O excesso de bens ou a falta do dinheiro convencional inauguram relações econômicas baseadas em solidariedade
A troca de serviços e produtos sem uso da moeda volta, de um jeito diferente, impulsionando uma mudança na lógica de consumo. Quando o dinheiro é usado, ganha outro nome, simbólico, que faz refletir sobre a circulação das coisas na sociedade e nem de longe vira o centro das acumulações. A nova era do escambo tem contornos variados, mas é uníssona na consciência de que não é sustentável manter tantos bens e preços no planeta.
Uma dose de boa vontade também é recomendada. O escambo dos tempos medievais já ganha feiras, no mundo virtual e real, sonhos de viajar pelo mundo sem pagar pernoite, de circulação de livros e de uma ideia saudável de fluidez que faz lembrar o filme A Corrente do Bem. Ali, o professor de Estudos Sociais Eugene Simonet faz um desafio a seus alunos: que eles criem algo que possa mudar o mundo. O aluno Trevor McKinney, incentivado pela proposta, cria um novo jogo, chamado “Pay it Forward”, em que cada favor recebido deve ser retribuído a três outras pessoas. Surpreendentemente, a ideia funciona, ajudando os envolvidos a encontrar outros sentidos para suas vidas.
No início dos anos 70, a professora de Brasília Lais Aderne chegava a Olhos d’Água, um pequeno povoado do interior de Goiás, distrito da cidade de Alexânia, a 110 quilômetros de Goiânia. Ali se encantou com a tecelagem, o trabalho com fibras, a cerâmica utilitária, as esculturas em madeira e o espinho da árvore mama-de-porca. Criou uma associação de artesãos e começou o trabalho de resgate dos fazeres culturais daquela comunidade.
Naquela época, apesar de estar próximos a duas capitais, os moradores de Olhos d’Água praticamente não compravam nada além do sal, que mandavam buscar de carro de boi em Corumbá, município vizinho. Os demais bens de consumo eram trocados uns pelos outros. Se um produzia feijão e outro tinha abóbora, era feito o escambo. Se uma artesã tecia uma coberta ou um pano para calça, trocava por um saco de farinha.
Assim, a comunidade atendia suas necessidades. Vendo isso, Lais idealizou uma feira que atraísse a atenção de um novo público e ampliasse o mercado de trocas dessa comunidade. Surgiu, então, em 1974, a primeira Feira de Trocas, unindo as duas práticas tradicionais naquela comunidade: o escambo e o artesanato. A feira, que ocorre duas vezes por ano, está na 70ª edição e vai homenagear a professora Lais, que morreu no ano passado.
Debaixo do Viaduto do Glicério, no Centro de São Paulo, muita gente se reúne uma vez por mês para trocar suas “mirucas” por produtos. Na Feira de Trocas Solidárias do Centro de São Paulo, a ordem é menos o desejo e mais a necessidade.
A moeda social miruca foicriada pelos próprios moradores da região, com apoio de estudantes da USP, de ONGs e da FGV. Como o escambo tem limites, a moeda serve para facilitar e potencializar a troca. Naquele espaço quase invisível para os carros que passam voando, lá no alto, em duas mãos, o dinheiro não tem qualquer valor cumulativo. Ele vai servir para um suco e pão com carne (M$ 1) , um sabonete orgânico (M$ 2), uma sandália seminova (M$ 5), um cafezinho (M$ 0,50). A feira compra, em mirucas, as doações dos participantes. Livros em bom estado custam até M$ 3, que podem ser gastas ali mesmo na feira.
As pessoas levam os objetos que não querem mais e podem ou trocá-los diretamente ou recorrer ao “banco” para obter moedas sociais. Lá, os organizadores estimam o “valor social” dos itens e os trocam pela moeda vigente. Do banco, os objetos vão para as barracas, e, assim, as mercadorias giram. Por isso, mesmo com moeda, é uma feira de trocas.
O evento é animado com shows de artistas locais e incentiva barracas de pequenos artesãos. Cada morador de rua ganha M$ 2 na entrada, mas, se levam óleo de cozinha para reciclagem, garantem mais algumas mirucas. “A lógica da feira é que o dinheiro convencional ‘custa caro’ e essas pessoas não têm acesso ao mercado dessa maneira. Então aquicriamos nossa política monetária, baseada em justiça social, numa perspectiva de solidariedade”, diz Felipe Bannitz, voluntário da organização.
Outro aspecto da feira paulistana é que ela serve de escola preparatória para iniciativas maiores. Os freqüentadores são estimulados a produzir e fazer circular seus trabalhos através do incentivo que a feira dá. Felipe acha que o mundo inteiro está precisando de uma feira-escola como a do Glicério, porque a lógica do mercado financeiro se mostrou fracassada. “Na economia solidária todos cuidam da criação e circulação da moeda”, ensina. Se vai levar tempo ou é apenas uma utopia, de uma coisa ele já sabe. A miruca anda caindo no gosto da região e pode extrapolar os limites do viaduto, passando a ser usada no comércio do bairro. Outra moeda social – a Atitude – também deve entrar na roda das trocas. E o povo adora. Washington Garcia, cantor de hip-hop, cozinheiro e pintor, foi prestigiar os amigos que levaram o som da última feira. Aproveitou para ajudar nas palmas a galera da capoeira e depois desembolsou suas mirucas em lanche e num colar para a mulher. Agitação cultural em troca de presente para a querida.
Feiras de troca com características semelhantes podem ser encontradas em outras capitais brasileiras. A ideia de montar uma na cidade de Salvador, por exemplo, teve inspiração na experiência da Argentina pós-crise de 2001. Os encontros mensais geralmente acontecem no Passeio Público de Salvador e as trocas são diretas, organizadas pelo coletivo “O Escambal”, que organiza o evento. Em Brasília, a “Feira Escambau” (Feiraescambau@gmail.com), promovida pela organização Trilha Mundos, não tem moeda social: as trocas são diretas.
A última se deu em novembro passado na Universidade de Brasília. A internet potencializou o escambo em inúmeros grupos e comunidades mundiais, estimulando o aproveitamento das mercadorias. O site brasileiro Xcambo (www.xcambo.com.br), por exemplo, exibe mais de 30 categorias de produtos, de telefone celular a aquário, carrinho de bebê, capacete a revista em quadrinhos, jóias ou figurinhas para completar álbum. Depois de um cadastro simples, você pode começar a oferecer produtos e fazer propostas para o que estiver disponível. Os participantes atribuem estrelas verdes para trocas bem-sucedidas, uma espécie de guia para a imensidão de ofertas. E o site faz o ranking dos Top Xcambistas do mês com base nessas qualificações dadas pelos internautas. Reginaldo, que aparecia em primeiro lugar quando da pesquisa para a reportagem, tinha 159 estrelas verdes e sua última troca foi um carregador de celular por uma luminária de leitura.
Fã do método, a artesã de jóias Fabiana Leite agora está em busca de um fogão em bom estado, pois o seu está bem velho. Ela acha que vai encontrar o doador no Xcambo ou no FreeCycle (www.freecycle.org), outra comunidade on-line na base da troca que tem subsidiárias em vários países. O FreeCycle brasileiro funciona através de uma lista de discussão criada em um grande provedor e, diariamente, os inscritos recebem dezenas de ofertas de doações diversas. Foi lá que Fabiana encontrou novos donos para seu criado-mudo, roupas de bebê, livros, um penico da Turma da Mônica, Cds e até um conjunto de sofás que, segundo ela, foi parar em Santa Catarina depois da tragédia das chuvas.
“Eu preciso abrir espaço na minha casa, porque trabalho aqui. Se colocar na ponta do lápis, não compensa vender e a doação é legal, você sabe que assim evita mais consumo”, resume.
No FreeCycle, dinheiro não entra. Você doa sem olhar a quem. Mesmo assim, Fabiana achou estranho quando um receptor do seu criado-mudo estacionou um carrão na porta da sua casa para buscar o dito. “Ele insistiu tanto, falou que precisava muito, mas não acreditei quando vi o carro, de repente não era pra ele”, especula. A coleta das mercadorias é feita na base da confiança. Vale deixar na portaria do prédio, dar uma olhada pelo portão antes de a pessoa chegar, mas ela garante que tudo funciona, porque o espírito do negócio é bom. O desapego anda tão grande, por esses lados da internet, que tem gente pedindo carro. Já apareceram várias buscas de carro – para trabalhar, para passear, aceito carro encostado, velho e até com multa. Se o aparelho de celular já foi em um passado recente objeto para poucos abastados, não duvide que o carro – cuja reputação não anda das melhores – vire um bem de troca simples ou mesmo doação.
Fabiana acha que dá até pra fazer amizade no troca-troca on-line. “Converso muito com uma pessoa que já recebeu várias coisas minhas, ele está lá mais pra receber que pra doar, vive caçando”, diz. Imagine agora um surfista de sofá. É a proposta, em tradução literal, da comunidade CouchSurfing (www.couchsurfing. com). O site cadastra gente interessada em oferecer gratuitamente o sofá da sala para viajantes em mais de 200 países do mundo, o sonho de consumo de quem gosta de uma estrada. Em troca, mas não necessariamente, o viajante vai ter seu momento de anfitrião. O público do CouchSurfing é bem eclético, desde mochileiros experientes até os que nunca viajaram, mas querem hóspedes estrangeiros em casa como forma de conhecer novas culturas e idiomas.
O propósito da comunidade é oferecer hospitalidade. Então, mesmo que você não ofereça seu sofá, pode estar disponível para um café, uma balada, uma companhia para o surfista da vez que vai querer programas que dificilmente agências de viagem podem proporcionar. Os usuários fazem questão de ressaltar de que não se trata de um site de encontros.
Mas quem pode impedir uma cantada de um francês a uma jovem brasileira que surfou na sua sala por uma semana? O caso aconteceu, mas a brasileira, que prefere não se identificar, diz que a situação não foi das mais constrangedoras, apesar de deixar claro para o autor do galanteio que naquela praia ela não queria surfar. O CouchSurfing permite que os usuários construam suas identidades no site com foto do sofá, histórico, hábitos, interesses, família, localização da casa.
Os mais desconfiados podem dar uma olhada nas referências dos perfis, mensagens são pistas se por ali tudo correu às mil maravilhas com outros hóspedes. As referências não podem ser apagadas.
Contudo, no mundo das trocas, o segredo é a confiança mútua. Confiança com pitada de curiosidade e gosto pelos livros é o tempero do Bookcrossing (www.bookcrossing. com). Nesta comunidade internacional a ideia é fazer os livros circularem e, por que não, abrir espaço nas estantes. São mais de 700 mil usuários em 130 países.
O divertido dessa viagem dos livros é que você simplesmente o deixa por aí, dentro de um orelhão, numa praça, num quarto de hotelou numa cafeteria. E o novo leitor será sempre uma surpresa. Se ele entrar no site do Bookcrossing pode encontrar o doador, os dados sobreo livro liberado, fazer comentários sobre a experiência e colaborar para a próxima jornada da literatura, fazendo do mundo, como apregoa o site, uma grande biblioteca. Se ele apenas ler um novo livro, já valeu também.
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Dinheiro, um pedaço de papel
Na Idade Média, surgiu o costume de se guardarem os valores com um ourives, pessoa que negociava objetos de ouro e prata. Este, como garantia, entregava um recibo. Com o tempo, esses recibos passaram a ser utilizados para efetuar pagamentos, circulando de mão em mão e dando origem à moeda de papel. No Brasil, os primeiros bilhetes de banco, precursores das cédulas atuais, foram lançados pelo Banco do Brasil, em 1810. Tinham seu valor preenchido a mão, tal como, hoje, fazemos com os cheques.