É possível que o debate sobre os muros no Rio ajude a construir uma agenda para os municípios brasileiros, onde falta democracia e sobra segregação
Por Sérgio Magalhães*
A imprensa tem dedicado bom espaço ao debate que se desenvolveu a partir do anúncio, pelo governo do estado, de que seriam construídos muros nas favelas da Zona Sul do Rio. Com 3 metros de altura, em concreto, os muros serviriam de limite entre a favela e a mata.
O governo diz que o objetivo é conter a derrubada da floresta. As críticas são de que muros têm forte e indissociável simbolismo de segregação.
Não é uma questão simples. Envolve a percepção de que a violência urbana se expande e se consolida, a estigmatização das favelas como matriz da desordem e, sobretudo, o estranhamento à diversidade, crescente entre nós.
Pela abrangência (apenas Zona Sul) e circunstâncias (violência), o tema leva a pensar que se trata de uma resposta semiológica, de ordem simbólica, a uma questão política.
A Zona Sul é um palco social privilegiado, lugar de residência e lazer de grande parte da classe média mais bem situada economicamente e de expressiva parcela dos ricos. Cada vez mais tem exercido papel substituto do centro tradicional. A Zona Sul é parte da centralidade política, econômica, cultural e social carioca.
A repercussão do que aí ocorre é muito ampla. Há meses, a propósito da informação de que traficantes de outras zonas da cidade estavam transferindo seus arsenais para favelas da Zona Sul, onde a polícia no enfrentamento age com mais cautela, o secretário de Segurança do estado afirmou que “um tiro em Copacabana é uma coisa, um tiro no Alemão é outra”.
Alemão é um complexo de favelas da Zona Norte suburbana, com população superior a 50 mil pessoas. Em 2007, foi escolhido pelo governo do estado como foco ostensivo de sua política de retomada dos territórios dominados pelo tráfico. O complexo passou ao controle das forças policiais depois de vários dias de muita luta e grande número de mortos. No entanto, pouco tempo depois, o governo se retirou. Lembre-se de que lá, em 2002, foi assassinado o jornalista Tim Lopes, da Rede Globo.
Ao final de 2008, o governo anunciou a retomada da Santa Marta, em Botafogo, favela com 4 mil habitantes. Há um destacamento policial estabelecido na favela, integrado por agentes recém-formados. A decisão do governo, novamente, é lá permanecer.
O modelo é avaliado como bem-sucedido e será replicado em outras áreas, com a incorporação de novos policiais. No entanto, sua universalização custa muito, em tempo e em dinheiro, o que fortalece o ceticismo quanto à perseverança na decisão.
A polêmica sobre os muros não veio sozinha, mas no bojo de recorrentes episódios de violência. O anúncio da construção deu-se em momento de guerra entre quadrilhas em favelas de Copacabana, com o tiroteio tendo se espraiado por bairros vizinhos à Lagoa Rodrigo de Freitas, causando pânico na Zona Sul. Veio também acompanhado de manifestações na mídia em apoio a remoções de favelas.
O morro não tem vez
Há poucas décadas, as favelas eram consideradas pitorescas, lugar do samba. À margem do Estado, seus malandros deram vez aos traficantes, que se fortaleceram, se armaram pesadamente e hoje detêm o controle do território. Não apenas o controle militar, mas, com ele, o econômico, por meio de serviços como o de transporte (vans e motoboys), comunicação (gatonet, rádios e Tvs piratas), água (monitoramento) e energia (gás), além de atividades imobiliárias (produção e aluguel) e de lazer (bailes, quiosques, pontos esportivos). A guerra é recorrente entre quadrilhas e entre quadrilhas e polícia – e, pelo alcance das armas, não se limita à favela.
Neste contexto, é crescente o estranhamento que a favela causa aos cidadãos em geral, identificada como o lugar da violência, o que amplia a estigmatização. Assim, em se tratando de favelas, é indissociávelo tema da segurança.
Embora estudos de diversas fontes informem que na Zona Sul a expansão é quase irrelevante, a percepção de muitos é de que as favelas se expandem aceleradamente. Mesmo sem expandir, as favelas da Zona Sul aparentam fazê-lo, porque há dinamismo imobiliário, ampliando moradias e acrescentando andares. Em especial à noite, nota-se o adensamento pela iluminação que cresce, aumentando a percepção de que as favelas são incontroláveis.
Mas, como quaisquer elementos urbanos, não podem dispor do território indistintamente. É de interesse da cidade e dos próprios assentamentos. Há consenso, entre moradores e governos, de que é preciso haver limites claramente definidos – e este consenso se estabeleceu já na década de 1990, com o Favela-Bairro (F-B), programa de urbanização de favelas consolidadas, de iniciativa da prefeitura. A compreensão é de que os benefícios seriam perdidos com o crescimento inadequado. O F-B estabeleceu limites e condições para construir em cada assentamento. Instituiu uma legislação simples, implantou escritórios da prefeitura para orientação urbanística e social – os Pousos – e, nas fronteiras da ocupação, construiu marcos claramente visíveis, inclusive muros, mas de apenas 30 centímetros de altura.
Todavia, a partir de 2001, muitos Pousos foram fechados. O argumento da prefeitura foi o constrangimento imposto pelos bandidos, que crescentemente interfeririam no trabalho dos agentes públicos. Sem controle do território pelo Estado, tal controle urbanístico é uma falácia.
O reflorestamento é outra ação que ajuda a preservar limites, enquanto recupera o meio ambiente. Os morros da Zona Sul, nos últimos anos, tiveram a sua área florestada expandida tanto pelo programa Favela-Bairro como pelo projeto Mutirão Reflorestamento. Apesar disso, persiste o discurso das florestas sendo devastadas pelas favelas.
Em apoio à construção desse sentimento, a mídia exacerba e, muitas vezes, sem contextualizar informações, oferece um aspecto dissociado do conjunto.
Recentemente, foi dado destaque a um estudo do Instituto Pereira Passos de que, em uma década, as favelas da cidade expandiram a ocupação em 3 milhões de metros quadrados. É um número grande, não tenhamos dúvida. Mas quanto expandiu a área ocupada pela cidade? Provavelmente, não menos que 40 milhões de metros quadrados.
Favelas e não favelas expandiram em especial na Zona Oeste, região de ocupação recente. É uma região receptora de famílias pobres, onde alcançam um lugar em acordo com suas possibilidades financeiras. A ocupação se dá, é claro, com baixa densidade e com escassez de infraestrutura, que, aliás, é um quadro geral das cidades brasileiras.
Traficantes e milícias
É na Zona Oeste que tem sido mais abrangente a presença de milícias como detentoras do domínio sobre o território. Enquanto os traficantes têm seu negócio central na venda de drogas, os milicianos o têm na venda de “segurança”. Mas ambas as modalidades de marginalidade firmamse como controladoras de ampla rede econômica-política-social, que é clandestina e ilegal, e que se impõe pelas armas, na arbitrariedade e no absolutismo.
Este contexto carioca também ocorre em inúmeras cidades brasileiras médias e grandes. As favelas, ou os loteamentos da periferia, ou os conjuntos residenciais, como a Cidade de Deus, não se qualificam em si como promotores da violência urbana que nos assola. Suas populações vivem em um jugo degradante, em que não vige a Constituição brasileira, mas as leis discricionárias dos poderosos detentores das armas. Foi o Estado brasileiro que abandonou seus territórios e desconhece os direitos cidadãos.
A resposta dos muros pode aplacar temporariamente o sentimento de medo que atinge parcelas importantes da sociedade. Nesse sentido, pode ter sido bem-sucedida. Pode, também, exaltar o sentimento de segregação de outras parcelas, justamente aquelas que se encontram excluídas da proteção constitucional.
Se tiver sido uma resposta de natureza semiológica, como tentei evidenciar, com a controvérsia que se estabeleceu e sua repercussão, é possível que os muros, mesmo não construídos, já tenham cumprido parte do objetivo do governo. Neste caso, não serão implantados.
Contudo, a questão é de natureza política- e persiste. Há escassez de democracia em nossas cidades, não apenas no Rio de Janeiro. Faltam políticas de crédito para a habitação, de saneamento, de transporte público, de segurança. Há escassez de democracia, sobretudo nesses territórios da anomia. De fato, eles já se encontram “murados”, são “cidades muradas”, onde não entra a Constituição, impedido o acesso à cidadania.
Pode ser que o debate ajude na compreensão da urgência de uma agenda para as cidades brasileiras – em que há de se garantir a vigência das leis em todo o território nacional.
*Arquiteto, professor da UFRJ, foi secretário de habitação do Rio, responsável pelo programa Favela-Bairro (1993-2000). Email: smv@centroin.com.br