O consumidor firma-se como novo ator social, mas sua capacidade é limitada. O risco de manter o foco na ação individual é perder de vista a urgência de mudanças em larga escala
Recentemente, a rede britânica de supermercados Tesco se embananou na tentativa de enveredar seus clientes pelo caminho do consumo ambientalmente responsável. Lançou a campanha Lights for Flights: na compra de lâmpadas fluorescentes, mais econômicas em energia se comparadas às tradicionais incandescentes, o cliente levava como prêmio milhas para gastar em passagens aéreas.
Não demorou muito para que a gafe se transformasse em mais um registro clássico da chamada maquiagem verde, expondo a marca ao escrutínio público e ao ridículo. Pouco depois, claramente mais bem assessorada, a Tesco procurou se redimir. Lançou uma linha de cem produtos dotados de transparência climática. Um selo informa ao consumidor quanto carbono foi necessário emitir na produção de cada mercadoria, uma medida bastante afinada com a demanda dos movimentos pelo consumo consciente por mais transparência e informação.
Mas o jornalista Ed Gillespie, do jornal The Guardian, não se deu por satisfeito. Diante da informação de que cada folha de papel higiênico demanda 1,1 grama de carbono para ser fabricada, Gillespie decidiu provocar os seus leitores: “Você escolheria usar menos papel para reduzir a sua pegada de carbono, mesmo sabendo o quão infinitesimal seria essa redução?” Para ele, o apelo por escolhas individuais responsáveis, centradas nas pequenas atitudes, transformou-se em um estado de negação diante de uma crise ambiental global que demanda grandes guinadas. E rápido. “Eu ficaria muito mais impressionado se a Tesco se comprometesse a banir de suas prateleiras qualquer produto que não atingisse os mais altos padrões de integridade ambiental”, diz o jornalista. “É isso o que ‘cada pequena atitude que conta’ deveria significar.”
Do Reino Unido para o Brasil, o desabafo permanece pertinente e polêmico. Em um tempo em que o indivíduo passou a ser o foco tanto de estratégias para perpetuar o consumo exacerbado quanto daquelas que visam contestá-lo, a confusão é inevitável: afinal, onde termina a responsabilidade de consumidores e começa a de empresas e governos? Comprar ou não comprar é realmente um indutor de mudanças na atitude corporativa? Um movimento coletivo de fôlego se resume ao somatório de ações individuais?
Há debate, mas não há respostas prontas. Nenhum dos estudiosos consultados por esta reportagem menospreza este novo ator social, ao contrário. Mas, para quem deseja ser realmente um consumidor responsável, é bom que se tenha consciência também dos limites dessa capacidade e das armadilhas simplificadoras que se possam encontrar pelo caminho.
Nosso herói, o superconsumidor
Com o livro Sustentabilidade Ambiental, Consumo e Cidadania, lançado em 2005, a socióloga Fátima Portilho criou um marco da literatura especializada brasileira ao levantar as possibilidades e os limites da ideia de consumo sustentável. Ela analisa, por exemplo, a desigualdade de acesso às alternativas. Algumas são econômicas, como reduzir o uso de água ou de energia.Outras são voltadas para públicos mais sofisticados, como os de produtos certificados e orgânicos.
Outra limitação importante é a velocidade de inserção de novos produtos no mercado e a inovação ambiental que acompanha muitos deles. Alguns, como os alimentos transgênicos, são objeto de controvérsia, inclusive entre os cientistas, e a escolha entre inúmeros tipos de produtos muitas vezes requer conhecimento altamente especializado.
A era da informação, combinada com a ascensão da proposta de consumo consciente, serviu para derrubar o preceito da teoria econômica neoclássica, segundo a qual o consumidor é sempre racional e busca maximizar as suas escolhas. Ainda que dispuséssemos de todas as informações necessárias, há um limite bastante estreito para a nossa capacidade cognitiva.
No livro Nudge – O empurrão para a escolha certa, os economistas comportamentais Richard Thaler e Cass Sunstine foram mais longe e demonstraram que o ser humano típico não gosta de tomar decisões, frequentemente se deixando levar pela lei do mínimo esforço. Nos EUA, todo empregado, ao ser contratado, preenche um formulário em que escolhe o tipo de plano de pensão. A primeira opção da lista, que garante uma contribuição regular com aposentadoria modesta, foi sempre a mais escolhida.
Thaler e Sunstine propuseram inverter a ordem das opções em doze estados americanos, colocando em primeiro lugar aquela que garante um aumento de contribuição a cada aumento de salário e, consequentemente, uma aposentadoria mais gorda. A tendência se inverteu e os americanos passaram para uma escolha sem vantagem imediata, com vistas ao longo prazo. Quando se fala em consumo consciente, é inevitável questionar se não estaríamos depositando excessiva fé em um perfil que a psicologia econômica já demonstrou ser altamente improvável.
A psicanalista Vera Rita Ferreira, especializada nessa área, quer trazer o elemento da arquitetura de escolha, proposta pelos autores de Nudge, para a discussão da sustentabilidade. “Cada vez mais se observa que só medidas educacionais ou de empoderamento muitas vezes não se mostram suficientes. É preciso medidas que encorajem o comportamento desejável e desestimulem o comportamento não desejável”, diz a psicanalista. Não significa que essa é uma missão apenas para os especialistas, de cima para baixo. A contribuição coletiva de consumidores comuns, com sua experiência cotidiana, seria útil para formular um modelo de estímulos. “Não dá para desistir de investir num amadurecimento do consumidor. Pelo menos, para tornar a briga um pouquinho menos desigual”, diz Vera Rita.
Lisa Gunn, coordenadora-executiva do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), faz um contraponto. Para ela, disponibilizar informações não significa necessariamente que o consumidor terá de processá-las sozinho. “Nenhuma empresa vai dizer ‘eu tenho trabalho infantil mesmo e você que faça a sua escolha’. Só a transparência do processo produtivo já força uma mudança.”
Forças conjugadas
Em seu livro, fruto de tese de doutorado, Fátima Portilho revela que “ainda não foi possível comprovar nem infirmar, através de pesquisas empíricas, o papel do consumidor verde como mecanismo de pressão das indústrias para a adoção de medidas de gestão ambiental”.
Em entrevista a Página22, ela diz que esse gap de pesquisas de campo ainda permanece. Não se sabe ao certo quem é o verdadeiro fator decisivo: se o consumidor final, com suas escolhas de compra, ou se acionistas, seguradoras, concorrentes, grandes consumidores institucionais e governos. São agentes que, a despeito de serem movidos por boas ou más intenções, estão expostos a riscos jurídicos e financeiros imediatos quando se trata de meio ambiente.
“É muito difícil medir isso. É sempre um conjunto de fatores que faz uma empresa mudar”, diz Fátima. Em 2002, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) procurou compreender essa realidade, ainda que de forma preliminar. Os economistas Ronaldo Seroa da Motta e Claudio Ferraz concluíram que a variável “pressão da comunidade” não é decisiva para os investimentos ambientais de uma empresa brasileira, que se submete mais claramente aos demais atores do mercado e à regulação formal.
Mas os pesquisadores fazem uma ressalva: a pressão social tem um papel complementar na medida em que exerce influência sobre os órgãos reguladores. Também é o que identifica Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, uma das mais atuantes pela erradicação do trabalho escravo no País. Ele diz que os avanços mais visíveis nessa área são fruto de um jogo de cobrança entre empresas e bancos.
“Mas é fundamental que a empresa tenha medo do boicote do consumidor, ainda que não aconteça. Até porque as empresas não deixam que se chegue a esse ponto, elas se antecipam.”
Parece imprescindível ter em mente essa correlação de forças quando se trata de dimensionar o impacto das ações individuais. “O movimento de certa forma se despolitiza quando se pensa ‘estou fazendo a minha coletinha aqui e a minha parte já está feita'”, diz Antônio Almeida, professor da Esalq-USP e pesquisador da área de mídia e meio ambiente.
Ele identifica essa proposta de educação ambiental individualizante na grande mídia, “porque, politicamente, essa é uma proposta sem grandes consequências. Joga a responsabilidade para o indivíduo e não para o governo e as grandes corporações”, diz. “Não acho que seja desprezível (a conduta individual), mas não é o centro da questão.”
Apropriação
É importante observar que o discurso do poder do consumidor não é mais apenas dos movimentos socioambientais, mas também do mundo corporativo, diz o publicitário Hélio Silva, autor do livro Marketing: Uma visão crítica. “Para a empresa interessa muito esse discurso. A sensação de ser poderoso me agrada, então a empresa embute essa sensação no seu produto: ‘Nós estamos fazendo certo, mas tudo depende de você, você é o rei’.”
A psicóloga Isleide Fontenelle, professora de pós-graduação da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, e autora do livro O Nome da Marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável, tem um projeto de pesquisa chamado provisoriamente “Redenção como Mercadoria”.
Sua tese é de que o próprio mercado contribui para a geração de culpa, para depois vender a solução. “O consumidor está esgotado de escolhas, de informação e de responsabilidades. Esse esgotamento tem levado a uma necessidade psíquica de autoridades que lhe digam o que fazer. E aí entram as grandes marcas que lhe dizem. Quem é o grande ausente? É o Estado, que sai de cena deixando o puro mercado.”
Nada disso seria problemático se as mudanças em curso dessem conta da questão global do consumo. “A responsabilidade social empresarial apenas arranha a superfície de um problema que é muito mais profundo”, diz Isleide.
“Responsável”, “ético”, “consciente” são denominações muito similares de um ideal de conduta, mas o chamado “consumo verde” designa algo mais específico e que se mostra como opção mais bem-sucedida até agora: é a escolha por produtos de tecnologia menos poluente que não implica de imediato uma redução do nível de consumo, mas uma mudança no padrão de qualidade.
Embora a incorporação de tecnologias limpas seja um tema vital para a busca da sustentabilidade, a inserção do tema do consumo na agenda ambiental partiu, nos anos 90, de uma proposta muito mais ampla: não apenas substituir objetos de consumo, mas reduzir, readaptar a vida cotidiana a um ritmo menos frenético de novidade, compra e descarte.
Para essa grande questão ainda não há propostas. Há de se reconhecer a complexidade do cenário: uma sociedade construída sobre a premissa das liberdades individuais é capaz de considerar limites? No livro A Felicidade Paradoxal, o filósofo francês Gilles Lipovetsky descreve como o marketing de massa foi gradualmente substituído por estratégias de segmentação, ampliando sem parar a gama de escolhas e opções. Não mais a tônica racional e funcionalista do início do século XX, mas o caminho emocional e sinuoso da construção de identidade e experiências individuais.
“O supérfluo, a moda, os lazeres, as férias tornaram-se desejos e aspirações legítimos em todos os grupos sociais (…). Exercer uma dominação sobre o mundo e sobre si aloja-se no coração do hiperconsumidor. A busca é menos por distinção social que por responder à atemporal pergunta: quem sou eu?”
Para Fátima Portilho, há ainda o desafio conceitual de apontar o que é essencial e o que é supérfluo: “Qualquer sociedade usa os objetos disponíveis na sua cultura material para se relacionar. Quem vai dizer se o que eu comprei é consumo ou é consumismo? É altamente subjetivo e, mais do que isso, é cultural”.
Quando escreveu Sustentabilidade Ambiental, Consumo e Cidadania, Fátima diz que se sentia imbuída de um espírito de contestação para desmascarar o consumo verde. De lá pra cá, sua percepção mudou. O que aprendeu é que esse fenômeno é herdeiro de uma decepção com os movimentos sociais dos anos 60 e 70, que pregavam uma utopia única por uma via única: coletiva e institucional.
Hoje, as possibilidades políticas estariam pulverizadas pela necessidade de fazer algo agora, hoje, na mesa da cozinha, sem esperar pelo mercado ou pelos governos. “Independentemente do que a gente acha, as pessoas estão usando o consumo como ação política. É antes de tudo uma autoatribuição de responsabilidade. Se a gente transferisse o papel de mudar o mundo para esse único ator, seria o mesmo erro do passado que atribuiu essa função aos operários”, diz a socióloga. “Mas o mundo está diferente e aponta para um conjunto de caminhos. É uma mudança da cultura política e uma expansão da ideia de cidadania”, conclui.
A dança dos discursos – A inclusão do consumo como peça-chave da crise ambiental é fruto de um longo embate entre nações ricas e pobres
Fase 1 – Profetas do apocalipse
Os ativistas ecológicos dos anos 60, alinhados ao movimento da contracultura, já denunciavam os exageros da sociedade de consumo como parte da crise ambiental. Mas o discurso hegemônico permaneceu voltado para o problema populacional, cujos defensores eram chamados de “neomalthusianos” ou “profetas do apocalipse”. Para alguns autores, as nações ricas evitaram analisar os impactos de seus processos produtivos, ao manter o foco no crescimento da população em países em desenvolvimento.
Fase 2 – Fábricas e chaminés
A partir dos anos 70, os embates entre países ricos e pobres nos fóruns internacionais começam a dividir as atenções entre a explosão demográfica e a poluição causada por processos industriais e tecnológicos. O relatório Os Limites do Crescimento (Clube de Roma, 1972) é um dos marcos dessa transição, apontando principalmente para os países do Norte. O relatório Nosso Futuro Comum (ONU, 1987), que inaugura o conceito de desenvolvimento sustentável, enfatiza a “poluição da pobreza” e a necessidade de acelerar o crescimento econômico, desde que amparado por inovações tecnológicas na esfera produtiva.
Fase 3 – O consumo no mainstream
A Conferência Rio-92 compreende, pela primeira vez, a participação direta de movimentos da sociedade organizada. As ONGs globais e os países do Sul foram decisivos ao transferir a responsabilidade para o estilo de vida e o uso intensivo dos recursos naturais pelas populações mais ricas. Apesar da resistência dos países desenvolvidos, os documentos aprovados na conferência (Agenda 21, Declaração do Rio, Tratado das ONGs etc.) refletem o segundo deslocamento discursivo, da produção para o consumo.[:en]O consumidor firma-se como novo ator social, mas sua capacidade é limitada. O risco de manter o foco na ação individual é perder de vista a urgência de mudanças em larga escala
Recentemente, a rede britânica de supermercados Tesco se embananou na tentativa de enveredar seus clientes pelo caminho do consumo ambientalmente responsável. Lançou a campanha Lights for Flights: na compra de lâmpadas fluorescentes, mais econômicas em energia se comparadas às tradicionais incandescentes, o cliente levava como prêmio milhas para gastar em passagens aéreas.
Não demorou muito para que a gafe se transformasse em mais um registro clássico da chamada maquiagem verde, expondo a marca ao escrutínio público e ao ridículo. Pouco depois, claramente mais bem assessorada, a Tesco procurou se redimir. Lançou uma linha de cem produtos dotados de transparência climática. Um selo informa ao consumidor quanto carbono foi necessário emitir na produção de cada mercadoria, uma medida bastante afinada com a demanda dos movimentos pelo consumo consciente por mais transparência e informação.
Mas o jornalista Ed Gillespie, do jornal The Guardian, não se deu por satisfeito. Diante da informação de que cada folha de papel higiênico demanda 1,1 grama de carbono para ser fabricada, Gillespie decidiu provocar os seus leitores: “Você escolheria usar menos papel para reduzir a sua pegada de carbono, mesmo sabendo o quão infinitesimal seria essa redução?” Para ele, o apelo por escolhas individuais responsáveis, centradas nas pequenas atitudes, transformou-se em um estado de negação diante de uma crise ambiental global que demanda grandes guinadas. E rápido. “Eu ficaria muito mais impressionado se a Tesco se comprometesse a banir de suas prateleiras qualquer produto que não atingisse os mais altos padrões de integridade ambiental”, diz o jornalista. “É isso o que ‘cada pequena atitude que conta’ deveria significar.”
Do Reino Unido para o Brasil, o desabafo permanece pertinente e polêmico. Em um tempo em que o indivíduo passou a ser o foco tanto de estratégias para perpetuar o consumo exacerbado quanto daquelas que visam contestá-lo, a confusão é inevitável: afinal, onde termina a responsabilidade de consumidores e começa a de empresas e governos? Comprar ou não comprar é realmente um indutor de mudanças na atitude corporativa? Um movimento coletivo de fôlego se resume ao somatório de ações individuais?
Há debate, mas não há respostas prontas. Nenhum dos estudiosos consultados por esta reportagem menospreza este novo ator social, ao contrário. Mas, para quem deseja ser realmente um consumidor responsável, é bom que se tenha consciência também dos limites dessa capacidade e das armadilhas simplificadoras que se possam encontrar pelo caminho.
Nosso herói, o superconsumidor
Com o livro Sustentabilidade Ambiental, Consumo e Cidadania, lançado em 2005, a socióloga Fátima Portilho criou um marco da literatura especializada brasileira ao levantar as possibilidades e os limites da ideia de consumo sustentável. Ela analisa, por exemplo, a desigualdade de acesso às alternativas. Algumas são econômicas, como reduzir o uso de água ou de energia.Outras são voltadas para públicos mais sofisticados, como os de produtos certificados e orgânicos.
Outra limitação importante é a velocidade de inserção de novos produtos no mercado e a inovação ambiental que acompanha muitos deles. Alguns, como os alimentos transgênicos, são objeto de controvérsia, inclusive entre os cientistas, e a escolha entre inúmeros tipos de produtos muitas vezes requer conhecimento altamente especializado.
A era da informação, combinada com a ascensão da proposta de consumo consciente, serviu para derrubar o preceito da teoria econômica neoclássica, segundo a qual o consumidor é sempre racional e busca maximizar as suas escolhas. Ainda que dispuséssemos de todas as informações necessárias, há um limite bastante estreito para a nossa capacidade cognitiva.
No livro Nudge – O empurrão para a escolha certa, os economistas comportamentais Richard Thaler e Cass Sunstine foram mais longe e demonstraram que o ser humano típico não gosta de tomar decisões, frequentemente se deixando levar pela lei do mínimo esforço. Nos EUA, todo empregado, ao ser contratado, preenche um formulário em que escolhe o tipo de plano de pensão. A primeira opção da lista, que garante uma contribuição regular com aposentadoria modesta, foi sempre a mais escolhida.
Thaler e Sunstine propuseram inverter a ordem das opções em doze estados americanos, colocando em primeiro lugar aquela que garante um aumento de contribuição a cada aumento de salário e, consequentemente, uma aposentadoria mais gorda. A tendência se inverteu e os americanos passaram para uma escolha sem vantagem imediata, com vistas ao longo prazo. Quando se fala em consumo consciente, é inevitável questionar se não estaríamos depositando excessiva fé em um perfil que a psicologia econômica já demonstrou ser altamente improvável.
A psicanalista Vera Rita Ferreira, especializada nessa área, quer trazer o elemento da arquitetura de escolha, proposta pelos autores de Nudge, para a discussão da sustentabilidade. “Cada vez mais se observa que só medidas educacionais ou de empoderamento muitas vezes não se mostram suficientes. É preciso medidas que encorajem o comportamento desejável e desestimulem o comportamento não desejável”, diz a psicanalista. Não significa que essa é uma missão apenas para os especialistas, de cima para baixo. A contribuição coletiva de consumidores comuns, com sua experiência cotidiana, seria útil para formular um modelo de estímulos. “Não dá para desistir de investir num amadurecimento do consumidor. Pelo menos, para tornar a briga um pouquinho menos desigual”, diz Vera Rita.
Lisa Gunn, coordenadora-executiva do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), faz um contraponto. Para ela, disponibilizar informações não significa necessariamente que o consumidor terá de processá-las sozinho. “Nenhuma empresa vai dizer ‘eu tenho trabalho infantil mesmo e você que faça a sua escolha’. Só a transparência do processo produtivo já força uma mudança.”
Forças conjugadas
Em seu livro, fruto de tese de doutorado, Fátima Portilho revela que “ainda não foi possível comprovar nem infirmar, através de pesquisas empíricas, o papel do consumidor verde como mecanismo de pressão das indústrias para a adoção de medidas de gestão ambiental”.
Em entrevista a Página22, ela diz que esse gap de pesquisas de campo ainda permanece. Não se sabe ao certo quem é o verdadeiro fator decisivo: se o consumidor final, com suas escolhas de compra, ou se acionistas, seguradoras, concorrentes, grandes consumidores institucionais e governos. São agentes que, a despeito de serem movidos por boas ou más intenções, estão expostos a riscos jurídicos e financeiros imediatos quando se trata de meio ambiente.
“É muito difícil medir isso. É sempre um conjunto de fatores que faz uma empresa mudar”, diz Fátima. Em 2002, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) procurou compreender essa realidade, ainda que de forma preliminar. Os economistas Ronaldo Seroa da Motta e Claudio Ferraz concluíram que a variável “pressão da comunidade” não é decisiva para os investimentos ambientais de uma empresa brasileira, que se submete mais claramente aos demais atores do mercado e à regulação formal.
Mas os pesquisadores fazem uma ressalva: a pressão social tem um papel complementar na medida em que exerce influência sobre os órgãos reguladores. Também é o que identifica Leonardo Sakamoto, coordenador da ONG Repórter Brasil, uma das mais atuantes pela erradicação do trabalho escravo no País. Ele diz que os avanços mais visíveis nessa área são fruto de um jogo de cobrança entre empresas e bancos.
“Mas é fundamental que a empresa tenha medo do boicote do consumidor, ainda que não aconteça. Até porque as empresas não deixam que se chegue a esse ponto, elas se antecipam.”
Parece imprescindível ter em mente essa correlação de forças quando se trata de dimensionar o impacto das ações individuais. “O movimento de certa forma se despolitiza quando se pensa ‘estou fazendo a minha coletinha aqui e a minha parte já está feita'”, diz Antônio Almeida, professor da Esalq-USP e pesquisador da área de mídia e meio ambiente.
Ele identifica essa proposta de educação ambiental individualizante na grande mídia, “porque, politicamente, essa é uma proposta sem grandes consequências. Joga a responsabilidade para o indivíduo e não para o governo e as grandes corporações”, diz. “Não acho que seja desprezível (a conduta individual), mas não é o centro da questão.”
Apropriação
É importante observar que o discurso do poder do consumidor não é mais apenas dos movimentos socioambientais, mas também do mundo corporativo, diz o publicitário Hélio Silva, autor do livro Marketing: Uma visão crítica. “Para a empresa interessa muito esse discurso. A sensação de ser poderoso me agrada, então a empresa embute essa sensação no seu produto: ‘Nós estamos fazendo certo, mas tudo depende de você, você é o rei’.”
A psicóloga Isleide Fontenelle, professora de pós-graduação da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, e autora do livro O Nome da Marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável, tem um projeto de pesquisa chamado provisoriamente “Redenção como Mercadoria”.
Sua tese é de que o próprio mercado contribui para a geração de culpa, para depois vender a solução. “O consumidor está esgotado de escolhas, de informação e de responsabilidades. Esse esgotamento tem levado a uma necessidade psíquica de autoridades que lhe digam o que fazer. E aí entram as grandes marcas que lhe dizem. Quem é o grande ausente? É o Estado, que sai de cena deixando o puro mercado.”
Nada disso seria problemático se as mudanças em curso dessem conta da questão global do consumo. “A responsabilidade social empresarial apenas arranha a superfície de um problema que é muito mais profundo”, diz Isleide.
“Responsável”, “ético”, “consciente” são denominações muito similares de um ideal de conduta, mas o chamado “consumo verde” designa algo mais específico e que se mostra como opção mais bem-sucedida até agora: é a escolha por produtos de tecnologia menos poluente que não implica de imediato uma redução do nível de consumo, mas uma mudança no padrão de qualidade.
Embora a incorporação de tecnologias limpas seja um tema vital para a busca da sustentabilidade, a inserção do tema do consumo na agenda ambiental partiu, nos anos 90, de uma proposta muito mais ampla: não apenas substituir objetos de consumo, mas reduzir, readaptar a vida cotidiana a um ritmo menos frenético de novidade, compra e descarte.
Para essa grande questão ainda não há propostas. Há de se reconhecer a complexidade do cenário: uma sociedade construída sobre a premissa das liberdades individuais é capaz de considerar limites? No livro A Felicidade Paradoxal, o filósofo francês Gilles Lipovetsky descreve como o marketing de massa foi gradualmente substituído por estratégias de segmentação, ampliando sem parar a gama de escolhas e opções. Não mais a tônica racional e funcionalista do início do século XX, mas o caminho emocional e sinuoso da construção de identidade e experiências individuais.
“O supérfluo, a moda, os lazeres, as férias tornaram-se desejos e aspirações legítimos em todos os grupos sociais (…). Exercer uma dominação sobre o mundo e sobre si aloja-se no coração do hiperconsumidor. A busca é menos por distinção social que por responder à atemporal pergunta: quem sou eu?”
Para Fátima Portilho, há ainda o desafio conceitual de apontar o que é essencial e o que é supérfluo: “Qualquer sociedade usa os objetos disponíveis na sua cultura material para se relacionar. Quem vai dizer se o que eu comprei é consumo ou é consumismo? É altamente subjetivo e, mais do que isso, é cultural”.
Quando escreveu Sustentabilidade Ambiental, Consumo e Cidadania, Fátima diz que se sentia imbuída de um espírito de contestação para desmascarar o consumo verde. De lá pra cá, sua percepção mudou. O que aprendeu é que esse fenômeno é herdeiro de uma decepção com os movimentos sociais dos anos 60 e 70, que pregavam uma utopia única por uma via única: coletiva e institucional.
Hoje, as possibilidades políticas estariam pulverizadas pela necessidade de fazer algo agora, hoje, na mesa da cozinha, sem esperar pelo mercado ou pelos governos. “Independentemente do que a gente acha, as pessoas estão usando o consumo como ação política. É antes de tudo uma autoatribuição de responsabilidade. Se a gente transferisse o papel de mudar o mundo para esse único ator, seria o mesmo erro do passado que atribuiu essa função aos operários”, diz a socióloga. “Mas o mundo está diferente e aponta para um conjunto de caminhos. É uma mudança da cultura política e uma expansão da ideia de cidadania”, conclui.
A dança dos discursos – A inclusão do consumo como peça-chave da crise ambiental é fruto de um longo embate entre nações ricas e pobres
Fase 1 – Profetas do apocalipse
Os ativistas ecológicos dos anos 60, alinhados ao movimento da contracultura, já denunciavam os exageros da sociedade de consumo como parte da crise ambiental. Mas o discurso hegemônico permaneceu voltado para o problema populacional, cujos defensores eram chamados de “neomalthusianos” ou “profetas do apocalipse”. Para alguns autores, as nações ricas evitaram analisar os impactos de seus processos produtivos, ao manter o foco no crescimento da população em países em desenvolvimento.
Fase 2 – Fábricas e chaminés
A partir dos anos 70, os embates entre países ricos e pobres nos fóruns internacionais começam a dividir as atenções entre a explosão demográfica e a poluição causada por processos industriais e tecnológicos. O relatório Os Limites do Crescimento (Clube de Roma, 1972) é um dos marcos dessa transição, apontando principalmente para os países do Norte. O relatório Nosso Futuro Comum (ONU, 1987), que inaugura o conceito de desenvolvimento sustentável, enfatiza a “poluição da pobreza” e a necessidade de acelerar o crescimento econômico, desde que amparado por inovações tecnológicas na esfera produtiva.
Fase 3 – O consumo no mainstream
A Conferência Rio-92 compreende, pela primeira vez, a participação direta de movimentos da sociedade organizada. As ONGs globais e os países do Sul foram decisivos ao transferir a responsabilidade para o estilo de vida e o uso intensivo dos recursos naturais pelas populações mais ricas. Apesar da resistência dos países desenvolvidos, os documentos aprovados na conferência (Agenda 21, Declaração do Rio, Tratado das ONGs etc.) refletem o segundo deslocamento discursivo, da produção para o consumo.