Indivíduos que trabalham para o coletivo tecem uma troca invisível e intensa na aparente homogeneidade urbana
Ser invisível em uma cidade grande é fácil. Raro é ver os que usam sua força individual e discreta para o coletivo. Na teoria, todos estamos trabalhando para todos, mas há alguns ofícios e ideias, tão fundamentais quanto imperceptíveis e belos, que valem a pena ser revelados. O funcionamento de qualquer metrópole mundial – desde o transporte público ao bem-estar geral – congrega um grupo heterogêneo e curioso.
Gente que se dedica ao todo em surdina e, nesse processo, sustenta e areja a vida. Augusto César Sampaio Fiorelli cuida do Big Ben brasileiro. O relógio do Mosteiro de São Bento é referência para milhares de pessoas que passam pelo Centro da cidade e é considerado o mais preciso de São Paulo. A cada semana, Fiorelli gira a manivela que faz o São Bento funcionar, lubrifica engrenagens, ajusta a hora que define chegada e saída do trabalho, feitura de um almoço, assar de um bolo, menino saindo da escola. É um invisível senhor do tempo. Sob sua responsabilidade estão outros onze relógios de torres. Como cada um tem seu tempo certo de dar corda, o relojoeiro não pode ficar longe de São Paulo mais que quatro dias. E não se importa.
Augusto é um apaixonado pelo ofício que herdou do avô, já falecido, que dedicou a vida a acertar os ponteiros de São Paulo.”Esses relógios são todos importantes. O da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Praça da Sé, do Palácio das Indústrias. Passam milhares de pessoas na frente do relógio. Se a pessoa olha pra cima e vê o relógio parado, não tem nenhuma utilidade pública”, diz o relojoeiro, em depoimento colhido pelo Museu da Pessoa. Apesar de manter a relojoaria e a manutenção dos grandes relógios, Augusto tem consciência de que, aos poucos, seu ofício pode desaparecer. “Essa profissão está em extinção. Eu não sei. Pode ser que continue o relógio de torre. Agora esses relógios de parede, de pulso, de bolso… Esses praticamente estão sendo eliminados. A maioria é tudo digital. E o pessoal que tem idade vai acabando também. Aí perde aquela tradição de usar relógio. E os novos não fazem questão. A maioria não tem relógio no pulso, a maioria não quer aquele relógio de pedestal na casa… Vamos ver se daqui a dez anos, quinze anos, a coisa vai continuar. Não é uma certeza. Não é uma garantia.”
Até lá, Augusto mantém sua rotina, sobe escadas sinuosas para acertar os ponteiros e sabe os problemas e vantagens de cada engenhoca. Os dias de mais trabalho são a mudança para o horário de verão. “Daí é um corre-corre, mas eu tenho tudo na cabeça, não anoto nada.”
No Centro do Rio de Janeiro, Manuela Dias tira do anonimato por alguns minutos quem estiver disposto a (re)contar sua história. Paga R$ 1 em troca. A roteirista está em busca dos relatos de vida de quem passa no Largo da Carioca para um livro e um filme. Conduz uma rotina quase silenciosa, não fosse o cartaz “Conte Sua História e Ganhe um Real”, que empunha nessas empreitadas. Entre risos e curiosidade, aos poucos ela vai agregando interessados. “As pessoas param porque falar dá uma aliviada, ou então porque assim revivem a história. Uma coisa que me chama a atenção é que a gente é sempre protagonista na nossa vida. Mesmo quando é figurante no todo, ninguém se vê como anônimo”, analisa.
Manuela não faz muitas perguntas, deixa seu convidado à vontade para falar ao gravador e não faz imagens. “Vejo meu trabalho como uma pescaria, são as pessoas que param e chegam.” O resultado final para as “cobaias”, na voz da roteirista, é uma satisfação pelo feito, por ter passado pela experiência. “Eu dei um depoimento sobre a minha vida, sabe?” Ainda que a narrativa seja um bom exemplo de ficção com seus filtros do momento e da memória, quem passa por ali sai feliz.
A roteirista volta para casa com a sensação de que as pessoas são inteligentes e profundas. “Está todo mundo no mesmo barco. Todos temos dificuldades e estamos batalhando.” Dos cerca de 300 depoimentos que colheu em dois anos, ela só tem certeza de que a frase mais ouvida é: “Minha história é muito longa e muito triste”. Mesmo que o incauto já cuide de editar a oratória como acha que interessa, a vida sempre passa pelo drama.
Da massa aplainada da paisagem urbana, as pessoas ganham novos volumes e diferenças nessa quebra momentânea de anonimato. Ela pretende chegar aos mil casos de histórias humanas e vai usar os depoimentos inteiros de alguns selecionados. “No filme vão entrar os sons das narrativas.”
Nem melhor nem pior, apenas disponível
Parece incrível, mas os dramas de cada um também encontram ouvidos pacientes em outros lugares. Uma vez por semana, durante quatro horas e meia, Elaine fica à disposição para escutar o outro angustiado. Ela trabalha como voluntária há treze anos e meio no Centro de Valorização da Vida – CVV. Atende por telefone, carta, e-mail e, dependendo da necessidade, pessoalmente, em uma instituição que pretende a prevenção do suicídio.
O trabalho é anônimo e, para ela, fascinante. “Tenho a oportunidade de estar em contato com o que as pessoas têm de mais sagrado, as suas experiências.” No processo, conta que se vê e revê todo o tempo e que, por isso, o trabalho se transforma em uma proposta de vida. “Nossas vidas estão conectadas, você influencia e é influenciado. Você não é superior àquele que está frágil, você apenas está disponível para ajudar naquela hora.”
O trabalho não é científico nem religioso, apenas acredita na pessoa como centro do mundo e na capacidade de cada um para encontrar suas respostas. Então, quem liga, explica a voluntária, não é “o suicida”, mas quem está só e precisa conversar, quem está feliz com uma conquista e quer compartilhar, quem está em dúvida e também quem está desesperado.
Sua parte é estar disponível, facilitar o diálogo interno daquela pessoa. “Muitas vezes alguém começa a falar, você não dá conselho nenhum e, no final, ele agradece pelos conselhos que você não deu.” Para chegar a esta “compreensão empática” – que pode ser traduzido como se colocar no lugar do outro – Elaine e qualquer voluntário do CVV passaram por um treinamento de 12 semanas. Um dos exercícios primordiais, relata ela, é separar sua vida da do outro para que você esteja atento quando uma história começa a interferir na outra. Os voluntários se reúnem uma vez por mês para uma troca de ideias, apoio mútuo e encorajamento para o trabalho.
“Quando você recebe essa proposta de vida, começa a enxergar coisas que estão implícitas, invisíveis, a perceber o que está nas entrelinhas. Temos uma sociedade de surdos, todo mundo falando e ninguém ouvindo.” O que atraiu Elaine ao CVV foi a diretriz da instituição de que um dia não precisará existir porque a sociedade será capaz de se organizar e viver de maneira mais fraterna.
Enquanto isso, Cláudia dos Santos Nascimento trata de dar um alento a quem está sendo punido. Ela conduz rodas de leitura para os detentos de duas penitenciárias do complexo de Franco da Rocha, na Grande São Paulo. As unidades têm salas de leitura com 6 mil títulos, mas do que adianta se ninguém lê? Cabe a ela tramar jeitos de atrair aquelas pessoas tão machucadas e revoltadas com tudo. Daí vale montar cenário para a leitura de As Mil e Uma Noites, interpretar contos, chamar a atenção de quem perdeu identidade, família, liberdade. Quando há rodas de leitura, o empréstimo dos livros cresce e, com isso, talvez a única possibilidade de aquela pessoa viajar para fora dos muros e sonhar de novo.
Uma das táticas bem-sucedidas das rodas é a leitura das histórias pelos próprios detentos. Os iguais se reconhecem e o interesse aumenta. “Daí você percebe aquele super calado se manifestar, o disperso interagir”, conta. Dos cerca de 1.500 presos, a grande maioria tem entre 18 e 30 anos e Cláudia reconhece que há estímulos mais rápidos na conquista que o embarque na literatura. “Procuro selecionar títulos que têm a ver com a história deles.” Há ainda o empenho dos monitores detentos, já abduzidos pelos livros, que trabalham para atrair os outros.”Através de uma coisa aparentemente simples, que é a roda de leitura, você consegue chegar mais perto da educação, que é no que acredito.”
Indivíduos que trabalham para o coletivo tecem uma troca invisível e intensa na aparente homogeneidade urbana Ser invisível em uma cidade grande é fácil. Raro é ver os que usam sua força individual e discreta para o coletivo. Na teoria, todos estamos trabalhando para todos, mas há alguns ofícios e ideias, tão fundamentais quanto imperceptíveis e belos, que valem a pena ser revelados. O funcionamento de qualquer metrópole mundial – desde o transporte público ao bem-estar geral – congrega um grupo heterogêneo e curioso. Gente que se dedica ao todo em surdina e, nesse processo, sustenta e areja a vida.