismo econômico e maior concentração de agricultores familiares, assentamentos de reforma agrária, populações de quilombolas e indígenas.
No ano passado, os territórios (leia quadro ao final do texto) elegeram 135 ações e programas que deveriam ser privilegiados, envolvendo três eixos: atividades produtivas, regularização fundiária e cidadania.
Fica até difícil a caracterização imediata do Vale do Ribeira como lugar pobre, diante de tanta exuberância natural e gente tão articulada e ciente de seus papéis de cidadãos e líderes diante de um mundo transformado.
O que os une é uma noção que começou a ser considerada oficialmente apenas no ano passado. Um território é maior que uma cidade e menor que um Estado, na explicação mais simplista, e diz mais daquela realidade do que as fronteiras geográficas estabelecidas, se quisermos avançar um ponto.
O Vale do Ribeira construiu sua identidade em torno da Mata Atlântica, da luta pela regularização fundiária, da duplicação da BR-116, do Rio Ribeira de Iguape, do clima quente e úmido de quase todo o ano, da batalha constante pela não construção de barragens e de uma espécie de falta de ligação com o restante do Estado mais rico do País.
Os personagens se conhecem e se relacionam por causas parecidas, o que conforma uma rede social, cultural e histórica que permite a classificação de território. “Ninguém inventa que aquilo ali seria um território, as pessoas se enxergam naquele território, ele representa um ganho de espaço, de legitimidade política”, explica Márcio Halla, pesquisador da Fundação Getulio Vargas que já capacitou líderes no Vale do Ribeira e hoje atua na região do Baixo Amazonas.
Na seleção dos participantes do programa, o IDH é um corte para dizer que determinada região é pobre e merece atenção especial. A mudança observada pela reportagem de Página22 nesses dois dias no Vale do Ribeira é a ampliação do acesso à tomada de decisão e a novidadeira formulação de políticas de baixo para cima. Se lideranças comunitárias, ONGs, prefeituras, governo do Estado e federal não se articularem conjuntamente, os planos não sairão do papel. Dessa forma, o preparo de todos os atores é fundamental e, especialmente no Vale do Ribeira, a iniciativa encontrou trajetórias anteriores de formação e luta pelos direitos.
O empresário que decidiu mudar de vida como em uma parábola bíblica é Gilberto Otha. Mas sua história vem dos últimos 12 anos. Otha capacitou-se, formou a Associação de Economia Solidária e Desenvolvimento Sustentável do Guapiruvu, cuja sigla é Água, para espalhar as ideias de ética e sustentabilidade em uma região ameaçada pelo agronegócio.
A Associação ganhou braços nesse período: cooperativa que cuida da venda dos produtos orgânicos, clube ambiental de jovens e associação de assentados. A perspectiva é a de que os pequenos produtores se mantenham em situação oposta à de largos pedaços de terra para privilegiados. “Investimos em cultura até agora, o que não é pouco, mas precisamos da política pública para sustentar nossas iniciativas.” A briga é grande, o palmito nativo está para onde se olha e a retirada – ilegal – é um jeito rápido de ganhar dinheiro, ainda que miúdo.
Gilberto encontrou pelo caminho nosso outro personagem, Benjamim Muniz, o assentado que perdeu sua lavoura de gengibre pelo uso de produtos químicos. Benjamim e outras 70 famílias toparam, por exemplo, usar um trator para todos, na base do revezamento, para o cultivo da banana orgânica e o início da plantação de palmito pupunha, ipês, plantas medicinais e ornamentais.
Benjamim e as famílias receberam recentemente a segunda parte dos recursos advindos do Territórios da Cidadania para que continuem em suas terras e produzam alimentos saudáveis, além de contribuir para a preservação da Mata Atlântica, sem retirar o palmito nativo nem danificar o solo com aditivos químicos.
Banana orgânica, uma espécie de açaí retirada do fruto da árvore de palmito, trilhas, cachoeiras, observação de pássaros. Para agregar valor ao que é nativo, a Água já desenvolveu até salgadinhos chips feitos de mandioca e banana que transformam o valor de uma caixa da fruta em R$ 85 – quase 30 vezes o valor do produto in natura. Essa também é uma base de convencimento para os que ainda vivem dos R$ 4 por pedaço de juçara, o palmito nativo da Mata Atlântica. Mas a ideia do orgânico caro também não encontra adeptos na Associação. “A intenção é vender a preço de mercado, se não, não é ético”.
Nada é tão imediato. Gilberto Otha reclama da falta de portaria governamental para o manejo do fruto do palmito que vira a polpa parecida com o açaí e a logística de distribuição, que ainda esbarra nos intermediários – pontos em que o programa Territórios da Cidadania não consegue intervir.
A quase 80 quilômetros dali, Ivaporunduva tem problemas parecidos. Foi lá que encontramos Oriel Rodrigues e é onde mora o seu tio, agora vereador, Zé Rodrigues. As pouco mais de 100 famílias vivem do que plantam e recebem o Bolsa Família. Mas não pararam aí. Criaram programas locais com foco na sustentabilidade da terra e das águas abundantes e uma maneira de ser seus próprios patrões, evitando um êxodo para as cidades. Banana, artesanato, ervas medicinais e turismo são as atividades em curso para complementar a renda das famílias. Construíram uma pousada ecológica que, como todas as estruturas, pertence a todos da comunidade. “Todo mundo acaba sendo um pouco de tudo, planta banana, trabalha de guia para os turistas, participa das reuniões na cidade”, resume Oriel.
O artesanato também está na cadeia da banana. Aproveitam a palha da bananeira para criar cestos, bijuterias, diversos objetos que são vendidos nas cidades próximas e oferecidos aos turistas. Esse eixo, por sinal, está voltado para a educação. Os quilombolas fizeram parcerias com escolas de classe média alta de São Paulo e os alunos passam o fim de semana conhecendo um pouco mais sobre agricultura familiar, rios, Mata Atlântica, história dos quilombos e desafios atuais.
O maior deles é o projeto de construção de uma barragem no Rio Ribeira de Iguape, que domina a vista de Ivaporunduva, serve para pesca, lazer e transporte – é a única maneira de se chegar ao antigo quilombo através de uma balsa manejada com destreza e silêncio por dois rapazes da comunidade. A Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do Grupo Votorantim, prevê construção de quatro barragens na região.
Uma delas, se aprovada, vaicolocar Ivaporunduva sob as águas. “Está vendo o teto da capela? A água vai estar 10 metros acima”, aponta a parte mais alta do lugar Ditão, outro líder da comunidade. Como acontece nesses casos, a empresa deverá indenizar os moradores da área inundada, mas os quilombolas têm enfrentado a CBA por quase duas décadas. “Fizemos ocupações em Brasília, São Paulo, fechamos a rodovia em protesto, faremos o que for preciso para que o rio seja respeitado”, afirma o vereador José Rodrigues. Além da inundação de Ivaporunduva, outras barragens previstas comprometem cavernas da região, que ainda se encontram em fase de pesquisa.
Os quilombolas vendem a banana para a Companhia Nacional de Abastecimento, que a distribui para a merenda escolar. Mas no mês de janeiro, como os alunos estão de férias, sobra mercadoria em Ivaporunduva. Aí entra Sandra, a recém-eleita prefeita de Registro, cidade que é uma espécie de capital desse território que é o Vale do Ribeira. Bem antes da prefeitura, Sandra Werneck acompanhou de perto populações quilombolas e indígenas da região. E uma das medidas que planeja para seu governo é acelerar processos ainda burocráticos para escoar a produção sustentável que se batalha para manter. Ela quer comprar a banana direto dos produtores quilombolas para abastecer as escolas municipais que estão sob sua responsabilidade de agora em diante.
———————————————————————————————————————————————————-
Com Atenção especial – A região é uma das 60 escolhidas pelo programa que envolve 6 mil lideranças da sociedade civil
O programa Territórios da Cidadania envolve diretamente cerca de 10 mil pessoas, sendo que 6 mil são lideranças da sociedade civil. Em 2008, os colegiados criados nas 60 regiões escolhidas geraram 135 ações e/ou planos que qualquer cidadão pode acompanhar nos locais das reuniões ou pela internet (www.Territoriosdacidadania.gov.br). No site há relatórios completos de prestação de contas e andamento dos projetos por território.
No Vale do Ribeira, foram aplicados R$ 42 milhões por meio dessa ação, no ano passado. “A vantagem de ter o aval do programa é que agora as entidades não vão até o governo federal com um projeto debaixo do braço pedindo aprovação, ele já foi exaustivamente discutido e aprovado localmente”, diz Ronaldo José Ribeiro, diretor-presidente do Instituto Para o Desenvolvimento Sustentável e Cidadania do Vale do Ribeira.